sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Génese do dogma da Incarnação



Como se formou um dogma tão improvável?
Três gerações de textos
Resposta ao fracasso de Jesus: Messias, que ressuscitou
A contradição entre o messiânico e o teológico
O Messias que não voltou: o 2º fracasso
O vazio que a incarnação veio preencher
Platão salva o cristianismo reduzindo a letra da Bíblia
Questão especulativa : porquê pai / filho ?
Um paradoxo: das endogamias judaica e grega à universalidade cristã
Filosofia e cristianismo no berço cultural da Europa


Como se formou um dogma tão improvável?
1. Para quem não conheça nada da Bíblia, provavelmente este texto é pouco inteligível. A sua questão é a de saber como é que se pode perceber um processo histórico de crenças que fez com que um judeu da Galileia do princípio do século I, um profeta, se tornou num Deus incarnado num Homem, a sua aventura tendo vindo a marcar o tempo antes e depois dele: qual foi o papel da filosofia nesta génese? O que me interessa nesta questão crítica dum tema fulcral do cristianismo, é guardar o que me resta deste, que me salvou a vida quando, jovem estudante de engenharia civil, sem sequer fazer dois dos três estágios que me valeriam a licenciatura, entrei para o seminário onde tive como professor de filosofia o melhor intelectual que conheci na minha vida, o P. Honorato Rosa. Nos cinco anos que lá andei, tornei-me um intelectual com questões teológicas que, em vez de as arrumar de uma vez, fui depois lentamente criticando, nomeadamente com o apoio de Heidegger e de Derrida (e num último lanço, de J.-L. Nancy), que, com muitos outros, me forneceram novas questões que desaguaram na filosofia com ciências. Pode-se pensar que, ao deixar de acreditar num Criador – nomeadamente com a compreensão do seu papel de ‘causa’ última de imotivados, quer tratando-se das línguas, quer da evolução dos vivos – a questão da incarnação ficava resolvida por apagamento, se se pode dizer. Mas isso seria apagar tudo e há pelo menos duas coisas que me continuam a interessar: o que se pode vislumbrar da personagem de Jesus através do evangelho de Marcos (foi a minha primeira descoberta, na Leitura materialista do evangelho de Marcos, em francês (1974), lido com base na leitura de S/Z de R. Barthes) e a ética de fecundidade espiritual dos capítulos 5-7 de Mateus (em francês no blogue Questions au Christianisme). Trata-se pois de pagar uma dívida de vida, de não a apagar.

Três gerações de textos
2. Há uma metodologia textual que torna possível a questão: não se lê tal frase ou tal episódio isolado, o que há que ler são textos, seguindo a sua cronologia, hoje razoavelmente conhecida, relacionando-os com a história desses primeiros tempos cristãos (na debatidíssima questão da historicidade das origens cristãs, são os próprios textos que se sabe hoje serem históricos, haja o que houver a compreender daquilo que eles contam). Classificaremos os textos que nos interessam segundo três gerações: 1) a que vai do ano 30 ao ano 60, 2) a que vai de 60 a 90 e 3) alguns anos depois de 90. O ano 30 é o provável ano da execução de Jesus; a primeira geração contém as 7 cartas autênticas de Paulo de Tarso, que não conheceu Jesus mas se tornou seu apóstolo, fundando várias comunidades ditas ecclesiai[1] em nome do Messias ressuscitado. Há 14 cartas atribuídas a ele, só 7 são dos anos 50, tendo sido executado em Roma em meados dos anos 60 (como aliás o seu ‘rival’ Pedro também): 1ª Tessalonicenses, 1ª e 2ª Coríntios, Filipenses (excepto 2,6-11), Filémon, Gálatas e Romanos. A segunda geração retida é a dos três evangelhos sinópticos, Marcos, Mateus e Lucas, por esta ordem, o primeiro fornecendo a trama narrativa dos dois outros que o retomaram acrescentando-lhes materiais diversos, alguns comuns aos dois (dito fonte Q) e os outros próprios deles. A terceira geração compõe-se do evangelho de João, das cartas de Paulo aos Colossenses e aos Efésios e do hino de FIlipenses 2,6-11. Em relação aos evangelhos, além da questão da ressurreição de Jesus, nós, leitores modernos, somos confrontados com uma série de ‘milagres’ nas narrativas evangélicas, que há que ler tendo em atenção o seguinte: alguns deles têm marcas de um taumaturgo (por exemplo, Mc 7,31-35), os xamãs sendo frequentes nessas sociedades antigas como ainda hoje na Índia e em África, isto é, Jesus era alguém que sabia fazer certas curas; o primeiro dos evangelhos, o de Marcos, foi escrito 40 anos após a crucifixão, o que dá tempo para as curas virarem legendas e irem em crescendo nos outros, até à ressurreição de Lázaro, quatro dias depois de sepultado em João (cap. 11), o último a ser escrito; enquanto Marcos tem uma cura hesitante (8,22-25), por assim dizer, e marca a incerteza de duas possíveis ‘ressurreições’ com dúvidas de que estivessem mortos (5,37, 9,26) e até põe a pergunta do que é isso de “ressuscitar dentre os mortos” (9,10).
3. A chamada literatura apocalíptica – que vem pelo menos desde os inícios do século II antes de Cristo, o texto mais importante que nos chegou desses inícios sendo o do profeta Daniel (185 a. C.) – corresponde à situação de impasse politico em que se encontrou Israel, sob a ocupação militar dos sucessores de Alexandre e depois dos Romanos, após uma série de derrotas e vassalagens anteriores a Assírios, Babilónios e Persas, vencidos estes por Alexandre. Esta literatura, clandestina na sua linguagem por razões políticas, constatou que a aliança profética entre o seu Deus, Iahvé, e os seus antepassados liderados por Moisés, tinha fracassado completamente, segundo os profetas por infidelidades dos seus reis à Lei da aliança, e concluiu, face ao domínio militar dos ocupantes, que só lhes restava como hipótese uma intervenção divina, através da figura (pouco clara) dum Messias que inauguraria o Reino de Deus para os que forem encontrados justos. Os textos das duas primeiras gerações, à excepção de Lucas que opera uma transição de saída, inserem-se nesta literatura apocalíptica, como se pode ver pela primeira palavra de Jesus em Marcos, retomada por Mateus e omitida  por Lucas – “cumpriram-se os tempos e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15) – e pela maneira como Paulo, perto do final da sua primeira carta, a que enviou aos cristãos de Tessalónica, na Grécia, evoca a ascensão colectiva dos justos: “nós, os vivos, os que estaremos ainda cá para a vinda do Senhor [...] seremos reunidos [...] e levados em nuvens para encontrar o Senhor Jesus nos ares” (1 Tess 4,15-17), evocando Daniel 7,13-14 e o seu “Filho do Humano” colectivo. Muito estranha aos nossos olhos de descendentes dos Gregos, trata-se da figuração da saída dos justos da Terra para o Céu numa cultura que ignorava a imortalidade da alma (como todo o novo Testamento a ignora).

Resposta ao fracasso de Jesus: Messias, que ressuscitou
4. A primeira geração de textos, os de Paulo, é marcada não apenas pelo seu desconhecimento da vida terrena do “Messias segundo a carne” como pelo seu não querer conhecê-la (2Co 5,16); embora também haja aqui uma polémica com os outros apóstolos que foram discípulos de Jesus, apenas a morte e a ressurreição deste lhe interessam como narrativa que funda a sua fé e que terminará com este final apocalíptico, a vinda do Messias escatológico, que Paulo espera que se dê durante a sua vida. ‘Messias’ é um termo aramaico que os textos escritos em grego traduzem por ‘Cristo’, que para nós, por razões que veremos, se tornou uma espécie de apelido do tal Jesus, judeu de Nazaré. Como as nossas versões desses textos têm sempre o termo traduzido, perdeu-se praticamente, mesmo entre exegetas, a visão escatológica ou apocalíptica do termo “Cristo” e destes textos. Já o próprio Paulo teve um problema com este nome de ‘Messias’ que, fortemente significativo para judeus, não tinha sentido nenhum para os pagãos do mundo grego por onde ele andou a fazer assembleias e por isso mesmo teve que inventar, desde a sua primeira carta, um termo que fosse familiar aos seus convertidos: o de Filho de Deus, em que, após ter falado do “Senhor Jesus Messias”, diz pouco depois que se trata de “servir o Deus vivo e verdadeiro, à espera do seu Filho que virá dos céus, que ele ressuscitou dos mortos, Jesus, que nos libertou da cólera que vem aí” (1Tess 1,9-10). Ora, no mundo hebraico o monoteísmo é rigoroso, Deus não é pai e não tem filhos, ao invés das divindades gregas e romanas, bem humanas nos seus amores e desavenças. É na sua última carta, aos Romanos, que ele desvenda o sentido desta filiação inédita, ao dizer de Jesus Messias que, “saído da linhagem de David segundo a carne, foi definido (horistenos) Filho de Deus com potência segundo o Sopro de santidade pela ressurreição dos mortos de Jesus Messias, o nosso Senhor ” (Ro 1,4). Ora, horistenos é um particípio do verbo que Platão usa para ‘definir’: por exemplo, horizesthai, o belo, o justo, o bom, as virtudes[2], definidos esses que colocou no céu das Formas ideais[3]. O que significa que Paulo, para chegar aos ‘pagãos’ de cultura grega, transfere o ser celeste judeu, o Messias escatológico, para o ser celeste platónico, o Filho de Deus. É aqui o primeiro passo da génese aqui analisada, mas não se trata ainda de ‘incarnação’: é só a partir da ressurreição que Paulo definiu Jesus como Messias e Filho de Deus, antes disso segundo ele não era ainda nenhuma dessas coisas.
5. Em que é que consiste a ‘ressurreição de Jesus’? Na resposta dos apóstolos judeus ao fracasso de Jesus, executado pelos Romanos sob acusação dos chefes judeus, os quais apóstolos acreditaram no seu anúncio do Reino de Deus, da escatologia. Paulo também acreditou que Jesus estava vivo e voltaria, como se disse, mas colocando o Messias apenas a seguir à ressurreição. Os textos da 2ª geração, os evangelhos sinópticos, como que respondem ao desafio de Paulo que contestam, contando sem grandes divergências nessa narrativa comum, como os discípulos de Jesus reconheceram quando ele ainda estava vivo que ele era o Messias, bem antes do processo de Jerusalém, todos, incluindo João, colocando esse reconhecimento por Pedro no final da proclamação do Reino de Deus na Galileia e fazendo desse reconhecimento o sinal para o próprio Jesus de que devia ter início a subida até Jerusalém, aonde atacará os comerciantes do Templo e disputará a autoridade dos chefes, aclamado pela população e traído por um dos discípulos. Vários indícios mostram que o que moveu Jesus foi a expectativa que ele exprimiu numa figura apocalíptica, a dum Filho do Humano colectivo que subiria para os céus[4], como se viu ser também a proposta de Paulo. Antes de morrer, o crucificado, segundo Marcos e Mateus, dando um grande grito exclamou em aramaico Eloi, Eloi, lama sabactani, que depois traduzem meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?, os que o ouviram dizendo que chama por Elias, o qual tendo figurado numa teofania com Moisés no início da subida a Jerusalém, tinha justamente em seu tempo sido levado em corpo para o céu: como se o texto indicasse assim a última esperança do moribundo. Ora, o texto de Marcos, como mostrei há mais de 40 anos com a luz semiótica de Barthes, é uma narrativa com os seus imprevistos de reacções dos vários personagens em relação a Jesus – multidões, discípulos, doentes, adversários – em que ele tem que tomar estratégias de clandestinidade evitando as cidades, como quem tira conclusões do que lhe acontece, como qualquer líder humano, digamos, rezando à parte por três vezes, quando a decisão a tomar é mais grave (Mc 1,35, 6,46, 14,32-39). É essa lógica narrativa (que será desfeita a pouco e pouco pelos outros evangelhos) que dá valor a este grito de abandono, que é assim a confissão da derrota por aquele que começara por anunciar a proximidade do Reino de Deus. Pode-se dizer que todo o discurso teológico, incluindo estes textos até aos dogmas posteriores, é uma resposta a este grito de abandono, insuportável para a noção de incarnação.

A contradição entre o messiânico e o teológico
6. Mas o texto sabe de si, onde por vezes o seu autor não alcança, e contraditou-se com estes seus códigos de contingência narrativa: aonde ao longo de todo o texto se vai dizendo as leituras e estratégias de Jesus face ao que vai acontecendo, contrapõe-se a essa sua ‘ignorância’ do que ia sucedendo (que uma parábola assinalara em Mc 3,26-29, que desapareceu dos outros evangelhos) uma tripla predição do que lhe vai suceder na subida para Jerusalém (8,31, 9,31, 10,33-34), ser rejeitado pelas autoridades, morto e ressuscitar; ora essa predição é por sua vez contraditada manifestamente pelos quatro evangelhos com a estupefacção das mulheres e dos discípulos diante do túmulo vazio. Claramente relevando do narrador que já sabe o fim da história, este discurso pré-destina o que vier a suceder de trágico como um ‘plano de Deus’ sobre o seu Messias: o messiânico – dele mesmo um motivo de glória escatológica, que virou agora incerto e derrotado – torna-se decisão teo-lógica dum plano de salvação, predita pelo próprio Messias que Pedro reconhecera: está aí a trave mestra do discurso teológico cristão. Não apenas com alcance no futuro, esta predestinação teológica teve efeitos no próprio texto: a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras e a desesperança de abandono final apagam-se, como se se tratasse de teatro metafísico. É aonde o homem Jesus começa a ser apagado pelo Messias, aquém, se se pode dizer, da sua transfiguração como Filho de Deus pela ressurreição segundo Paulo. Também se apaga a dimensão politico-religiosa da messianidade de Jesus: nomeadamente, rasura-se a razão dessa subida a Jerusalém, de que fica apenas o confronto com o Templo e as autoridades judias, dizendo Marcos que eles “seguiam a caminho, subindo para Jerusalém,  Jesus caminhava à frente deles, e eles estavam assombrados, os que seguiam iam cheios de medo” (Mc 10,32). Ora, tendo em conta que o que desencadeou a decisão da viagem, foi uma assembleia de 5000 homens reunidos no deserto (Mc 6,30-44)[5], comentando João, que é um despolitizador[6], que “eles disseram que ‘ele é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo’ e que Jesus deu-se conta de que eles viriam buscá-lo para o fazer rei, e fugiu” (Jo 6,14-15), e sabendo-se que Lc 10,1 conta que no momento da partida, Jesus “enviou 72 discípulos, dois a dois, diante dele, em todas as cidades e localidades em que ele passaria”, como um líder que reúne a maior multidão possível para estarem à sua chegada numa manifestação imensa que Mc 15,7 dirá ter sido “a sedição” (“a revolta”, F. Lourenço), todos estes indícios – e ainda uma espécie de denegação de Lucas dizendo “porque ele estava perto de Jerusalém, e eles imaginavam que o Reino de Deus iria aparecer naquele momento” (19,11), acrescentando uma parábola que não tem nada a ver com isto – sugerem que a razão da subida a Jerusalém terá sido a convicção firme de Jesus de que se ia realmente consumar o Reino de Deus, a subida pelos ares do Filho do Humano colectivo. E foi dessa convicção, formada pelo êxito da campanha na Galileia abençoada por Deus e despoletada pela conjuntura dos 5000, que terá resultado o desespero do abandono por Deus. Terá sido este Jesus, Messias derrotado, que foi apagado pela futura incarnação.

O Messias que não voltou: o 2º fracasso
7. Percebe-se todavia que um tal líder messiânico tenha suscitado a crença de que, apesar da morte, fora levado para o Céu, vivo, ressuscitado: todos os textos do novo Testamento vivem dessa fé em Jesus como Messias que havia de voltar na glória manifesta do Reino de Deus. O problema é que não voltou. Ele teria precisado que a geração dos que estavam com ele não morreria antes desse final glorioso (Mc 9,1). Marcos, que era um adolescente quando Jesus foi morto, soube em Roma, 40 anos passados sobre essa morte, já os principais apóstolos tinham morrido,, que Tito tomou Jerusalém e que o Templo foi incendiado, donde ter concluído que a vinda do Reino para breve fora anunciada por esse fim do Judaísmo palestiniano: “leitor, compreende!”, escreve (13,14). O seu texto acaba bruscamente com um jovem que anuncia a ressurreição e reenvia os discípulos para a Galileia onde o verão, como quem, discípulo que foi de Paulo, junta as duas pontas da fé messiânica deste, a ressurreição que foi e o retorno escatológico que vai ser em breve, o tempo duma viagem de regresso à Galileia após o fiasco da subida a Jerusalém. Mas Marcos morreu, como todos os que conheceram Jesus, e ele não voltou: foi o segundo grande fracasso, depois do da crucifixão, a que a ressurreição respondera. Agora, é a própria noção de Messias, que Paulo, como Marcos, ligara à ressurreição, que claudica, nomeadamente para Judeus: se os apóstolos tinham dado a volta a um impossível Messias condenado, derrotado, dizendo que ressuscitara e que voltaria, esse argumento deixa de valer para  Judeus[7]. E como para os de cultura grega, a ressurreição do corpo não tinha qualidade espiritual diante da “alma imortal” platónica que desdenhava de tudo o que era “geração e corrupção”, estes dois fracassos deixaram um vazio na passagem para a terceira geração dos textos bíblicos cristãos: foi esse vazio que a incarnação veio preencher.

O vazio que a incarnação veio preencher
8. Para preencher esse vazio, estes textos fizeram uma segunda operação filosófica, após a primeira, a da deslocação do Messias escatológico judeu para o Filho de Deus grego, destinada a tornar este capaz de singrar no mundo da cultura grega (§ 4). Esta nova operação nota-se quer no prólogo do evangelho de João, quer nas cartas aos Colossenses e aos Efésios completadas por discípulos de Paulo e mantidas em seu nome, quer ainda no hino inserido em Fil 2,6-11, textos estes onde aparecem termos filosóficos como morphê, schêmati e o célebre Logos de João que “era Deus” (1,1) e “fez-se carne, habitou entre nós” (1,14). O movimento encontra-se claramente enunciado na primeira carta de Pedro: “o Messias, discernido antes da fundação do mundo e manifestado nos últimos tempos por causa de vós” (1,19-20). Digamos que se trata de repensar o conjunto do ‘plano de Deus’ e para isso, à maneira filosófica de quem busca fundamentos, partir do seu fim, o W (o Messias escatológico) e chegar ao seu A, ao seu início: “desde antes da criação do mundo” (Ef 1,8), “o seu Filho bem-amado [...], primogénito de toda a criatura, pois foi nele que foram criadas todas as coisas [...] primogénito dentre os mortos [...] pois aprouve a Deus fazer habitar nele toda a plenitude” (Col 1,15,18-19), “Messias Jesus, de condição divina, não se reteve igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo e tornando-se semelhante aos humanos” (Fil 2,6-7). Quanto ao evangelho de João, cujo prólogo é uma peça que lhe foi acrescentada de fora e nunca mais será questão de “Logos”, é um texto particularmente difícil de situar entre o mundo judeu e o mundo grego, seguindo uma tradição narrativa sobre Jesus diferente da dos sinópticos e acrescentando-lhe diálogos com uma teologia sem nada que ver com os outros três, onde nomeadamente o motivo de Filho e de Pai ombreia com o de Messias, como se o ultrapassasse, e tendo uma fórmula – “o Pai e eu somos um” (10,30) – que, lida após as definições dogmáticas, se tornou praticamente incompreensível, tanto do ponto de vista do monoteísmo judeu como do pensamento platónico. Pode-se dizer que João ultrapassa os sinópticos na maneira de desafiar Paulo que não se interessava pelo “Messias segundo a carne”. Aqueles colocam a questão de Jesus segundo a carne, isto é, antes de morrer e ressuscitar, ser o Messias no coração das suas narrativas, enquanto que o motivo de Filho de Deus importado de Paulo tem neles um papel secundário, embora crescendo em Mateus e Lucas, mas nunca tendo a relevância narrativa como a do título de Messias. João, por sua vez, mantendo embora a questão do Messias na sua narrativa e nos debates dela, coloca também o Filho de Deus duma forma que seria impensável para Paulo;  no entanto, segundo o prólogo, o Logos tornou-se carne e Filho em Jesus (1,14), não haveria Filho antes, apenas o Logos. Embora a meu ver se possa ser crente apesar desta génese, estas questões que estou colocando têm pressupostos que as anulam a quem elas incomodarem: basta que se considere que todas as cartas atribuídas a Paulo (excepto Hebreus) são dele, para esta restituição genética ficar bastante coxa, nem sequer vir à cabeça. Ou, mais simplesmente, crer que tudo na Bíblia é ‘palavra de Deus’.

Platão salva o cristianismo reduzindo a letra da Bíblia
9. O vazio para olhos judeus resultante dum Messias que afinal não era Messias, pois que não voltou quando era esperado, leva a que as comunidades cristãs, que deixam praticamente de recrutar judeus e serão compostas praticamente apenas de gente de cultura grega, vão tendendo a olhar as coisas na perspectiva desta: nomeadamente, a ressurreição dos mortos é mal vista face à condenação platónica do corpo pela “alma imortal”. É notável que os textos da Bíblia cristã aguentam muito bem o balanço a favor da ressurreição e ignoram a imortalidade da alma, mas aquela será cada vez mais difícil de aceitação filosófica ao longo do século II, donde que a tendência será a acentuar o Filho de Deus e a sua pré-existência, que subordina a ressurreição. O que é sintomático: uma meia dúzia de textos de intelectuais cristãos dirigidos aos seus congéneres pagãos[8] nem sequer citam os nomes ‘Jesus’ ou ‘Cristo’, apenas ‘Filho de Deus’. Celso, filósofo platónico critico do cristianismo (178), escreveu que “a sabedoria bárbara vale pouco se não for corrigida e aperfeiçoada pela razão grega” (Contra os cristãos, § 2), anunciando assim a grande operação filosófica platónica de Orígenes de Alexandria (185-254), que se pode dizer ter sido o fundador da teologia grega cristã como o outro grande painel do discurso cristão, ao lado do painel bíblico, conservado na liturgia mas interpretado por olhos platónicos (aristotélicos, no século XIII[9]). O que se passou de extraordinário, do ponto de vista histórico, foi um velho discurso filosófico de seis séculos apoderar-se deste jovem discurso judeo-cristão que lhe chegou às mãos e elaborar-lhe uma ortodoxia que o veio a validar aos olhos de dirigentes futuros e a permitir a Cristandade medieval donde surgirá a Europa. Depois de Paulo e de João, Orígenes foi um novo ‘salvador’ do cristianismo.
10. O platonismo é a redução filosófica de tudo o que é corporal e histórico pela prevalência apenas da alma imortal, o que significa que o novo discurso cristão reduz o bíblico donde veio, criando uma hermenêutica dos sentidos bíblicos que transfere o chamado “sentido literal” ou “histórico” das palavras e imagens metafóricas em “sentido moral” ou “espiritual”. O que afecta nomeadamente a maneira de falar de Deus. “Pela sua palavra os céus foram feitos, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos [os astros]” (Psalmo 33,6), eis uma formulação bíblica, que retoma o antropomorfismo da criação, em Gn 1 a Palavra criadora e em Gn 2 o sopro que dá vida a Adão; palavra liga-se à Sabedoria, o sopro da boca ao Espírito santo. Mas não é suficiente, há que recorrer à noção de Pai e de Filho, que ela própria põe problema ao teólogo platónico, lendo aí uma metáfora humana, implicando semente de macho e ventre de fêmea. Pelo contrário, “o Logos de Deus, escreve ele, a sua Sabedoria, recebe nascimento do Deus invisível e incorporal, como um acto de vontade procede da inteligência” (Traité des Principes, 1976, p. 239-240): sem semente nem ventre, só guarda “a unidade de natureza e de substância para o pai e para o filho” (idem, p. 41). Phusis e ousia, aqui estão as palavras filosóficas que vêm acolitar o “Filho de Deus” da carta aos Romanos de Paulo 1,4, recordando o “definido” e substituindo Messias, ressurreição e Sopro santo: trata-se da mesma ousia, tese que o concílio de Niceia (325) consagrou com a palavra homoousios (mesma natureza do Pai e do Filho) e o de Calcedónia (451) as duas ousiai (naturezas) do Filho, humana e divina, o dogma da incarnação, enfim. Nada a ver com a ressurreição, que permaneceu na liturgia como festa principal do ano, a Páscoa, mas ficou sem papel nenhum na teologia dogmática ensinada nos seminários, por exemplo, como também não Messias nem nada que tivesse a ver com as narrativas evangélicas de Jesus.

Questão especulativa : porquê pai / filho ?
11. Resta uma questão especulativa: das três hipóteses que, por exemplo, Orígenes considera para dizer a ‘segunda pessoa da Trindade divina’, a Sabedoria (Sophia), o Verbo (Logos) e o Filho, porquê foi este último que ganhou e nenhum dos outros dois candidatos, ambos filosófica e teologicamente possíveis ? Foi a filosofia que decidiu do lado da tradição de Platão. Com efeito, escreve Derrida, a propósito quer do Fedro quer do Teeteto : “[...] prestar uma atenção sistemática – o que, que eu saiba, nunca foi feito – à permanência dum esquema platónico que atribui a origem e o poder da palavra, precisamente do logos, à posição paterna. [...] a origem do logos é o seu pai. Dir-se-ia por anacronia que o ‘sujeito falante’ é o pai da sua palavra”[10]. A que questão responde este esquema que o prólogo de João retoma, sabendo-o ou não? No Teeteto, cabe ao parteiro Sócrates avaliar se o discurso do discípulo que ele interroga é verdadeiro, ou se é falso, uma quimera, um aborto, enquanto que no Fedro é o autor do discurso que responde por ele, como um pai pelo seu filho, enquanto que o texto escrito é um bastardo, sem pai que responda pelas dificuldades que o leitor encontrar. Nesta metafórica, o autor do discurso (logos) é o que tem o pensamento (dianoia) e, segundo o Sofista (263e), trata-se do ‘mesmo’, pensamento e discurso, mas o primeiro, diálogo da alma consigo mesma, sem voz, é inacessível a outrem, de que apenas o segundo é testemunha. Não se trata da questão da mentira, mas da do erro: mesmo errados, pensamento e discurso são o ‘mesmo’, é para isso que é necessário o papel maiêutico de Sócrates que só tem acesso ao discurso, ao logos, ao filho.
12. Ora bem, o prólogo de João começa por “No princípio era o Logos, e o Logos era junto de Deus, e o Logos era Deus” e adiante “[...] ele que, nem sangue nem vontade de carne nem vontade de homem, mas Deus gerou. E o Logos fez-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que recebe do seu Pai como Filho único” para terminar “nunca ninguém viu Deus, o Filho único, no seio do Pai, fê-lo conhecer” (1,1,13-14,18). Aplicando a ‘mesmidade’ do Sofista a Deus inacessível (nunca ninguém o viu) e ao Logos, este torna-se Filho dele, donde que Deus se torne Pai, ao encontro da ‘mesmidade’ da filiação. O dueto que era conhecido em toda a Bíblia, era constituído por Deus e pela Palavra: por esta ele criara o mundo e falara aos profetas; o que era novo, era que ele fosse ‘pai’[11]. O versículo 14 transforma Deus em Pai e a sua Palavra em Filho: é a relação de filiação, a mesmidade de ‘género’ entre pai e filho[12], que é chamada para pensar o que está em questão, tendo implícita a ‘mesmidade’ platónica entre o pensador inacessível e a sua fala. Ora, o que está em questão, quer no platonismo, quer em Paulo de Tarso, é uma abertura do plano espiritual / intelectual, uma viragem além do que tinha sido recebido até então: é essa viragem que a relação de filiação deve permitir pensar em ambos os casos.

Um paradoxo: das endogamias judaica e grega à universalidade cristã
13. Para saber em que ela consiste, há que enfrentar um paradoxo (que, que eu saiba, nunca foi enxergado, se me é permitido repetir a desenvoltura de Derrida) constitutivo da história aqui evocada, a do encontro entre a cultura judaica e a cultura grega, em contraste forte com a cultura romana. Nesta, como se sabe, o paterfamilias dispunha dum poder despótico sobre os seus filhos que podia inclusivamente deserdar e adoptar até um escravo em lugar deles; em correlação com este menosprezo pelos laços de sangue, a cidadania romana será alargada progressivamente fora de Roma e da Itália, a povos bárbaros inclusive, a quem acabou por legar línguas latinas, deixando que o latim original se esgotasse. O contraste é flagrante com os Judeus, que se consideravam um povo eleito e não admitiam o casamento com ‘gentios’, conservaram as suas escrituras sagradas a ponto de voltarem a ressuscitar a velha língua delas; contraste igualmente com os Gregos, também eles se achando culturalmente superiores aos outros povos de línguas ‘bárbaras’, também privilegiando o casamento endogâmico e tendo trazido a língua da sua cultura até hoje, apesar das múltiplas ocupações por outros povos após os Macedónios, dos Romanos aos Turcos. Ora esta endogamia feroz e a respectiva intolerância para com os povos vizinhos implica claramente uma importância desmedida da relação pai / filho, não apenas ao nível do sangue mas da casa e da cultura, em contraste com os Romanos que nos deixaram o direito como herança mas se cultivaram filosoficamente com o que receberam dos Gregos. Ou seja, há nesta Antiguidade que herdámos dois casos de fronteiras apertadas que tiveram como frutos elaborações culturais decisivas para o berço da Europa futura. Mas estas fronteiras cerradas implicavam o não expansionismo[13] (que os Romanos cultivaram fortemente) e portanto que essas elaborações culturais não se destinassem a sair deles, não fossem ‘universais’. Foi preciso serem empurradas para fora, os Gregos por Alexandre que fundou o farol intelectual do helenismo no seio do império romano, Alexandria, os Judeus por Tito que os expulsou da Judeia e de Jerusalém, dando saída às igrejas cristãs que seguiram os caminhos de Paulo de Tarso, o qual por sua vez fora empurrado para a viragem pela crença forte na escatologia iminente, que o tornou expansionista por urgência (pensou em vir até à nossa península). A viragem de Platão foi para a filosofia: a definição e a alma imortal como paradigma individual do pensamento, o privilégio deste – inacessível – sobre o logos comum e democrata, dando origem a um paradigma gnosiológico que Aristóteles prolongou em várias ciências que a Physica unificava.

14. Voltemos à filiação: porque é que ela permite pensar as viragens? O que é que há de esclarecedor da viragem cristã na Trindade Pai, Filho e Sopro santo, que faltaria em Deus, Verbo e Sopro santo ou Deus, Sophia e Sopro santo? Provavelmente a relação da fecundidade, tal como ela é fortemente privilegiada entre Gregos e Judeus, como o segredo da reprodução das sociedades agrícolas patriarcais endogâmicas. No mundo filosófico grego, para se pensar a fecundidade, recorreu-se além da filiação[1] a outro exemplo também de tipo familiar, o motivo do género (generalidade, geral) – que compreende várias espécies e indivíduos diferentes – que releva do espanto face à fecundidade, a potência da phusis, que do menos saia o mais. Ora, como o que se encontrou na Alexandria de Orígenes foi o helenismo, isto é, a cultura grega praticada por povos bárbaros, a receber no seu seio uma narrativa judaica trazida por gentios, parece que a compreensão do cruzamento destes dois êxodos culturais – de que somos descendentes – pela relação pai / filho a um nível de metáfora transcendente, universal, só terá sido possível pela quebra dessa relação endogâmica a nível antropológico, pela viragem em relação às duas culturas de origem. Se as grandes aventuras da inteligência e da ética só foram possíveis em mundos endogâmicos, a Filosofia no grego e a Bíblia no hebraico, a relação pai / filho do cristianismo veio a poder ser a criação por um Pai universal dos humanos além fronteiras e participando do Filho. Ora, que os evangelhos recorressem a parábolas de plantas que crescem para ilustrar o Reino de Deus, um contexto não directamente antropológico de sublinhar a sua fecundidade, a 30, 60 ou 100 vezes, tendo como fruto o amor do próximo – entre irmãos com um Pai – digamos a ‘generosidade’ que o género exibe como a sua marca, a que resulta do amor sexual. E há um passo de Mt 23,8-9 que leva a viragem ao mais alto nível – “vocês são todos irmãos, não chameis a ninguém vosso ‘pai’ na terra, porque só tendes um, o Pai celeste” –, o da recusa do ‘pai’ do patriarcado judaico. Grande diferença aqui se coloca para com a filosofia e suas discussões à luz dum parteiro estéril no Teeteto: é o amor do próximo que decide em última análise da verdade cristã, como se diz na 1ª carta de João 4,20, carta em que “Deus é amor” e tudo são relações de filiação e fraternidade.


[1] Aborda-se assim a a diferença neurológica entre a mente de Damásio e o que ela publica como o seu discurso, oferecido à psicologia. Com a primazia do interior sobre o exterior, ignorando a aprendizagem daquele a partir deste como relação social.


Filosofia e cristianismo no berço cultural da Europa
13. Ainda que não se seja crente – nomeadamente que não se precise de nenhum ‘criador’ para compreender as fecundidades que a biologia molecular nos esclareceu enfim, esvaziando as variadas mitologias das antigas sociedades agrícolas que dependiam das colheitas e rebanhos fecundos para sobreviverem de que não controlavam a fecundidade, eram favores divinos nas mitologias (por exemplo, 1Co 15,37-38) –, ainda assim há que reconhecer que esta dogmática filosófica que criou a teologia cristã salvou o cristianismo, ao dar-lhe um discurso à altura do platonismo espiritual das elites gregas e romanas, permitiu-lhe sobreviver além das narrativas de milagres e ressurreições, como não o conseguiram as outras escolas filosóficas e espirituais suas contemporâneas que soçobraram com o império romano[14]. Salvaram-no na parte ocidental do antigo império como Cristandade que veio a inventar, por força quer da filosofia quer da teologia quer do direito romano, as universidades medievais que foram, tanto quanto sei, o caso único em toda a história dos humanos[15] de sociedades que tiveram um berço cultural de discussão dos textos antigos, antes e como condição de se estruturarem como Europa, a partir de 1450-1520, com a invenção da imprensa e o protestantismo, as descobertas dos oceanos e continentes e o humanismo da Renascença (ver o meu e.book  Da Natureza à Técnica).





[1] Como as assembleias democráticas de Atenas, o termo significando os ‘convocados’ ou ‘chamados’.
[2] Parménides, 135c. Importante que o exegeta bíblico saiba algo de filosofia, mas há que dizer que esta relação entre a definição e as Formas ideais não é habitualmente referenciada entre filósofos, que eu tenha dado alguma vez por isso.
[3] Metafísica 1078b18-34
[4] A escrita dos textos contraíu o carácter colectivo que se encontra em Daniel e em Paulo para o indivíduo Jesus, tornando a figura enigmática até hoje para o comum dos exegetas.
[5] Coberta nos nossos textos pela chamada multiplicação dos pães”, sendo que o número de 5000 se encontra em todos os quatro evangelhos, assim como o seu lugar decisivo para a subida para Jerusalém.
[6] Um dos exemplos mais notáveis é que a cena de confrontação com o Templo e com as sua autoridades, que nos sinópticos é a causa óbvia e obviamente política de prisão e condenação no acabamento da narrativa, é transferido por João para o início, no cap. 2, terminando a cena contra a ‘ignorância’ que Marcos lhe atribuía : “Jsus conhecia-os a todos e não precisava de ser industriado sobre ninguém, ele sabia o que há no homem” (Jo 2.24-25).
[7] O que confirma Trifão, o personagem judeu dum diálogo do filósofo cristão Justino, do sec II  (67,2 e 68,1).
[8] A Diogneto (125-6), Aristides e Quadratus (125), Hermas e Taciano (cerca de 150), Atenágoras (176).
[9] Desta viragem medieval de Platão e Agostinho para um Aristóteles platonizado (metafísico sem physica) a obra prima é a Suma  teológica de Tomás de Aquino : trata-se com efeito dum tratado de argumentação filosófica sobre odado cristão, sendo  os argumentos propriamente teológicos encerrados em “sed contra que decidem da doutrina sem intervirem na argumentação filosófica. Refundador digno de Orígenes, o fundador.
[10] Derrida, “La pharmacie de Platon”, La dissemination, Seuil 1972, p. 86.
[11] Apenas quatro textos falam de Deus como pai dos israelitas, só um mais antigo, de Jeremias (3,19) do século VI a. C. O monoteísmo rigoroso da Bíblia hebraica impedia ‘um’ filho de Deus.
[12] Sem a mãe (cujo epíteto de “Mãe de Deus” desencadeará o dogma da incarnação, que virará “sempre Virgem”, esquecendo-se os outros filhos de que falam os quatro evangelhos.
[13] Os Gregos fundaram colónias na Ásia Menor e no sul da Itália, mas que eram cidades gregas habitadas por gregos, não ocupação de outros povos.
[14] Com a ajuda aliás da intolerância atroz dos  dogmáticos cristãos que herdaram de Roma a veritas imperial (veni, vidi, vinci) que, segundo Heidegger (num seminário sobre Parménides), deita abaixo, faz cair (fallere) o ‘falso’ e deu a Inquisição, o dogma condenando os hereges (Eliane Escoubas, ver no meu Heidegger, pensador da Terra, § 47).
[15] Comparável apenas ao mandarinato chinês e a sua literatura que aguentou um império de mais de 2000 anos.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A pós-verdade e a lei da verdade



1. O filósofo italiano Maurizio Ferraris, de Turim, cujo nome não conhecia e que teve colaboração publicada com Derrida, deu uma entrevista ao Le Monde (30/12/2017) sobre a noção de “pós-verdade” aparecida ultimamente que merece reflexão. Ele pensa que ela proveio das tecnologias electrónicas, telemóveis e computadores com as redes Web, que tiveram dois efeitos que ele cunhou numa nova expressão, a revolução documedial. O primeiro é a explosão de documentos: antigamente eram raros, os livros guardados em bibliotecas, os contratos em arquivos e os bilhetes de identidade nas carteiras de cada um, enquanto que “agora, cada uma das nossas navegações na Web e cada uma das nossas comunicações quotidianas, cada um dos nossos movimentos, produz um rasto registado, de maneira quase inconsciente, inadvertida, incontrolável”. O segundo: “o smartphone é não apenas um receptor, como eram os nossos aparelhos de rádio e televisão, mas um emissor de informação e muitas vezes ambas as coisas no mesmo gesto nas redes sociais [...] qualquer habitante, russo, americano ou o que seja, presidente dos EU ou qualquer tipo, pode dizer o que quer que seja sem ser verdadeiramente corrigido. As categorias de verdadeiro e falso são neutralizadas pelo número. A verdade é atomizada. É isso a pós-verdade, não o desaparecimento da verdade, o triunfo da mentira e da pseudo-cultura que denunciava Nietzsche, mas mais a cacafonia de milhões de pessoas, cada uma convencida de ter razão. Nunca tivemos opiniões e crenças tão discordantes”.
2. Estas afirmações merecem reflexão, acentuam um ponto muito importante da dificuldade dos discursos publicados hoje em dia, face a esta cacafonia de gente convicta de que eu faço parte: as instâncias de referência de argumentos e de valores, como se diz, ficam como que submergidas, porque há muito ruído e sobra pouco tempo, livros e jornais de qualidade são cada vez menos lidos. É certo que dantes não havia tantos leitores como isso, mesmo ter aprendido a ler na escola não significava ter-se ganho hábitos de leitura de jornais, mas saber que há quem conclua cursos de direito e proclame o seu alívio de deixar de ter de ler livros ou jovens economistas admirarem-se de ver um amigo da mesma idade a ler em férias um romance, mostra que televisões e internets chegam para ‘informar’ gente com diplomas que supõem uma certa literacia exigente. Continua a haver, ou voltou a haver, relativamente poucos leitores proporcionalmente, como dantes, em que a religião confortava a grande massa de analfabetos, que hoje foi substituída pelos médias e a sua grande massa de iliteratos que aprenderam a ler, de que Bush e Trump são exemplos.
3. Mas uma entrevista tem limites mesmo para um filósofo, esta explicitação da pós-verdade põe em questão o que fenomenologicamente me parece ser a lei da verdade, que regula toda a circulação das línguas duplamente articuladas, assim como a ‘lei da gravidade’ regula a cena físico-química dos astros, a ‘lei da selva’ regula a circulação dos animais vivos e a ‘lei da guerra’ regula as sociedades humanas, sendo embora os respectivos estatutos destas ‘leis’ diferentes, consoante o tipo de ‘regulações’, de regras. Comparada com as outras três, a lei da verdade é menos agressiva, embora não menos exigente no seu alcance de disciplinar a nossa bioquímica hormonal que depende da lei da selva e da guerra, as quais supõem por sua vez a da gravidade; isto é, a lei da verdade destina-se a corrigir excessos que das outras provêm: destina-se justamente a evitar cacafonias. Bizarramente, Ferraris a dado momento diz que a cacafonia actual vem provar a noção de “mónada” de Leibniz, quando o papel de possibilidade de entendimento entre mónadas vem precisamente da lei da verdade jogando sobre as línguas; ora Leibniz que, como toda a filosofia europeia até bem recentemente, ignora a linguagem e as línguas na sua metafísica, atribui esse monadismo a Deus, coisa que nunca consegui entender e que seria “evidente” nesta verdade atomizada. Há uma espécie de sintoma do discurso do filósofo, como se, apesar da sua proximidade com Derrida, a verdade não tivesse a ver com as línguas.
4. Em que é que consiste a lei da verdade? Ela testa-se a partir do motivo fenomenológico de usos sociais que, para serem aprendidos, são ditos em receitas com nomes de coisas e acções, nomes e verbos que são testados na sua ‘verdadeira’ acepção pela efectividade do uso que dizem. Não há palavras sem coisas nem coisas sem palavras, é essa a condição estrutural da linguagem e da sua lei de comunicação entre os falantes: usos, receitas e instrumentos são comuns nos paradigmas das unidades locais, quer familiares e arredores, quer de empregos. A lei da verdade é tribal, desenraizável. Aprende-se a falar aprendendo-se a fazer: a língua, os usos e a técnica, os costumes e a disciplina, vêm a par e crescem a par, segundo os paradigmas da tribo. Quando se vê toda a minha gente, de idades e competências bem diversas, funcionarem no dia a dia com grande habilidade no fazer e no dizer, os usos e costumes da tribo bem ‘biologizados’, se se pode dizer assim essa espontaneidade em que desaparece completamente a oposição entre natureza e cultura, pode-se perceber que é o mesmo jogo de sentidos das palavras e frases que se dizem que é, por regra, mais ou menos bem compreendido pelos outros que aprenderam os mesmos usos na mesma língua. Este jogo de sentidos da linguagem nos paradigmas dos usos das unidades sociais só é possível por haver uma lei que regula quer as relações linguísticas entre palavras e frases quer as relações de significação dos seus nomes e verbos às coisas e acções dos usos: é a lei de verdade dessa língua, que é diferente da das tribos estrangeiras. A lei da verdade não obriga a dizer verdade nem impede de mentir ou de errar, a capacidade de dissimulação é prévia à ética, lembrei num texto recente. Mas ela impõe que a mentira ou o erro só possam circular se tiverem a aparência de verdade: a crítica visa justamente essa aparência, denuncia essa dissimulação.
5. Nas sociedades actuais que, como se diz, são cada vez mais “sociedades de conhecimento”, as unidades locais de emprego são cada vez mais especializadas, o que implica, por um lado, a forte necessidade de verdade nos respectivos paradigmas mas, por outro, que entre os indígenas de paradigmas diferentes se vão tornando relativamente estrangeiros uns aos outros, permanecendo as unidades familiares e arredores como lugares de entendimento, com as diferenças de classe todavia bem marcadas. Ora, nesta zona do social extra profissional em que predomina o familiar e seus arredores (amigos, vizinhos, conhecidos, aqueles a quem se dá o ‘bom dia!’ ou se aperta a mão), os médias tradicionais como os recentes têm parte cada vez mais premente, no sentido em que fazem pressão ‘ideológica’ em sentido geral, tendendo a criar relações de clientela com os respectivos ‘conteúdos’, como se diz, e a apartar frequentemente os parceiros de paradigma uns dos outros, em termos de geração e de preferências diversas (politicas, culturais, desportivas, etc.): desde a guerra iluminista pela verdade humanista contra a verdade religiosa que essa pressão ‘ideológica’ foi sofrida muitas vezes como o ‘assédio’ e por vezes o ‘rapto para outros costumes’ tanto de rapazes (sobretudo ideais políticos ou filosóficos) como de raparigas (romances nomeadamente), tendo o apogeu surgido nos anos 60, no famoso 1968 do Japão à Califórnia passando pelo Maio e Junho de Paris: a explosão dos jovens, das mulheres, dos erotismos em sua diversidade de orientação. Durante os últimos dois séculos, os da generalização escolar e da promoção da razão no paradigma politico e social, os médias partilhavam-se segundo correntes, progressistas e conservadores e variantes, com os respectivos paradigmas de verdades, assim como partidos e outros tipos de associações, que aliás defendiam bem as famílias dos ‘raptos’, assegurando que essas correntes, tal como outrora as religiosas, se transmitissem por herança familiar.
6. Ora, esta variedade de posições publicamente e mais ou menos colectivamente afirmadas é frequentemente posta em questão por fenómenos de moda em domínios de ‘consumo’ de ritmo fatalmente lento[1], que criam uma uniformidade de gostos em público que contraria as diferenças e as oposições tradicionais mais lentas e duradouras. Pode-se pensar que a continuação da ocorrência de modas será uma como que objecção pontual à noção de pós-verdade, como Ferraris a propõe. Como não sou frequentador de redes sociais, a minha dificuldade é grande para avaliar o que lá se passa, o que perturba quem por lá anda e se lembra de como era dantes. A questão não é a de contestar a sua análise, mas a de saber quais os limites desta pós-verdade: creio que ela só pode jogar fora dos paradigmas das unidades locais. Com efeito, a zona de circulação dos discursos dos médias reside na ampla esfera entre unidades locais, quaisquer que sejam, por uma razão simples: qualquer unidade social reproduz-se no dia a dia e no ano a ano através dos seus usos específicos e o próprio destes é a sua rotina, a qual só interessa aos próprios. Em que é que consistem os ‘circuitos’ dessa zona pública de circulação dos discursos, que desde a invenção dos livros e dos jornais sempre foi a coisa dos médias? Digamos que os ‘dizeres’ aí são por regra sem ‘fazeres’ ligados, conversa de narrativas sem contexto e opiniões soltas, o que permite a dita ‘manipulação’ (curiosa aqui a palavra, que implica as ‘mãos’ quando se trata sobretudo de palavras e imagens). Chama-se-lhes habitualmente “meios de comunicação social” e não se costuma meter os livros nessa designação, provavelmente porque a sua tradição académica e de saber, que resultou historicamente na dita sociedade de conhecimento, bem como a tradição literária dos romances, impõem respeito, o que eles escrevem e se lê (de maneira individual, como nós hoje diante dos ecrãs computacionais) é ‘mais elevado’ do que os médias, que justamente estão mais perto da ‘mediania’. Ora, essa zona de saberes especializados valorizados (mais do que a literária, que busca leitores) continua a funcionar em seus paradigmas mais ou menos académicos: fugirão eles ao turbilhão da pós-verdade? Creio que, relevando de usos especializados, formam com os usos domésticos (não necessariamente com os costumes) as duas barreiras sociais sólidas de verdades. Não quer dizer que essas rotinas não sejam atingidas: os smartphones intervêm no funcionamento das unidades familiares criando indisciplina, sobretudo juvenil, como é sabido, mas isso faz parte de ser novo, foi sempre um pouco assim. Não será por aqui que o barco vai ao fundo, a lei da verdade impedi-lo-á, porque a rotina dos usos que ela regula, estruturando-nos, são mais fortes. Mas os movimentos sociais frequentemente buscam alterar rotinas, nomeadamente em seus aspectos financeiros, o que chamamos ‘revolução’ consiste justamente em alterações de usos, por razões politicas, tecnológicas ou outras.
7. Então, como caracterizar a tal zona da “comunicação social”, hoje prolongada pelos receptores tornados também emissores? Terá os seus paradigmas de enquadramento dos textos, são eles que estão a sofrer revolução. Os jornais, por exemplo, dividem o que propõem em secções além dos destaques de actualidade, sociedade, política, economia, educação, cultura, gastronomia, desporto, espectáculos, opinião e por aí fora, com jornalistas especializados em certos sectores, mas estes não são estanques. Não sei se se pode encontrar neste tipo de classificações, que mais ou menos se repetem em médias de tendências diferentes e por vezes opostas, critérios para induzir análises dos turbilhões da tal pós-verdade. Creio que, se a questão tem a ver com mentiras e falsidades deliberadas, haverá que saber, não tanto as matérias em que se mente, mas os seus alvos: a resposta supõe que se mente a pessoas e por causa de pessoas; então na comunicação social, a pós-verdade rodará no cenário de pessoas públicas, de gente do social, da política, do desporto, do cinema, etc., onde quer que haja paixões que afectem espectadores e emissores. A descrição que Ferraris faz das mónadas em seus telemóveis é a duma anarquia como nunca os anarquistas a terão concebido, mas pode-se pensar que a maior parte funcione mais à maneira dos rebanhos, que fazem como vêem fazer. E que depois virão outras modas. Um bom teste a ela são os tweets de Trump. Ele mentirá por vezes, mas creio que é um narciso autista que acredita mesmo naquilo que ele diz, enquanto todo o mundo abre os olhos de espanto. O teste será aos que ainda acreditam nele, para quem as imbecilidades trumpianas são verdades que pelos médias lhes vêm: por quanto tempo?
8. P. S. A lei da verdade repousa na indissociabilidade das receitas e dos usos, do dizer e do fazer, que é o argumento decisivo contra todos os cepticismos da história da filosofia ocidental, que dependem da oposição entre ideias e realidade, entre palavras e coisas. Além dos nomes das coisas usuais, as palavras soltam-se metaforicamente – ‘folhas’ de árvore, ‘folhas’ de livro, massa ‘folhada’, ‘folha’ de Flandres… – e outras polissemias da economia da língua. Depois de ter escrito este texto, li numa revista on line do departamento de Filosofia da Universidade do Porto, um texto da filósofa francesa Claudine Tiercine, Que valent les idées face aux croyances ?, que termina discutindo o cepticismo : nem ‘ideia’ nem ‘crença’ nem ‘cepticismo e conhecimento’ invocam alguma vez a linguagem, tudo se passa na oposição entre ideias e realidade, como se cada pensador fosse uma ‘ilha’, sem história dos paradigmas filosóficos em que se entra nessas questões e se as discute com seus códigos, verdade e falso, etc. A sensação bizarra que me deixou, que há muito tempo que não lia textos deste tipo, trata-se duma professora do Collège de France, não é qualquer pessoa, foi a de não ter nada a dizer sobre as várias posições citadas, que simplesmente me parecem mal postas, ou então eu é que provavelmente não sou ‘filósofo’ (felizmente). Resumindo e concluindo : a pós-verdade será muito menos atomizada, joga-se em paradigmas flutuantes que usam palavras tresmalhadas e as cruzam ao sabor dos incessantes acontecimentos, mas têm as suas regras que poderão ser estudadas.

[texto que tinha por publicar, com uns dois ou três anos]

A lei da verdade

1. A noção de verdade abriu falência no seio do pensamento ocidental. Apercebemo-nos de que as nossas principais verdades, as que foram acreditadas como absolutas, precisaram de ser definidas as filosóficas, proclamadas dogmaticamente as teológicas, discutidas pela comunidade científica as das ciências laboratoriais. Esta nova atenção histórica concluiu que essas verdades, que se queriam universais e eternas, tinham uma história, e que portanto, como tudo o que é histórico, eram relativas às situações que as definiram, as dos filósofos gregos, da igreja cristã triunfante em Roma, dos laboratórios do renascimento europeu. Desta descoberta resultou posteriormente a atitude contrária à dos absolutismos, um relativismo generalizado: ‘não há verdades’. Que se acentua face às ‘verdades’ dos fanatismos que nos surpreendem e por vezes nos aterrorizam, que se manifesta no facto de que hoje os filósofos não ousam reclamar a verdade para os seus argumentos[2], de que os cientistas crêem que as verdades científicas são provisórias, “erros adiados”: a física de Newton já não seria verdadeira após as físicas da ‘relatividade’ (Einstein não gostou do termo, foi-lhe imposto) e quântica (apesar de continuar a sê-lo nas escalas das engenharias correntes).
2. E no entanto, como falar ou escrever prescindindo da verdade do que se diz ou escreve, como estou fazendo? Como ouvir ou ler o que se pensa não ser verdade, como se tudo fosse ficção? Mentira, erro e ficção, em que consistem, se não houver critérios sociais de verdade? Há palavras que estão desaparecendo por um erro ‘massivo’ (tem a ver com ‘massas’, multidões) que substitui esta por ‘maciço’ (compacto, sem ocos), ‘havia’ que desaparece por ‘há’ (que deixa de ser uma forma verbal!) e, pior que todos, a inexistência do que deveria ser a palavra médias, como fazem franceses e espanhóis, em vez do colonialismo americano dos brasileiros que herdou o horrível ‘média’ como plural, e chega a ser dito e escrito ‘mídia’! Erro clamoroso!. Mas se for só eu a bramar contra ele, como pretender que é um erro? Com as regras de derivação das palavras portuguesas do latim, claro, e não latim-americano-português![3]. Essas regras são relativas, porque históricas? Sim, mas são verdadeiras. E não me parece que essa relatividade afecte a sua verdade linguística.
3. A língua como estrutura social é um conjunto de regras impostas inexoravelmente a quem a aprende como condição de sermos entendidos pelos outros da nossa tribo. Lei da verdade: corrigem-nos os erros, castigam-nos as mentiras, inquietam-se com as ficções, as ‘fantasias’. O meu querido mestre R. Barthes deixou-se levar ao erro de dizer que “a língua é fascista”, mas são essas regras que nos dão a liberdade de falar de forma não anárquica: elas compõem o social com o individual de forma extraordinária, sem corte possível entre um e o outro. Mas não se trata apenas de regras intra-linguísticas: quando aprendemos os substantivos e os verbos, aprendemo-los uns como nomes de coisas, plantas, animais e os outros de movimentos ou comportamentos: as palavras trazem consigo o mundo a dizer e a fazer. Também aí há regras, há metáforas e outras maneiras de estender os sentidos de palavras correntes a coisas menos correntes, há lugar para a liberdade do artista, para a transgressão de tal ou tal regra, nos limites em que essa transgressão é subentendida. Só nos entendemos a falar e a escrever, justamente porque as regras da língua que permitem dizer e contar e querer modificar o nosso mundo o fazem sob o alcance da lei da verdade, grande lei da circulação da palavra. Foi com ela que definições, dogmas e verdades científicas foram possíveis, assim como a respectiva discussão critica.
4. Tudo o que dizemos e fazemos (ou escrevemos) é ligado em paradigmas, tanto os dos costumes quotidianos e da sua moral, como os das diversas instituições, científicas, politicas, e por aí fora: as verdades são relativas às regras desses paradigmas (com a grande dificuldade de estes se cruzarem frequentemente). O que faz a relatividade da verdade é trazê-la, da universalidade absoluta, para a localidade temporal do que fazemos, dizemos e contamos em nossos discursos e narrativas, onde a mentira, o erro e a ficção só podem funcionar se se derem como verdadeiros: os dois primeiros até serem descobertos, a última com uma paleta mais ou menos variada de transgressões do realismo (ficção científica, literatura fantástica, etc.).
5. A língua multiplica os matizes do acesso à verdade, à certeza. À questão ‘é verdade que a Maria veio?’, posso saber que sim, ou pensar que talvez, ignorar, crer, duvidar, achar, julgar, imaginar, hesitar, e até ter-me esquecido. O verbo saber é o grande cúmplice linguístico da verdade, a sabedoria que ela pode trazer a uma vida.





[1] Já que dependendo de estruturas de produção pesadas e complexas, a rotina desses usos jogando contra a moderna por excelência de ‘progresso’ ou de ‘mudança’.
[2] Excepto, modéstia à parte, “a fenomenologia reformulada, em verdade” (Web).
[3] Além da luta contra o AO, há que prevenir a catástrofe, a nossa língua a tornar-se um crioulo do inglês.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O que é um jogo ?



1. Por exemplo, porque é que se diz que se joga às cartas ou ao futebol? Em primeira aproximação, porque se trata de coisas não sérias, comparadas com o trabalho no emprego ou com fazer o almoço ou comê-lo, é coisa de tempos ‘livres’; em seguida, porque um jogo tem as suas regras, que todos os parceiros têm que seguir, até um árbitro nos casos oficiais, para vigiar o cumprimento dessas regras, e ainda porque delas se conclui, no final do jogo, quem ganhou e quem perdeu, que há uma disputa entre adversários, o que significa que não se trata apenas de seguir as regras mas de, seguindo-as, de manifestar habilidade para se vencer o adversário, contando-se pontos, por exemplo frequente (a lotaria não é um jogo). E até sucede que certos jogos congreguem espectadores que se partilham em apoio a um (ou mais) dos adversários e se entusiasmam com as peripécias do jogo. Todavia, nos desportos oficiais, os jogos tornaram-se coisas ‘sérias’ de profissionais, negócios de muito dinheiro, sem deixarem de ser jogos.
2. Limitando-nos aos desportos, as ciências podem aplicar-se aos jogos? Sim e não. Há uma medicina desportiva, tratando de cada atleta, psicologia também, podendo ter um complemento colectivo de equipa; pode haver uma espécie de balística da bola (ou de ‘bolística’) que estude o percurso entre o pé e a baliza de um remate que subiu, curvou e desceu, e outras coisas do género. Mas não há argumentos físicos, biológicos, neurológicos ou antropológicos que expliquem o porquê do futebol ou do ténis ou do ping-pong, nenhuma dessas ciências pode deduzir das suas regras a razão de ser das regras de um qualquer desporto: são as próprias diferenças entre as regras, nos espaços tempos em que elas valem separando o jogo do não jogo – no futebol, que o guarda redes possa usar as mãos na sua área e as regras do fora de jogo impedem que haja muitos pontos, como os pode haver no rugby e os há no basquetebol, o tamanho das bolas no ténis e no ping-pong – as diferenças das regras mostram que elas são imotivadas em relação à lei da gravidade ou à anatomia humana e por aí fora. Este é o mesmo argumento que o de Saussure sobre a imotivação das línguas consoante os povos e seus usos, a que chamou ‘arbitrário’ antes de preferir ‘imotivado’: é a não motivação, a não causalidade da geografia, ecologia e antropologia em relação aos paradigmas das línguas, fonológicos (as pronúncias regionais) ou sintáctico-semânticos, que vale também para os paradigmas dos jogos desportivos. [O filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis estendeu esse argumento àquilo a que chamou a “instituição imaginária da sociedade”, portanto às estruturas organizativas das sociedades que serão imotivadas, sociedade por sociedade, em relação à física e à biologia, estendeu portanto o argumento além dos jogos, como estou a usá-lo aqui. Mas teria que o reler, passados mais de 30 anos da data em que essa leitura me fascinou e depois da qual aprendi muita coisa sobre ciências, mormente sobre biologia, e aprendi a não separar os domínios delas, ou melhor, a ter em conta a interferência da dimensão biológica na dimensão social dos humanos, teria que o reler para ter argumentos sobre essa proposta, em que o motivo de ‘imaginário’, provavelmente lacaniano, me parece incerto].
3. Ora bem, o que o desporto ajuda a perceber quanto ao motivo de jogo, é que a existência de regras – que não são apenas limitativas, tipo ‘no futebol os dez não podem tocar na bola com as mãos’, mas dizem também quando é que há golos, atravessada a linha da baliza adversária em condições legais – não se opõe ao carácter aleatório do jogo, bem pelo contrário, as regras são pensadas em função desse aleatório, para o tornar mais sugestivo e os jogadores mais hábeis. Ou seja, ao nível do conjunto do futebol (e não da medicina desportiva ou da ‘bolística’, dos casos pontuais em que se pode aplicar ciência) regras e acaso são indescerníveis, como escreveu Derrida: “o conceito de jogo anuncia, na véspera e para além da filosofia, a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”[1], fórmula esta que permite definir o que é acontecimento em geral. Não só um jogo é um acontecimento, como num jogo todos os lances são acontecimentos: esta é a condição da paixão dos contendores e dos espectadores. É por isso que não há ciência que permita prever o resultado dum jogo, desde que haja um mínimo de equilíbrio entre ambas as equipas, tal como as ciências não podem prever o comportamento dos fenómenos que observaram no laboratório fora do contexto deste, é por isso que o laboratório é necessário: fora dele só há ‘jogos’ ou ‘acontecimentos’, só há a unidade da necessidade e do acaso. Pode-se mesmo dizer que os desportos, com os seus estádios, courts ou ginásios e os tempos da competição, têm uma certa parecença com os laboratórios científicos: são experimentações – medidas em pontos que classificam as equipas – de disputas tal como as há na vida quotidiana, as suas rivalidades e habilidades para as suplantar. São estas as duas facetas do jogo: a habilidade dos jogadores e a beleza que dão aos lances, por um lado, o desejo de ganhar e de ser considerado o melhor, em comunhão com os outros adeptos e as equipas do seu clube. A vantagem destas experimentações é a de deslocar a lei da guerra das rixas e zaragatas dos bairros para os desafios desportivos e suas regras. Por vezes também as há, mas seria por certo muito pior se não houvesse tantas modalidades para se exercer habilidades físicas e gosto de ganhar.
4. É difícil aos cientistas entenderem esta noção de acontecimento ou de jogo, no entanto o que costumo propor sobre a circulação dum automóvel permite perceber como há dois níveis de compreensão: o do laboratório dos engenheiros que criam o automóvel, cada sua peça sendo testada segundo as regras descobertas pela física e pela química em condições de determinação, isto é, excluindo todos os outros factores de aleatório que jogam fora do laboratório, e o da estrada em que o aleatório é fundamental e determina teoricamente o lugar que as peças têm no conjunto; ou seja há dois níveis, o dos exames rigorosos de cada peça, que é um nível por definição laboratorial, fragmentário, a compor cada fragmento com todos os outros, e o nível desta composição teórica, que depende do aleatório da lei do tráfego. O que para o engenheiro (que inventa) é essencial, a atenção constante ao aleatório extra-laboratorial, parece ser difícil ao cientista que anda à descoberta laboratorial das leis, o que parece corresponder à diferença desde Einstein pelo menos, entre físicos teóricos e físicos de laboratório, ou entre os bioquímicos que foram analisando os ácidos nucleicos e Crick e Watson que imaginaram a dupla hélice dos genes. Mas provavelmente em ambos os lados se encontra a mesma concepção de ‘determinação substancial’ que impede de chegar ao ‘acontecimento’ ou ao jogo. Se um jogador dá um chuto forte, a física propõe que a força da perna provoca substancialmente o movimento da bola. Mas, pressupondo isso, as regras do futebol têm a ver com as diferenças de posição dos onze jogadores de cada equipa e os treinos com maneiras de delinear tácticas de onze a onze, contando com as habilidades de cada um, é claro, mas em função da correlação com os outros dez e com o que se sabe do onze adversário, sem que a ‘substância’ de cada jogada possa ser pensada (excepto nos casos de bola parada perto da baliza adversária, provavelmente treinados à parte).
5. Ora, a substancialidade veio às ciências da filosofia, as quais chegaram a um ponto de crítica do discurso religioso, com Laplace, por exemplo que não precisou do arquitecto para pensar o universo, que lhe opôs as suas descobertas como substituindo as verdades religiosas, colocando Deus como o “tapa buracos” de que elas vinham agora a prescindir, colmatando esses buracos com a razão experimental. Em relação a Copérnico e Galileu, nos começos da ciência europeia, e à biologia molecular nos finais, a crítica bate certo: tenho para mim que a ida à lua de Armstrong e seus companheiros e à dupla hélice e a engenharia genética que se lhe seguiu, foram das causas mais fortes do surto de secularização dos anos 60 e 70, além da libertação sexual e feminista (mais evidente no campo católico, que fizera antes uma forte tentativa de actualização moderna no chamado concílio Vaticano II). O Céu é o lugar dos deuses em todas mitologias e atravessa a Bíblia bem como o platonismo, é fácil de ver que uma máquina com humanos na Lua, no Céu, torna muito complicado ler a dimensão mítica desses textos veneráveis. A outra coisa é a fecundidade na Terra, essa estranhíssima capacidade duma semente minúscula atirada à terra dar uma árvore enorme com sementes para outras árvores, ou duma coelha dar várias vezes à luz uma caterva de coelhinhos, algumas das quais darão por sua vez outras tantas: este ‘menos’ que na Terra dá ‘mais’, esta fecundidade inexplicável foi sempre atribuída aos deuses pelas mitologias. Eis pois duas grandes descobertas científicas do que eram grandes mistérios e a fonte das suas respostas religiosas.
6. Mas..., há sempre um mas..., rapidamente os biólogos bioquímicos fizeram da sua grande descoberta a Causa determinista de todo  o organismo vivo e dos seus diversos comportamentos (hoje toda a gente fala do ADN como segredo de algo, pessoa ou instituição), tornando assim difícil de entender a grande lição de Darwin, que viu a evolução como ‘jogos’, pode-se dizer, ensaios e tentativas entre organismos em luta pela sobrevivência e seus contextos ecológicos variando, jogo que foi permitindo as pequenas transformações das anatomias desses organismos (como nos criadores de gados e engenheiros agrícolas). Com efeito, colocando um dogma sobre a possibilidade de os genes serem alterados pelo que chamam ambiente, transferem o ‘aleatório’ da evolução de forma substancialista para as mutações casuais dos genes, tão acertadas que, sem o saberem (os genes são cegos para o exterior), batem certo com os acontecimentos da ‘solução’ darwiniana da evolução. Ora, estas mutações “batem às cegas”, diz M. Barbieri, um excelente biólogo italiano, isto é, não têm regras, é a lei da selva que lhes escapa, não se trata de jogo e de habilidade dos jogadores, mas de lotaria, só acaso; ora, a lei da selva ‘determina’ as anatomias de todas as espécies animais enquanto capazes do jogo da alimentação para captar moléculas orgânicas, jogo em torno da predação, caçador ou fugitivo. Quanto aos físicos, recuaram até à origem matematicamente calculada da origem do universo e conceberam uma grande explosão que é difícil de entender senão como a nova aparência duma Causa primeira do universo, do Primeiro Motor aristotélico ou do Criador bíblico. Aqui o que é surpreendente a quem vê de fora é que é a própria causalidade ‘substancialista’ que é renegada – a revisão quântica extraordinária de todas as leis físicas desde Galileu e Newton e dos conceitos que até então vigoravam – no estatuto duma multidão de partículas a altíssimas temperaturas que, em vez de evoluírem, ‘desevoluem’ para temperaturas mais baixas e vão dando origem anarquicamente ao que antes não havia, matéria, espaço e tempo, enquanto que as explosões provocadas nos aceleradores de partículas parecem revelar, pelo contrário, que as partículas encontram-se no que chamam ‘acontecimentos’ mas sem se pegarem, fogem ou desfazem-se, sem que se saiba – e se se soubesse, seria o grande triunfo da mecânica quântica – se alguma vez se juntaram para formar átomos de hidrogénio ou de hélio, como se crê que sucedeu nesse passado mítico dos físicos. Ou seja, se for verdade que os grandes aceleradores de partículas não são nem laboratório nem cena extra-laboratorial, o que se passa neles será puramente casual, sem nenhuma necessidade:  novamente não é jogo, é outra vez lotaria! Será  isso a razão do grande assombro da epistemologia quântica? Não havendo ‘acontecimentos’ no sentido de algo que tem efeitos que perduram, não havendo jogo com regras e aleatório nos grandes aceleradores, poder-se-ia deduzir o mesmo para a nuvem de partículas do pós big Bang. Até à formação das estrelas, tudo parece manter algo da dimensão mítica desta ‘origem’, mas talvez que algum/a jovem cientista esteja a matutar numa nova especulação. Por mim, que já sou velho e sem divulgação, posso ousar o que quiser, posso disparar, disparatar.
7. Voltando à questão acima, o que Deus ‘tapava’ não eram buracos deterministas  desconhecidos que a ciência veio a abrir, mas buracos imotivados, resultantes de jogos ou acontecimentos. Deus era a Causa ou a Razão do jogo, mas a definição deste é justamente não ter causa ou razão, ser a necessidade unida ao acaso, aquilo que é impossível de pensar pela razão substancialista.


[1] Marges. De la philosophie, 1972, p. 7.