domingo, 14 de janeiro de 2018

“O olho e o mundo na fala” (Derrida)



1. “L’œil et le monde dans la parole” é uma expressão de Derrida (num pequeno livro sobre a economia do signo em Husserl, A voz e o fenómeno[1]) que tem a vantagem de relacionar vivos, coisas e as sociedades em que elas são trabalhadas, as ‘mãos’ fazendo parte da relação do olho ao mundo, relacionar entre si trêss domínios de ciências fenomenológicas adentro dum quarto, o domínio da linguagem. Nesse texto, a consciência é definida como “auto-afectação da voz”, o ouvir-se falar, ainda que não em voz alta: sendo a voz um movimento de frases ditas em sucessão, discurso estruturalmente temporal, tem no entanto uma diferença importante, enquanto parte do domínio da linguística e da semiótica e à diferença dos três outros domínios, física química, biologia e sociedades, a de a língua não ser composta de ‘entes’ e por isso mesmo exigir (tal como a música, os números e as imagens) um como que substrato em que se inscreva, no caso da fala correntes de ar, ou no da escrita papel ou equivalente.
2. [Vantagem de se estar reformado e de ter um blogue: pode-se ir escrevendo sem ter que obedecer a praxes e poses académicas, apenas ao gosto de ir pensando com o pensamento que vem, enquanto vem, tendo a boa ilusão de se ‘publicar’ (mas os livros também vivem da ilusão de serem lidos, sabe-se lá por quem, e ainda bem) que obriga a uma seriedade séria, ainda que ninguém leia, ou se alguém ler que tenha vontade de voltar]. O que agora veio foi ter percebido dessa frase de Derrida e duma outra que lhe anda perto, segundo a qual “não há fora de texto”, que as palavras não serem coisas, entes (assim como as imagens e os números, que a música é outro mundo ainda, o mais abstracto de todos), é primacial nas suas imensas – sem medida – possibilidades. As palavras são ‘nada’, puras diferenças entre sons aéreos, frequências eléctricas ao telefone ou suas ondas electro-magnéticas entre telemóveis, riscos ou pontinhos de Braille em papel ou ecrã de computador, ou ainda no cérebro que fala, ouve ou pensa sem voz, diferenças electroquímicas entre sinapses[2]. Tudo isto são exemplos de “matérias de empréstimo” usadas pelas línguas, expressão que o filósofo francês Alain inventou para a pintura. A questão é tentar perceber um pouco melhor como é que o ‘nada’ das palavras e frases joga em relação aos entes que são as pedras e a água, os cães e as gentes, as coisas dos usos quotidianos.
3. Em que consistem as falas ? Antes de mais, em nomes e verbos, aqueles sobre entes com estabilidade e temporalidade, ditos ‘substantivos’, estes sobre mudanças deles; depois em qualificativos de uns e outros, respectivamente ‘adjectivos’ e ‘advérbios’; depois em elementos permitindo situar locais e momentos, relação do que se diz a quem diz e ouve, e ainda junções de nomes com nomes e de frases com frases, maneiras de ligar estas para formar discursos mais ou menos longos, e por aí fora.  E ainda o truque de fazer dos qualificativos nomes (ou verbos) – de ‘bela’ a ‘beleza’ e a ‘embelezar’ ou de dois advérbios o conceito da filosofia medieval ‘aqui e agora’ – e de criar maneiras de falar sobre o que as frases podem fazer, uma das suas capacidades mais importantes sendo a de contar coisas passadas noutra época ou noutro lugar, fora do que se viu e testemunhou, isto é, fora do alcance do olho e do mundo que ele vê, abrir também caminho para algo antes nunca visto, o que chamamos invenção. O que chamamos ‘pensar’ e ‘saber’ passa-se em falas.
4. Tudo isto, frases ditas em vozes diferentes ou escritas em variadas grafias, que são ouvidas ou lidas com retiro da voz e do olho que disse ou do olho e mão que escreveu, o que passa assim dum ao outro ouvido ou olho é ‘nada’ que traz consigo algo do mundo, o que quer que seja que se possa dizer ou escrever por ter nome ou verbo que venha na fala. Este falar, porque é nada que se comun-ica, põe em comum, pode cobrir as coisas estáveis e as suas temporalidades, suceda ou não algo a estas. O que é ‘nada’, diz entes, gentes, lugares, momentos, circunstâncias, acontecimentos, incluindo ‘nadas’ como essência, liberdade, justiça, isto é termos sem lugar, momento e circunstância, e por aí fora. Um exemplo simples: ditar ao telefone uma receita de cozinha e o ouvinte cozinhá-la com os materiais de sua casa e os gestos que ouviu: a corrente de ar e a corrente eléctrica trouxeram as coisas pelos seus nomes e verbos, trouxeram-nas sem elas. E permitem dizer / pensar longe de coisas, o que lhes fiz ou quero fazer, sem lhes mexer nem ter que as mostrar, um ‘nada’ na vez delas mesmas, substituindo-as. Como com os números e as imagens, a fabulosa potência das palavras, das falas, que as não há sem olho (de cozinheira/o, no exemplo) nem sem mundo (nas mãos de quem cozinha), sem aprendizagem, assim: essa potência é o que se chama sentido. Não será pois por acaso que esta palavra designa também os cinco sentidos, lista que ignora justamente a voz da fonação, há muito tempo que isso me espanta. E porquê são ‘sentidos’? porque os ‘sentimos’, por certo, com relação aos ‘sentimentos’ que de dentro nos vêm, mas também porque com eles nos orientamos, no sentido do Oriente. Todos estes ‘sentidos’ juntos fazem sentido, a fala diz o sentido do olho e da mão no mundo, tal sentido é o pensamento, o saber. Não se pode separar, muito menos opor.
5. Mas foi o que fez Platão. Começou pelo Crátilo[3], em que se fartou de analisar etimologias de palavras gregas para as considerar como incapazes de chegarem a um saber fiável. Então, retiradas as palavras e a linguagem do conhecimento que almejava, pôde propor pela primeira vez na cronologia dos seus diálogos o motivo das Formas ideais eternas, contempladas pelas almas quando fora do corpo, nos intervalos das reencarnações. O que traduzo por estas duas palavras, uma latina a outra grega, é o eidos, que em Aristóteles dirá a ‘forma’ duma coisa, o seu ‘viso’ (traduzia Coelho Rosa), em francês ‘visage’ (rosto), o que se vê da coisa, sendo ‘eidos’ uma forma derivada do verbo idein (ver), donde veio a nossa ‘ideia’ europeia, que também é fora da linguagem e do mundo, até mesmo fora do olho, só intelectual, inteligível. Não sendo eterna, a nossa ‘ideia’ pertence em todo o caso ao inteligível do ‘eidos’ platónico, aquele que não tem relação com os tais ‘cinco sentidos’, com o sensível, que em Platão tinha a ver com os entes vivos, sujeitos à geração e à corrupção, ao nascimento e à morte (que horror! achava ele).
6. Esta grande separação platónica foi fortemente criticada por Aristóteles, que fez o primeiro ‘retorno às coisas’ da história ocidental da filosofia: juntou o eidos celeste, como ‘essência’, com a coisa, a ‘substância’ terrestre, mas estes dois termos são da tradução latina, nas Categorias são ambas uma só ousia, a distinção que deu as duas traduções sendo entre a ‘primária’, a ousia da coisa, e a ‘secundária’, a ousia da espécie. Mas fez isso como discípulo de Platão, isto é, juntou o que este tinha separado, deixando implícita a linguagem, se dizer se pode. Com efeito, esta teve sempre nos dois grandes socráticos o seu lugar no logos, como discurso (de razão)[4], e só tardiamente foi explicitada, coisa de grande espanto para nós, que somos de mais de uma língua: com efeito, só num dos últimos diálogos de Platão encontramos a distinção entre ‘nome’ e ‘verbo’, o Sofista (261d-262a), posterior ao Parménides, em que há uma viragem dos diálogos provocada pelas discussões com Aristóteles, jovem aluno da Academia. Por sua vez, este desenvolverá o que se chamará ‘lógica’ (de logos) sem fazer intervir (que eu saiba, mas são textos que não estudei) as várias partes do discurso estudadas no cap. 20 da Poética, do elemento (fonema) ao logos (exemplificado com uma definição e com a Ilíada), passando pelo nome e pelo verbo definidos como significando (coisas do mundo). E mais. No tratado de biologia chamado Da alma (todos os vivos têm uma, ‘vegetativa’, os animais também uma ‘sensitiva’ e três nos humanos, com a ‘intelectiva’), onde dos cinco sentidos e da fantasia se passa ao intelecto, sem que alguma vez se mencione um lugar para o logos, o qual, como se sabe, predomina na sua obra, nomeadamente na mais célebre definição filosófica, a do anthropôs (humano) como zôon echon logon (vivo tendo discurso), que Cícero nos transmitiu como “animal racional”, excluindo a implícita linguagem, que, bilingues, Estóicos e sábios de Alexandria já tinham desenvolvido como gramáticas. Não se trata de brincar com os Antigos: um neurologista tão advertido como Damásio, que sublinharia o meu ‘que horror!’ brincalhão, ele que se dedica só e tanto quanto pode ao que nasce e morre, não sabe ainda como meter a linguagem no cérebro humano: sabe instintivamente que vem de fora e tem uma concepção de cérebro como ‘criativo’, o que vai mais ou menos bem para as ‘ideias’.
7. Voltemos ao enunciado do título: ter acrescentado a ‘mão’ ao ‘olho’ e ao ‘mundo’ justifica-se? E os outros dois sentidos, do olfacto e do gosto? Para o justificar, suporia que, tratando Derrida de Husserl, um descendente de Platão e do predomínio óbvio da visão na tradição que veio dum ao outro (em Husserl, a percepção é “ante-predicativa”, prévia à fala), o ‘olho’ estaria lá, não apenas por ele, mas por todos os outros também, embora sobretudo por ele. É a isso que convida o outro enunciado de De la grammatologie, da mesma época (são dois textos de 1967), de que “não há fora de texto”. Deixando os neurologistas de lado, seria pedir-lhes demais, a questão é a da relação de conhecimento entre os humanos e o mundo em que eles são, “seres no mundo”, estabelecendo-se uma espécie de concorrência entre a fala e os cinco sentidos (ou os quatro, o ouvido sendo parte da fala que lhe responde), dizendo o do título que o olho estará, como dizer?, contido na fala (mas parole, sendo ‘fala’, também pode ser ‘palavra’, ex. ‘parole d’honneur’, nomeadamente no plural ‘paroles’, perto assim de ‘linguagem’), a questão sendo a de saber se os outros sentidos também nela se contêm, e o que é que isso significa. Sem dúvida que os humanos duma tribo selvagem (sem agricultura nem vilas) terão os seus sentidos muito mais apurados do que os nossos de civilizados, tal como os nossos cães têm um faro de muito maior alcance do que o nosso. Falando de nós, se pegarmos na questão da aprendizagem, parece claro que a fala é a última a ser aprendida, deveria ser subordinada aos sentidos que já lá estão. Acontece que todos nós nos esquecemos do que sabíamos desses tempos, o que é um índice para se pensar que à medida que fomos aprendendo a falar e a pensar, também fomos melhor discernindo o que se vê e que se vai nomeando, o que se mexe e se vai trabalhando, o que se cheira e saboreia e se vai encontrando nomes da tribo para ir distinguindo odores e sabores, mesmo que só para nós próprios: ‘tem falta de sal’, ‘a que é que me cheira? ah, é o frasco do éter que ficou aberto’, como os enólogos dizem a que sabem os vinhos. Também assim as matizes das cores e o problema dos daltónicos, tal como se educa o ouvido musical nomeando os sons dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, do solfejo. Então, o estranho “não há fora de texto” significará que o ‘mundo’ já está na fala, desde que se saiba, na vertente do Sofista de Platão, que falar também é pensar, ainda que não seja em voz alta. O que é que a gente vê, ouve, mexe, cheira e saboreia do mundo? O que aprendemos a nomear dele. Quando algo não tem nome, vai-se à procura dele, se for inédito, como sucede nas coisas do pensamento e da tecnologia, inventam-se novos nomes, em consentâneo com os que já há (hoje importam-se ‘aos montes’ nomes vindos dos Estados Unidos). Vemos pensando, mexemos e cheiramos e saboreamos pensando, trabalhamos e musicamos ‘no texto’. E este é feito de diferenças que jogam no que sabemos do mundo, complicando-o, subjectivando-o. Se pode parecer estranho, trata-se de não opor pensamento e sentidos, jogam juntos, nas palavras.
8. Isto releva da nossa tradição ‘intelectual’. O que é que esta perspectiva implica com o que se chama ‘espiritual’, ético e estético, por exemplo, a que, o que faço como fenomenologia jogando preferencialmente com ciências, não sabe dar grande cabimento, à falta de fenómenos ou de capacidade (minha) para os entender. Também são coisas que se aprendem, por certo, após as aprendizagens de base, creio, ou com elas talvez em alguns casos precoces. A palavra ‘espírito’ significa em latim sopro, como ‘pneuma’ em grego e ‘ruah’ em hebraico, sendo a filosofia platónica de Orígenes de Alexandria (iníco do sec III) que introduziu a noção de ‘espírito santo’ como “hipóstase intelectual”. Ora, o ‘sopro’ tem a vantagem de não ser ‘inteligível’, além do corpo e dos usos quotidianos, que pedem sopro muitas vezes, a vantagem de ter parte preponderante com a fala, justamente a que lhe vem da química, e por isso mesmo, a vantagem de poder dizer certos usos, éticos ou estéticos ou outros, para os quais se sopre ou se seja soprado além do corpo e dos usos quotidianos, como a coisas de maior preço, o tesouro que vale uma vida. Haja quem lhe sacrifique a fala sonora, faça profissão de silêncio para que toda a atenção dos chamados sentidos vá no sentido desse ‘além’ divino. Levinas quis desmarcar este sopro além da aprendizagem, como rasto sincrónico com a sua tribo, dando-lhe como fonte o que chamou traço diacrónico: nem sequer ‘sopro’, o ‘traço’ é um vestígio que não releva de outros humanos. Foi a maneira subtil que lhe restava para falar de Deus, quando a linguagem deixou de a permitir a diferença inteligível / sensível: subtil aliás porque justamente ‘não restava’, ele é que a inventou. Chapéu!



[1] Texto de 29/06/2016, neste blogue, Retorno à questão da mente (Damásio).
[2] O engano da gente de Sillicon Valley que trabalham com silício na Inteligência Artificial é julgarem que a electricidade de electrões que esta usa é o mesmo que a electricidade de iões das sinapses que trabalham com carbono. Um ião é, no caso, ou um átomo de sódio ou um átomo de potássio, os quais se podem transformar quimicamente um no outro trocando um electrão excedente : se a electricidade industrial, que Volta inventou ao inventar a pilha em 1800, fizesse o mesmo com o cobre, por exemplo, a corrente dava cabo dos cabos ou do hardware dum robot. Segundo as experiências de Kandler, em que aprender é criar sinapses, o que se passa no cérebro é que é o software, aquilo que é aprendido, que se torna hardware, impossível fisicamente para as máquinas de sílica. A dizer verdade, espanta-me que este engano exista, que o Vale do Silício não tenha dado pela coisa, eles a quem Inteligência Natural é que não falta. Estarei eu enganado ? não vejo como .
[3] Os eruditos discutem a cronologia dos diálogos de Platão. Este gesto de afastar as palavras do conhecimento como decisivo para a questão das Formas ideais é um critério para colocar o Crátilo antes de todos os que supõem-nas já, como o Ménon e, é claro, a República, a chamda grande digressão. Tenho um ensaio de leitura dos diálogos de Platão no blogue Filosofia mais ciências.
[4] Sofista  263 e : “Pensamento (dianoia) e discurso (logos) são o mesmo, salvo que o diálogo (dialogos) interior e em silêncio que a alma tem consigo mesma recebeu o nome de pensamento (dianoia)”.

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