segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Homeostasia e hermenêutica




1. As células fazem tudo o que têm que fazer na sua especialidade de tecido para serem alimentadas pelo sangue, essa alimentação por sua vez permite-lhes fazer tudo o que têm que fazer na sua especialidade de tecido para serem alimentadas, e por aí fora, sem que entre o passivo de serem alimentadas e o activo da sua participação no trabalho do tecido se possa decidir. Esta indecidibilidade releva da sua homeostasia celular mas pode ser estendida à homeostasia do organismo animal, cujo equilíbrio instável tanto depende do que o sangue leva de nutrientes às células como do trabalho destas para caçar ou comer ervas e da sua sequência digestiva que vai alimentar o sangue. É o que se pode chamar o círculo homeostático, que vem desde o óvulo materno e do zigoto fecundado, que só será decidido pela morte, por fome ou incapacidade de órgãos e suas células na sua função alimentar (que os cancros furam, furtando-se egoisticamente ao ‘contrato orgânico’, por exemplo), por velhice. É esta indecidibilidade que torna impossível uma teoria das origens da vida ou das espécies (e, quero crer, muito difíceis as investigações em embriologia): não há genes sem metabolismo, alimentação da célula sem cena ecológica, são os conjuntos que dão origem a conjuntos, é isso o ‘círculo’. Dependendo pois da cena ecológica, da sua população vegetal e animal, o indecidível deste círculo foi decidido pelo dogma de Crick, privilegiando o ‘interior’ do núcleo das células, tomando partido teórico, acima da análise laboratorial que sempre precisa de teoria mas não decide desta, o físico inglês seguindo sem saber a lógica predominante da tradição greco-cristã-europeia (a ‘alma’ interior comanda ao corpo e ao mundo).
2. A aprendizagem humana encontra um círculo equivalente, o de andar ou nadar, de falar, o que Heidegger chamou círculo hermenêutico, que põe o acento na impossibilidade de se penetrar no círculo por se lhe ser estrangeiro: não se consegue ler um texto de pensameto a não ser que já se esteja ‘dentro’’ dele [1]. Um exemplo teológico medieval que me fascina: um pecador que entrasse no céu não saberia que estava no céu. Traduzido em termos actuais, os sem solfejo que não entendem o que se passa num concerto de Bach ou Beethoven, as gentes em geral, eu por vezes, face a exposições de cultura. Mas também exemplos de todos os dias: para que a criança fale tem que escutar, em passividade, longamente os outros, os quais não falam como gramáticos (sim, nas escolas de línguas) nem dicionários mas como falantes que usam e nomeiam sem darem por isso, até que, inscritos os grafos neuronais da língua tribal, a criança vai articulando activamente, falando a partir de si. Andar de patins ou bicicleta, tocar guitarra ou desenhar, também se faz sem se saber como, o que ensina não podendo fazer nada de decisivo para que o aprendiz consiga lá chegar, zangar-se e castigar não adianta. A escola é uma sucessão permanente de círculos hermenêuticos, deve-se ingressar em novos paradigmas, em que é preciso aprender a fazer como os outros, como Kuhn diagnosticou para as ciências. O círculo hermenêutico exige que se dê tempo ao tempo, cada caso é um caso, indeterminado, senão enigmático nas coisas difíceis que decidem vocações. Também esta indecidibilidade da aprendizagem do conhecimento levou a uma decisão académica, a invenção da definição que conceptualiza retirando do contexto a palavra e a torna igual em todos os contextos, segura de verdade perto da alma do filósofo. Todas as ortodoxias, dogmas católicos ou deterministas, todos os reducionismos, vêm d’aí.
3. Uma unidade local tribal tem igualmente um círculo privado de usos, no que diz respeito à reciprocidade das habilidades ganhas por cada um nos usos tradicionais que aprendeu: pelo lado da passividade, todos devem poder comer e habitar em segurança (direitos de cada um), pelo outro lado, todos devem cumprir os seus usos de forma que todos possam comer e habitar em segurança (deveres). O que inclui os seus membros e faz circular as relações entre todos numa intimidade ao longo dos dias e dos anos, entre cumplicidades e rivalidades que incitam a melhorar as habilidades, e exclui os outros como ‘hospes’, estrangeiros hostis ou hóspedes, pedindo-lhes para entrarem uma iniciaçãoaos usos e a contenção das energias sexuais. Talvez que o patriarcado das casas votadas à conquista guerreira tenha decidido em favor do pai-patrão, o que a modernidade recente procura anular. Mas todos os racismos contra o ‘estrangeiro’ têm aí a sua raiz antropológica, assim como as endogamias dos Hebreus (face aos Gentios, contrariado pelo apóstolo Paulo) e dos Gregos (face aos Bárbaros, contrariado por Alexandria), que não os Romanos: foram três factores históricos que permitiram a Europa.
4. Há nestes círculos uma lógica de duplos laços, um de restrição que fornece energia ao outro sob forma de pequenas repetições rotineiras, desde que aprendidas (como disse no texto sobre Damásio de 6/12, § 7, sobre um modelo que ele propôs). Ora, quer as células num organismo, quer os estilos de cada um que aprendeu, quer o que ele faz na sua unidade local de habitação, são elementos com sua autonomia (recebida e homeostática) que são recebidos numa estrutura abrangente em duplo laço, autónoma (igualmente recebida e homeostática); são estas duas autonomias, dos elementos constitutivos e do conjunto deles, que implicam  as duas leis indissociáveis e inconciliáveis que estabilizam a instabilidade da homeostasia: a das homeostasias das células e a do organismo enlaçadas na cena ecológica, a do enigma do que aprende e a do saber hermenêutico a receber antropologicamente (que se ensina e examina: qualquer professor sabe da antinomia entre a sua função de ensinar e a de julgar em exames), a dos desejos e interesses da cada habitante e a do funcionamento razoável da unidade social enlaçadas no conjunto tribal ou político das outras unidades. O que se chama acontecimento resulta dum cruzamento entre duas ou mais homeostasias em suas rotinas que afecta o conjunto e o desequilibra segundo vários vectores mais ou menos simultâneos. Diante dele, a nossa razão definitória e experimental tem muitas vezes que se declarar vencida pela indeterminação ou mesmo pelo enigma. Ora, a rotina é o grau zero do acontecimento, tudo é acontecimento, é uma questão de escala, entre rotinas e acontecimentos maiores ou menores: o enigma, ou pelo menos a indeterminação, é a regra, não é a excepção. Era o que pretendia Nietzsche com o seu humano artista, intuitivo. As ciências não trabalham sobre acontecimentos, mas sobre regras e suas oscilações rotineiras, os seus limiares, ultrapassados os quais o círculo homeostático ou hermenêutico ou da habitação rebenta, explode ou implode.


[1] Quem não fez mais duma vez a experiência; levei 30 anos a ensaiar lê-lo (de vez em quando) até ter enfim a sensação de compreender alguma coisa, quando me pus a escrever sobre ele e li o seu texto sobre a phusis em Aristóteles. Com Derrida demorou menos tempo, o empenho foi maior e sobretudo ele deu várias entrevistas que me ajudaram muito.

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