1. As células fazem tudo o que têm que fazer na sua especialidade de tecido
para serem alimentadas pelo sangue, essa alimentação por sua vez permite-lhes
fazer tudo o que
têm que fazer na sua especialidade de tecido para serem alimentadas, e por aí
fora, sem que entre o passivo
de serem alimentadas e o activo da sua participação
no trabalho do tecido se possa decidir. Esta indecidibilidade releva da sua homeostasia celular mas pode ser
estendida à homeostasia do organismo animal, cujo equilíbrio instável tanto
depende do que o sangue leva de nutrientes às células como do trabalho destas
para caçar ou comer ervas e da sua sequência digestiva que vai alimentar o
sangue. É o que se pode chamar o círculo homeostático, que vem desde o óvulo materno e do zigoto
fecundado, que só será decidido pela morte, por fome ou incapacidade de órgãos
e suas células na sua função alimentar (que os cancros furam, furtando-se
egoisticamente ao ‘contrato orgânico’, por exemplo), por velhice. É esta indecidibilidade
que torna impossível uma teoria das origens da vida ou das espécies (e, quero
crer, muito difíceis as investigações em embriologia): não há genes sem
metabolismo, alimentação da célula sem cena ecológica, são os conjuntos que dão
origem a conjuntos, é isso o ‘círculo’. Dependendo pois da cena ecológica, da
sua população vegetal e animal, o indecidível deste círculo foi decidido pelo dogma de Crick, privilegiando o ‘interior’ do núcleo
das células, tomando partido teórico, acima da análise laboratorial que sempre
precisa de teoria mas não decide desta, o físico inglês seguindo sem saber a
lógica predominante da tradição greco-cristã-europeia (a ‘alma’ interior
comanda ao corpo e ao mundo).
2. A aprendizagem humana encontra um
círculo equivalente, o de andar ou nadar, de falar, o que Heidegger chamou círculo
hermenêutico, que põe o acento na
impossibilidade de se penetrar no círculo por se lhe ser estrangeiro: não se
consegue ler um texto de pensameto a não ser que já se esteja ‘dentro’’ dele [1].
Um exemplo teológico medieval que me fascina: um pecador que entrasse no céu
não saberia que estava no céu. Traduzido em termos actuais, os sem solfejo que
não entendem o que se passa num concerto de Bach ou Beethoven, as gentes em
geral, eu por vezes, face a exposições de cultura. Mas também exemplos de todos
os dias: para que a criança fale tem que escutar, em passividade, longamente os
outros, os quais não falam como gramáticos (sim, nas escolas de línguas) nem
dicionários mas como falantes que usam e nomeiam sem darem por isso, até que,
inscritos os grafos neuronais da língua tribal, a criança vai articulando
activamente, falando a partir de si. Andar de patins ou bicicleta, tocar
guitarra ou desenhar, também se faz sem se saber como, o que ensina não podendo
fazer nada de decisivo para que o aprendiz consiga lá chegar, zangar-se e
castigar não adianta. A escola é uma sucessão permanente de círculos
hermenêuticos, deve-se ingressar em novos paradigmas, em que é preciso aprender
a fazer como os outros, como Kuhn diagnosticou para as ciências. O círculo hermenêutico
exige que se dê tempo ao tempo, cada caso é um caso, indeterminado, senão
enigmático nas coisas difíceis que decidem vocações. Também esta
indecidibilidade da aprendizagem do conhecimento levou a uma decisão académica,
a invenção da definição que
conceptualiza retirando do contexto a palavra e a torna igual em todos os
contextos, segura de verdade perto da alma do filósofo. Todas as ortodoxias,
dogmas católicos ou deterministas, todos os reducionismos, vêm d’aí.
3. Uma unidade local tribal tem
igualmente um círculo privado de usos, no que diz respeito à reciprocidade das
habilidades ganhas por cada um nos usos tradicionais que aprendeu: pelo lado da
passividade, todos devem poder comer e habitar em segurança (direitos de cada
um), pelo outro lado, todos devem cumprir os seus usos de forma que todos
possam comer e habitar em segurança (deveres). O que inclui os seus membros e faz circular as relações entre
todos numa intimidade ao longo dos dias e dos anos, entre cumplicidades e
rivalidades que incitam a melhorar as habilidades, e exclui os outros como ‘hospes’, estrangeiros hostis ou
hóspedes, pedindo-lhes para entrarem uma iniciaçãoaos usos e a contenção das
energias sexuais. Talvez que o patriarcado das casas votadas à conquista
guerreira tenha decidido em
favor do pai-patrão, o que a modernidade recente procura anular. Mas todos os
racismos contra o ‘estrangeiro’ têm aí a sua raiz antropológica, assim como as
endogamias dos Hebreus (face aos Gentios, contrariado pelo apóstolo Paulo) e
dos Gregos (face aos Bárbaros, contrariado por Alexandria), que não os Romanos:
foram três factores históricos que permitiram a Europa.
4. Há nestes círculos uma lógica de
duplos laços, um de restrição que fornece energia ao outro sob forma de
pequenas repetições rotineiras, desde que aprendidas (como disse no texto sobre
Damásio de 6/12, § 7, sobre um modelo que ele propôs). Ora, quer as células num
organismo, quer os estilos de cada um que aprendeu, quer o que ele faz na sua
unidade local de habitação, são elementos com sua autonomia (recebida e
homeostática) que são recebidos numa estrutura abrangente em duplo laço,
autónoma (igualmente recebida e homeostática); são estas duas autonomias, dos
elementos constitutivos e do conjunto deles, que implicam as duas leis indissociáveis e
inconciliáveis que estabilizam a instabilidade da homeostasia: a das
homeostasias das células e a do organismo enlaçadas na cena ecológica, a do
enigma do que aprende e a do saber hermenêutico a receber antropologicamente
(que se ensina e examina: qualquer professor sabe da antinomia entre a sua
função de ensinar e a de julgar em exames), a dos desejos e interesses da cada
habitante e a do funcionamento razoável da unidade social enlaçadas no conjunto
tribal ou político das outras unidades. O que se chama acontecimento resulta dum cruzamento entre duas ou mais
homeostasias em suas rotinas que afecta o conjunto e o desequilibra segundo
vários vectores mais ou menos simultâneos. Diante dele, a nossa razão
definitória e experimental tem muitas vezes que se declarar vencida pela
indeterminação ou mesmo pelo enigma. Ora, a rotina é o grau zero do
acontecimento, tudo é acontecimento, é uma questão de escala, entre rotinas e
acontecimentos maiores ou menores: o enigma, ou pelo menos a indeterminação, é
a regra, não é a excepção. Era o que pretendia Nietzsche com o seu humano
artista, intuitivo. As ciências não trabalham sobre acontecimentos, mas sobre
regras e suas oscilações rotineiras, os seus limiares, ultrapassados os quais o
círculo homeostático ou hermenêutico ou da habitação rebenta, explode ou
implode.
[1] Quem não
fez mais duma vez a experiência; levei 30 anos a ensaiar lê-lo (de vez em
quando) até ter enfim a sensação de compreender alguma coisa, quando me pus a
escrever sobre ele e li o seu texto sobre a phusis em Aristóteles. Com Derrida
demorou menos tempo, o empenho foi maior e sobretudo ele deu várias entrevistas
que me ajudaram muito.
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