quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Dasein e gramatologia



1. Procurar pensar e conhecer implica repetir-se, o que significa sublinhar o que se repete nesses vários textos como questões fortes dessa busca, de novos aspectos; ora, o que me interessa, mais do que os temas, são os gestos de ruptura de quem os trata, os toma ou abandona. Repito-me pois, mas por me ter vindo inopinadamente uma nova maneira de abordar o que costumo abordar (palavra engraçada, chega-se ao bordo vindo-se de fora, como os piratas atacavam navios: ‘à abordagem!’), neste caso as relações entre os meus três mestres de fenomenologia.

O Dasein e o mundo
2. No final dos anos 70, um colega meu cujo doutoramento foi sobre Hegel deu um curso intitulado “o problema fundamental da filosofia”; perguntei-lhe, com alguma ingenuidade, qual era esse problema, ao que ele respondeu como quem diz uma evidência: a questão do sujeito / objecto. Mais do que certo, até estes três e aos estruturalistas; era a oposição entre ambos que Husserl se propusera ultrapassar, tal como ela vingara desde a substancialização dos dois termos por Descartes, a coisa pensante e a coisa extensa, sustentada pelo privilégio desde os Gregos do ‘interior’ (que pensa) sobre o ‘exterior’ (que está aí, se vê e se mexe). Assim entre Husserl e Heidegger; o primeiro fez a consciência ser, não algo dela, de alguém, ‘coisa’ de sujeito, mas aquilo que ela percebe do objecto: a consciência é consciência de tal coisa, desfazendo a exterioridade de ambos os termos que os opunha; a intencionalidade significa que sem a exterioridade da coisa percebida não há consciência. Heidegger deslocou essa intencionalidade (a ‘intenção’ da coisa intuída ser a consciência) para o par Dasein e mundo: o Dasein é o mundo fora dele, extáctico. Não sei alemão para poder analisar o sentido deste termo que, na tradição filosófica diz o existente, com o ek- que diz o que –siste (como em consiste, insiste, persiste, resiste, desiste) fora, e foi o que Heidegger transpôs para o ser humano. Em português, ‘sein’ podendo traduzir-se por ‘ser’ e por ‘estar’ e ‘da’ sendo ‘aí’ (‘là’ em francês), haverá várias hipóteses de tradução. Sendo ‘aí’ um advérbio, fica excluído que ‘sein’ seja o substantivo filosófico tradicional para ‘ente’ (este corresponde ao conjunto, ao ‘Dasein’. Entre ‘ser’ e ‘estar’ para ‘sein’, a preferência parece ser para o primeiro, que indica constância ou consistência temporal, ‘é-se’ sempre, enquanto que ‘estar’ é circunstancial, ‘está-se’ de forma variável, é um termo mais de narrativa, singular, do que de gnosiológico filosófico. Ficaria então ‘ser aí’, ‘être-là’ em francês. Mas Heidegger precisou a Jean Beaufret, numa carta publicada em apêndice à Carta sobre o humanismo, que, não sendo embora bom francês, haveria que traduzir Dasein por être-le-là, em português ser-o-aí, o que, na sua estranheza sintáctica, justifica a exclusão de ‘estar’. ‘Aí’ como que se torna um advérbio substancializado, como sucede frequentemente com verbos (‘o comer estava muito bom’, ‘o correr repetiu-se várias vezes’). Ora, ‘aí’, tal como ‘là’ em francês, faz paradigma em oposição a ‘aqui’ (‘ici’): ‘ser-o-aí’ é então não ser o aqui que é do corpo, do sujeito: é claramente o mundo como , ser no mundo, quase como ‘ser o mundo’, onde se marca claramente a exterioridade do Dasein em relação a si mesmo, como a consciência intencional de Husserl, mas dando-se claramente em contraste com ela. Com efeito, vê-se que aqui é o global do ser humano que é tomado em conta, nomeadamente sem a oposição consciência / corpo, que releva quer da oposição pensamento / extensão de Descartes, quer da alma / corpo, de Platão ou a de Aristóteles, com a grande vantagem em relação a muitos empiristas ou materialistas anti-alma que se apoderam do ‘corpo’, sem perceberem que a retêm, a alma tradicional a que ele se opõe, ou pensamento, consciência, cabeça, até mesmo cérebro, tudo opostos de corpo e que permanecem sem serem expressos em textos que só falem do ‘corpo’. Heidegger, muito atento à historicidade das palavras, foi mais avisado. Finalmente, que o sein do Dasein seja um verbo, o verbo ‘ser’ com a sua morfologia, e dada a variedade do ‘aí’, do mundo (em) que se é, implica a sua temporalidade, a sua acção no mundo temporal segundo as suas possibilidades, motivo a que voltaremos mais adiante.
3. Mas não deixa de haver uma questão que fica pendente na concepção do Dasein desenvolvida em 1927 e que, tanto quanto me dei conta, não foi reformulada por Heidegger após a viragem, pelo menos nos ensaios e conferências dos anos 50  nem nos seminários dos anos 60, após a conferência decisiva de “Tempo e ser” de 1962 (Questions IV). Não só o  Dasein é raramente mencionado, em detrimento do Ser e depois do Ereignis, sem que manifestamente qualquer problema se lhe ponha vindo da reformulação decisiva de 62, como que o ‘acabamento’ do pensamento heideggeriano. Ora bem, no ser no mundo, a exterioridade do Dasein coloca-o aberto, fora de si, no mundo, por exemplo com mãos que mexem em coisas, as usam, mas sem reciprocidade do mundo em relação a ele: não dei por nenhuma menção de que o mundo o afecte no seu ‘ser’ Dasein, muito menos nenhum ‘como’ duma eventual afectação. No entanto, a força da viragem é a consideração da doação (retirada) dos entes pelo Ser que se dissimula, se retira para os deixar ser, doação essa que em 62 é atribuída ao Ereignis que dá ser e tempo aos entes, retirando a doação, sem que ela, nesta ultimação da viragem, afecte particularmente o Dasein, o seu ser e tempo, a sua abertura ao mundo tornada recíproca. Nem o Mitsein, o ser com outrem é reabilitado: Heidegger nunca soube pensar a relação entre mais de um Dasein. Ou seja, nem o mundo nem o Ereignis dão algo ao Dasein que mereça análise do pensamento, como se fosse este, o pensamento de Heidegger, pensador, que resistisse em última instância, se dizer se pode neste contexto, a qualquer recepção vinda da ‘exterioridade’. É certo que se pode dizer que o que faz a novidade deste pensamento é o manter-se inflexivelmente ao nível filosófico após ter rompido com os limites da definição que a constituíram desde Platão e Aristóteles, de ter prosseguido a sua discussão dos grandes textos destes fundadores como dos de Descartes, Kant e Hegel até Nietzsche, numa zona de abstracção quase inacessível; pode-se acrescentar que o espaço que rodeia o Dasein era fortemente assediado pelos vários discursos científicos sociais e humanos, de antropologias e psicologias de que sempre se quis liberto: que pôde falar do discurso que interpreta e da linguagem sem ter que saber da língua como instituição social dos linguistas, falar da mortalidade provocando angústia sem querer saber da biologia nem do nascimento e da sexualidade, falar do Outro Dasein sem querer saber da sua dimensão social. Mas também não se poderá negar que a sua incapacidade de pensar a relação com este Outro releve duma das mais criticáveis tradições filosóficas: a insularidade da alma, do sujeito, da consciência, também é  característica do Dasein, não afectável no seu princípio, o qual define a alma no Fedro de Platão.

O triplo da gramatologia
4. Se se pegar agora em Derrida para ver como ele se coloca, dizendo-se muito atento às questões husserlianas e heideggerianas, mas também inserido no contexto do estruturalismo que foi uma aliança da filosofia com as ciências sociais e humanas, para ver como ele singra filosoficamente nesse contexto em fidelidade fenomenológica, o que salta à vista é um salto desmesurado: o que ele faz é, nada mais nada menos, do que introduzir uma nova questão no pensamento ocidental, que Platão expulsara juntamente com os mitos e a literatura, a questão da escrita no coração do pensamento. E fazendo-o, destabiliza toda a tradição, a mais remota grega como a mais próxima, fenomenológica ou estruturalista. Tratar-se-á de ver o alcance da sua proposta gramatológica no que diz respeito às palavras e às coisas do mundo e aos que as nomeiam e transformam. Começarei por ilustrar a relação mantida com a problemática de Husserl e Heidegger, com dois subtítulos no 2º capítulo da De la grammatologie: “o fora e o dentro” (p. 46), “o fora é(x) o dentro” (p. 65), com o ‘é’ rasurado sob uma cruz, como em tempos Heidegger fizera para a palavra ‘ser’. Lidos sem o contexto, o primeiro assinala a continuidade fenomenológica, a conjunção ‘e’ recordando a intencionalidade e o ser no mundo que questionavam a oposição interior / exterior colocando aquele em relação essencial com este; o segundo, por sua vez, opera a ruptura que desaloja o primado da interioridade, acusando-o como o que chamará logocentrismo.
5. Para ver como essa ruptura se fará,  comentarei a seguinte citação de De la grammatologie: “a estrutura geral do rasto (trace) imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os possa separar senão por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o movimento da temporalização e a linguagem como escrita” (p. 69), que repetirá adiante assim: “[...] movimento da différance, abrindo simultaneamente (à la fois), numa única e mesma possibilidade, a temporalização, a relação ao outro e a linguagem” (p. 88). Na conferência de 1968 intitulada La différance: “espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização) [...] a différance (é) (simultaneamente) espaçamento (e) temporização” (Marges, p. 14), estes parêntesis, como a cruz sobre a cópula, significando a dificuldade duma escrita que não pode deixar de usar termos filosóficos contaminados metafisicamente pela proposta dessa mesma escrita. O que é a trace? É o rasto ou vestígio deixado pelo ‘movimento’ não perceptível fenomenologicamente, ocultado (veremos porquê), de que os discursos resultam (que o contexto é de relação entre gramatologia e linguística, mas também os vivos, lá iremos). Esse ‘movimento’ não fenomenológico abre um triplo indissociável. (a) A expressão “movimento da temporalização” permite perceber que o motivo do ‘tempo’, decisivo na ruptura de Heidegger com Husserl, ganha a secundariedade que tinha em relação ao ‘movimento’ na definição da Physica de Aristóteles, de que é a medida, o número; que depois a temporização venha a ser dita devir-tempo, não do espaço mas do espaçamento, isto é, do fazer-se espaço, devir-espaço, tal como a temporalização é fazer-se tempo, devir-tempo, sublinha ainda que se trata da prioridade do movimento sobre o tempo e o espaço, categorias fortes da modernidade europeia, a começar pela Física e o seu espaço-tempo einsteiniano. O tempo nomeadamente foi a categoria que mais marcou a ruptura do século XIX com os séculos clássicos (como mostrou Foucault em As palavras e as coisas), é uma categoria de entes, correlativa do verbo ‘ser’; o espaço é uma categoria chave dos estruturalismos, que incidiram sobre o espacial já feito espaço e que não a souberam articular com o tempo, nomeadamente da história[1]. É que justamente os estruturalismos rompiam com o tempo enquanto categoria dos ‘entes’, vivos ou fabricados, para os relacionar em estruturas que os situam e lhe dão sentido. O que Derrida, pós-estruturalista, pós-husserliano e pós-heideggeriano é a possibilidade de pensar o estruturar-se, o fazer-se ou o transformar-se da estrutura, mas também, como sua condição, do fazer-se do próprio ente, o vivo ou o fabricado, como do discurso ou texto. (b) a “estrutura da relação ao outro” implica também a temporalização, já que significa que os entes, vivos ou fabricados, vêm de outros e só em relação a outros têm sentido, não há ilhas nem arquipélagos. Em relação aos vivos, tanto se diz a origem a partir de outros vivos, a sexualidade como regra geral das origens deles, mas igualmente a necessidade incessante de alimentação vinda de outros vivos no reino animal, com ainda em relação aos animais diz a aprendizagem de comportamentos úteis a essa reprodução (progressivamente mais complexa, desde o reconhecimento pelo faro de presas). Tudo o que é fabricado tem origem em artífices, matérias primas e instrumentos e como finalidade usos pde outros. Como se esta estrutura da relação ao Outro reintroduzisse algo de evocativo da causalidade final aristotélica que a filosofia e a ciência europeia evacuaram. Mas também o uso do termo temporização em vez de ‘temporalização’ em Marges situa o motivo de diferendo na relação ao Outro. (c) A “linguagem como escrita” ou a arqui-escrita como origem da linguagem, motivo que foi mal compreendido – a escrita antes da fala – porque afrontando justamente a mais irredutível das oposições vindas dos Gregos, o privilégio da interioridade e do pensamento, o que chamou logocentrismo: trata-se da transformação da relação dentro / fora; só há linguagem, voz e discurso duplamente articulado, a “fala” (parole) dos estruturalistas, porque há antes e fora do falante a língua dos Outros, a qual penetra nele e o faz, o estrutura como falante e pensante, tal como as formas de aprendizagem de outros usos, de fora se faz o dentro enquanto dentro que antes não existia, a consciência de Husserl, por exemplo, que é devido à aprendizagem de usos nomeando coisas que é intencional.
6. Seja um exemplo que recapitule este triplo gramatológico na sua indissociabilidade, aquele que me é mais familiar, escrever ou ler, ouvir ou falar. (a) O espaçamento é o fazer-se das linhas escritas de palavras em frases ou da fila indiana de sons, espaços estritamente regrados (uma letra pode alterar uma palavra, ‘rasto’ ou ‘rasgo’), intervalos na escrita que não na fala, o fazer-se de algo que não existia (havia papel em branco e ar entre os interlocutores, um cabo telefónico porventura). Esse fazer-se espaço é simultaneamente temporalização, mas esta não é apenas ‘linear’, já que implica que se retenha o já dito ou escrito e se adie em expectativa o que virá em seguida, sabendo-se que o sentido do discurso ou texto reside no conjunto e não em nenhuma das palavras ou frases, por sublinhadas que sejam. (b) A relação ao Outro que ouve ou lê é estrutural, joga-se na mesma língua que ambos conhecem mas está longe de se esgotar nessa relação ocasional, já que cada um compreende o que se escreve ou diz consoante o seu saber aprendido ao longo da vida, como é óbvio quando há desigualdades de saber devidas à idade ou à posição social. O que se liga por exemplo com o que Derrida chama “o fim do livro”: um livro provém de muitos textos que o seu escritor leu, e até de outros que não leu mas leram os autores de textos que ele leu, mas também na sua leitura o leitor exerce a sua competência de leitor de muitos outros. A noção de intertextualidade implica que não se pode cortar senão arbitrariamente um texto ou uma sua parte, como citação, que qualquer texto é um agenciamento de citações infindável (c) em que tudo o que se ouve ou lê, mesmo esquecido no curto prazo, é aprendido de fora para se converter em dentro, aceite ou contestado, o diferendo das opiniões e dos argumentos sendo parte estrutural deste movimento de linguagem. Usei a palavra ‘movimento’, com que tinha começado esta explicação com Derrida, dizendo que o “movimento da temporalização” era ocultado, como sendo o do rasto ou da différance, não acessível fenomenologicamente[2]. Ora bem, o que há de linear no espaçamento como espaço e tempo de escrita ou fala, da leitura ou de audição, é um movimento fenomenologicamente acessível (pode-se filmar alguém a escrever como se filma alguém a falar): este movimento é justamente o rasto ou vestígio do movimento oculto que Derrida chamou assim, indescritível aliás na sua complexidade de retenções e expectações como de relações a Outros (mais do que muitos). Que nós não possamos saber este jogo oculto de que só apanhamos vestígios é uma razão para tornar fortemente complexa a questão da memória, em que há muito de não consciente, e que é o que faz a fartura duma psicanálise.

Limites e possibilidades do Dasein
7. Retomando a questão posta a Heidegger, vê-se à luz gramatológica que a diferença Dasein / mundo não vai ao cabo que faria dela uma não oposição, permanece uma zona inexpugnável dele, um resto de logocentrismo, de resistência ao mundo como exterioridade, apenas de acesso, sem retorno nem iniciativa. O Dasein não só não aprende como nem sequer se alimenta, mas também não nasce pela mesma falta de iniciativa do mundo em que ele é, não cresce, não foi criança. É ser no mundo e não ser do mundo, muito menos ser o mundo; também é ser no tempo, mas não ser temporalizado nem espacializado, não é um vivo, como Derrida ironiza algures; se é mortal, não é por ser vivo, mas por uma razão existencial, a sua possibilidade de antecipar a morte e de se angustiar em consequência, de se poder ‘converter’ à existência autêntica. Por outro lado, enxertar no seu ser no mundo a aprendizagem permite perceber melhor o seu motivo de possibilidade como sendo simultaneamente tanto a do Dasein como a do mundo em que ele é, indo até à possibilidade de mudar parcialmente o mundo, nomeadamente inventando novos usos que se revelem fecundos para os Outros.

Gramatologia e ciências
8. O exemplo do § 6 permite perceber porquê a Linguística foi uma ciência decisiva para a instauração da Gramatologia, embora o autor tenha tido o cuidado de dizer que se tratou sobretudo de razões estratégicas, que poderia começar por outra ponta, como aliás se ilustra no texto “Freud et la scène de l’écriture” (in L’écriture et la différence) em que, tanto quanto me lembre, a linguística nunca é chamada à argumentação gramatológica sobre Freud. Mas a reflexão que proponho aqui tem a ver com a compreensão de como o triplo gramatológico permite elucidar a complexidade das questões das várias ciências, sobre as quais tenho trabalhado a partir do motivo posterior de duplo laço, deduzido gramatologicamente mas usado preferencialmente nas questões éticas e politicas dos anos 80 e 90. Devo dizer que nunca me lembrei de tentar buscar ilustrar a fecundidade deste motivo no meu trabalho com o triplo dos inícios gramatológicos, nem vejo muito bem, assim de repente que penso nessa hipótese pela primeira vez, como isso se poderia fazer, embora se trate justamente duma categoria que explicita o movimento, mas duma outra perspectiva, que se presta a análises fenomenológicas que pressupõem já feitas, acabadas, as ‘coisas’ que se movem nas cenas que as dão. Em relação à Biologia, o triplo esclarece como se estrutura um animal (de plantas não sei nada), sendo certamente a embriologia a região mais complicada do processo de crescimento, a que terá maior proximidade à difícil questão da evolução e dos seus mecanismos que ela porventurqa repete parcialmente, como propôs Haeckel*. A dificuldade consistirá no espaçamento e temporalização dos diversos órgãos do organismo, na maneira como eles jogam uns com os outros na sua incompletude, o feto sendo alimentado pelo sangue da mãe que versa oxigénio e moléculas no seu sangue enquanto os outros órgãos se vão constituindo par apenas entrarem em acção, pulmões e digestão, a seguir ao parto. Será a seguir que, ainda muito imaturos mas já capazes do essencial, estes órgãos vão crescendo em espaçamento e temporalização adequando uns e outros, com a vinda incessante de alimentos e as primeiras aprendizagens neuronais. O início é caótico para o feto e depois bebé, precisando sempre de outros para ir singrando, até ganhar competências seguras para partilhar com os outros o que dá e o que recebe da unidade social. A Neurologia fará parte do mesmo tipo de dificuldades, multiplicadas pela complexidade incrível do sistema neuronal (voltarei em breve à questão). Se pensarmos no início dum casal em sua casa, também ele é caótico, não apenas por utensílios que ainda faltam mas também por se começar quase como um acampamento de malas, roupas e coisas que se vão estruturando – espaçamento da casa na sua temporalização inicial – no dia a dia, até se estabelecer a rotina dos usos diários em que cada um tem o seu papel. É claro que tudo vem de fora, repete mais ou menos o que as outras casas fazem, o que se aprendeu a fazer nas suas casas, se conta com o apoio de familiares e amigos. Neste jogo, também se dão muitas retenções e adiamentos, relações entre os vários e com os móveis e louças, roupas, e por aí fora, tudo induzido por um movimento oculto complexo de que só se apreende alguns aspectos, capazes de serem contados aos de fora. Se a exigência científica de descrição dum processo organizativo duma unidade social, casa ou fábrica, é extremamente maçador nos pormenores, muito mais é o indescritível do rasto que a gramatologia pressupõe.
9. Resta a questão da Física e Química, mas a dizer verdade não há a priori adequação da Gramatologia a elas, que Derrida falará nos anos 90 de “rasto vivo” (trace vivante) em diálogo com Elisabeth Roudinesco: em rigor, o rasto é a invenção da vida. Mas tentemos qualquer coisa. Para a Química, seja o exemplo no estaleiro dum edifício das cofragens com os respectivos ferros que se enchem com uma mistura de cimento, brita, areia e água e se a deixa os dias necessários para que o cimento faça presa da brita e da areia e o conjunto agarre o ferro: haverá um espaçamento rígido do betão armado que deverá durar uma temporalização de bastantes anos como um edifício, segundo desenhos e cálculos que uns fizeram e com o fim de habitação para Outros, tudo tendo vindo de ‘fora’ para criar um ‘dentro’ urbano. Mas talvez se possa dizer que o aforismo de Lavoisier, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, seria a ilustração química do triplo gramatológico. Quanto à Física, a primeira observação a fazer é que espaço e tempo são desde o início duas dimensões (medidas) indissociáveis de movimentos e que a noção de espaço-tempo, se por um lado sublinha a sua indissociabilidade, por outro creio que tende a ser tomada isolada e a esquecer a primazia do movimento que assim se mede; mas é fortemente significativo que a gramatologia tenha retomado o tempo que na Physica de Aristóteles media o movimento e o espaço que Galileu lhe juntou no primeiro exemplo de Física e sabido encontrar o movimento como razão de ser dos dois, como quem liga as duas grandes teorias do movimento, a dos Gregos e a dos Europeus. A relação ao Outro aqui é bizarramente contida no motivo da inércia, segundo o qual só há início, alteração ou fim de um movimento, se uma força exterior o impuser, que na Física não há dentro (nem na Química aliás). Não havendo dentro, tudo é fora ou não haverá fora? A questão pôr-se-á para o motivo de campo de forças, como por exemplo o do sistema planetário, que a astrofísica recente do universo em expansão, tornou muito mais curiosa do que quando não se lhe conhecia senão uma rotina de circulação de órbitas permanentes. Como é que ele permanece assim, levado embora na expansão, lhe resiste todavia? Pela relação recíproca das respectivas forças de gravidade, pelo campo que elas constituem, o qual é uma estrutura de astros em movimento. Como é que esse campo se estruturou assim, não sei se os astrofísicos sabem, como não sei se todos os astros que eles conhecem mais de perto formam igualmente campos estruturados de maneira equivalente, e muito menos sei se, havendo casos desses, se trata duma regra ou de excepções. O nosso sistema solar é uma excepção ou é a regra? Ou tão frequentes são as estruturas como as excepções? As galáxias são estruturas de estrelas sempre relacionadas estavelmente? Se for assim, então a grande excepção é a desestruturação – uma multidão louca de partículas a temperaturas impossíveis – que os físicos propõem como sequência do mito deles, o famoso big Bang. Esse não universo resiste a qualquer gramatologia ou fenomenologia, sem nenhuma verosimilhança laboratorial, é um mito que pede crença: os cálculos em que se baseia poderão ser retomados, tal e qual ou corrigidos, por uma hipótese mais consistente de futuros físicos.


Que o que sabemos foi aprendido é o que não podemos saber quando sabemos desse saber “não fenomenalidade constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em geral [...]  não doação no coração de cada doação” (L’événement et le (non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p. 155-183, oct. 2017). Um retiro da doação para que ela possa ser doação


[1] Também a Biologia molecular, segundo a minha leitura do confronto entre Darwin e Barbieri, revela o mesmo problema ‘estruturalista’ na dificuldade em tematizar bioquimicamente a evolução.
[2] Que o que sabemos foi aprendido é o que não podemos saber quando sabemos, é o retiro da doação para que ela possa ser doação, o que Derrida chamou “o impossível”: “não fenomenalidade constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em geral [...]  não doação no coração de cada doação” (L’événement et le (non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p. 155-183, oct. 2017).

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