1. Procurar
pensar e conhecer implica repetir-se, o que significa sublinhar o que se repete nesses vários textos como
questões fortes dessa busca, de novos aspectos; ora, o que me interessa, mais
do que os temas, são os gestos de ruptura de quem os trata, os toma ou abandona. Repito-me pois, mas por
me ter vindo inopinadamente uma nova maneira de abordar o que costumo abordar
(palavra engraçada, chega-se ao bordo vindo-se de fora, como os piratas
atacavam navios: ‘à abordagem!’), neste caso as relações entre os meus três
mestres de fenomenologia.
O Dasein e o
mundo
2. No final dos anos 70, um colega meu cujo doutoramento
foi sobre Hegel deu um curso intitulado “o problema fundamental da filosofia”;
perguntei-lhe, com alguma ingenuidade, qual era esse problema, ao que ele
respondeu como quem diz uma evidência: a questão do sujeito / objecto. Mais do
que certo, até estes três e aos estruturalistas; era a oposição entre ambos que
Husserl se propusera ultrapassar, tal como ela vingara desde a
substancialização dos dois termos por Descartes, a coisa pensante e a coisa
extensa, sustentada pelo privilégio desde os Gregos do ‘interior’ (que pensa)
sobre o ‘exterior’ (que está aí, se vê e se mexe). Assim entre Husserl e
Heidegger; o primeiro fez a consciência ser, não algo dela, de alguém, ‘coisa’
de sujeito, mas aquilo que ela percebe do objecto: a consciência é consciência de tal coisa, desfazendo a exterioridade de ambos os
termos que os opunha; a intencionalidade significa que sem a exterioridade da
coisa percebida não há consciência. Heidegger deslocou essa intencionalidade (a
‘intenção’ da coisa intuída ser a consciência) para o par Dasein e mundo: o Dasein é o mundo fora dele, extáctico. Não sei alemão para
poder analisar o sentido deste termo que, na tradição filosófica diz o existente, com o ek- que diz o que –siste
(como em consiste, insiste, persiste, resiste, desiste) fora, e foi o que Heidegger transpôs para o ser
humano. Em português, ‘sein’ podendo traduzir-se por ‘ser’ e por ‘estar’ e ‘da’
sendo ‘aí’ (‘là’ em francês), haverá várias hipóteses de tradução. Sendo ‘aí’
um advérbio, fica excluído que ‘sein’ seja o substantivo filosófico tradicional
para ‘ente’ (este corresponde ao conjunto, ao ‘Dasein’. Entre ‘ser’ e ‘estar’
para ‘sein’, a preferência parece ser para o primeiro, que indica constância ou
consistência temporal, ‘é-se’ sempre, enquanto que ‘estar’ é circunstancial,
‘está-se’ de forma variável, é um termo mais de narrativa, singular, do que de
gnosiológico filosófico. Ficaria então ‘ser aí’, ‘être-là’ em francês. Mas
Heidegger precisou a Jean Beaufret, numa carta publicada em apêndice à Carta
sobre o humanismo, que, não sendo
embora bom francês, haveria que traduzir Dasein por être-le-là, em português ser-o-aí, o que, na sua estranheza sintáctica, justifica a
exclusão de ‘estar’. ‘Aí’ como que se torna um advérbio substancializado, como
sucede frequentemente com verbos (‘o comer estava muito bom’, ‘o correr
repetiu-se várias vezes’). Ora, ‘aí’, tal como ‘là’ em francês, faz paradigma
em oposição a ‘aqui’ (‘ici’): ‘ser-o-aí’ é então não ser o aqui que é do corpo, do sujeito: é claramente o mundo como aí, ser no mundo, quase como
‘ser o mundo’, onde se marca claramente a exterioridade do Dasein em relação a si mesmo, como a consciência
intencional de Husserl, mas dando-se claramente em contraste com ela. Com
efeito, vê-se que aqui é o global do ser humano que é tomado em conta, nomeadamente
sem a oposição consciência / corpo, que releva quer da oposição pensamento /
extensão de Descartes, quer da alma / corpo, de Platão ou a de Aristóteles, com
a grande vantagem em relação a muitos empiristas ou materialistas anti-alma que
se apoderam do ‘corpo’, sem perceberem que a retêm, a alma tradicional a que
ele se opõe, ou pensamento, consciência, cabeça, até mesmo cérebro, tudo
opostos de corpo e que permanecem sem serem expressos em textos que só falem do
‘corpo’. Heidegger, muito atento à historicidade das palavras, foi mais
avisado. Finalmente, que o sein do Dasein seja um verbo,
o verbo ‘ser’ com a sua morfologia, e dada a variedade do ‘aí’, do mundo (em)
que se é, implica a sua temporalidade, a sua acção no mundo temporal segundo as
suas possibilidades, motivo a
que voltaremos mais adiante.
3. Mas não deixa de haver uma questão que fica
pendente na concepção do Dasein desenvolvida em 1927 e que, tanto quanto me dei conta, não foi reformulada
por Heidegger após a viragem, pelo menos nos ensaios e conferências dos anos
50 nem nos seminários dos anos 60,
após a conferência decisiva de “Tempo e ser” de 1962 (Questions IV). Não só o Dasein é
raramente mencionado, em detrimento do Ser e depois do Ereignis, sem
que manifestamente qualquer problema se lhe ponha vindo da reformulação decisiva
de 62, como que o ‘acabamento’ do pensamento heideggeriano. Ora bem, no ser
no mundo, a exterioridade do Dasein coloca-o aberto, fora de si, no mundo, por
exemplo com mãos que mexem em coisas, as usam, mas sem reciprocidade do mundo
em relação a ele: não dei por nenhuma menção de que o mundo o afecte no seu
‘ser’ Dasein, muito menos
nenhum ‘como’ duma eventual afectação. No entanto, a força da viragem é a consideração
da doação (retirada) dos entes
pelo Ser que se dissimula, se retira para os deixar ser, doação essa que em 62
é atribuída ao Ereignis que dá
ser e tempo aos entes, retirando a doação, sem que ela, nesta ultimação da
viragem, afecte particularmente o Dasein, o seu ser e tempo, a sua abertura ao mundo tornada recíproca. Nem o
Mitsein, o ser com outrem é
reabilitado: Heidegger nunca soube pensar a relação entre mais de um Dasein. Ou seja, nem o mundo nem o Ereignis dão algo ao Dasein que mereça
análise do pensamento, como se fosse este, o pensamento de Heidegger, pensador,
que resistisse em última instância, se dizer se pode neste contexto, a qualquer
recepção vinda da ‘exterioridade’. É certo que se pode dizer que o que faz a
novidade deste pensamento é o manter-se inflexivelmente ao nível filosófico
após ter rompido com os limites da definição que a constituíram desde Platão e
Aristóteles, de ter prosseguido a sua discussão dos grandes textos destes
fundadores como dos de Descartes, Kant e Hegel até Nietzsche, numa zona de
abstracção quase inacessível; pode-se acrescentar que o espaço que rodeia o Dasein era fortemente assediado pelos vários discursos
científicos sociais e humanos, de antropologias e psicologias de que sempre se
quis liberto: que pôde falar do discurso que interpreta e da linguagem sem ter
que saber da língua como instituição social dos linguistas, falar da
mortalidade provocando angústia sem querer saber da biologia nem do nascimento
e da sexualidade, falar do Outro Dasein sem querer saber da sua dimensão social. Mas também não se poderá negar
que a sua incapacidade de pensar a relação com este Outro releve duma das mais
criticáveis tradições filosóficas: a insularidade da alma, do sujeito, da consciência, também
é característica do Dasein, não afectável no seu princípio, o qual define a
alma no Fedro de Platão.
O triplo da gramatologia
4. Se se pegar agora em Derrida para ver como ele
se coloca, dizendo-se muito atento às questões husserlianas e heideggerianas,
mas também inserido no contexto do estruturalismo que foi uma aliança da
filosofia com as ciências sociais e humanas, para ver como ele singra filosoficamente nesse contexto em fidelidade fenomenológica, o
que salta à vista é um salto desmesurado: o que ele faz é, nada mais nada
menos, do que introduzir uma nova questão no pensamento ocidental, que Platão
expulsara juntamente com os mitos e a literatura, a questão da escrita no
coração do pensamento. E fazendo-o, destabiliza toda a tradição, a mais remota
grega como a mais próxima, fenomenológica ou estruturalista. Tratar-se-á de ver
o alcance da sua proposta gramatológica no que diz respeito às palavras e às
coisas do mundo e aos que as nomeiam e transformam. Começarei por ilustrar a
relação mantida com a problemática de Husserl e Heidegger, com dois subtítulos
no 2º capítulo da De la grammatologie: “o fora e o dentro” (p. 46), “o fora é(x) o dentro” (p. 65), com o ‘é’
rasurado sob uma cruz, como em tempos Heidegger fizera para a palavra ‘ser’.
Lidos sem o contexto, o primeiro assinala a continuidade fenomenológica, a
conjunção ‘e’ recordando a intencionalidade e o ser no mundo que questionavam a
oposição interior / exterior colocando aquele em relação essencial com este; o
segundo, por sua vez, opera a ruptura que desaloja o primado da interioridade,
acusando-o como o que chamará logocentrismo.
5. Para ver como essa ruptura se fará, comentarei a seguinte citação de De
la grammatologie: “a estrutura
geral do rasto (trace)
imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os possa separar
senão por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o movimento da
temporalização e a linguagem como escrita” (p. 69), que repetirá adiante assim:
“[...] movimento da différance, abrindo simultaneamente (à la fois), numa única e mesma possibilidade,
a temporalização, a relação ao outro e a linguagem” (p. 88). Na conferência de 1968 intitulada La
différance: “espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização) [...] a différance (é) (simultaneamente)
espaçamento (e) temporização” (Marges, p. 14), estes parêntesis, como a cruz sobre a cópula, significando a
dificuldade duma escrita que não pode deixar de usar termos filosóficos
contaminados metafisicamente pela proposta dessa mesma escrita. O que é a trace? É o rasto ou vestígio deixado pelo ‘movimento’ não perceptível
fenomenologicamente, ocultado (veremos porquê), de que os discursos resultam
(que o contexto é de relação entre gramatologia e linguística, mas também os
vivos, lá iremos). Esse ‘movimento’ não fenomenológico abre um triplo
indissociável. (a) A expressão “movimento da temporalização” permite perceber
que o motivo do ‘tempo’, decisivo na ruptura de Heidegger com Husserl, ganha a
secundariedade que tinha em relação ao ‘movimento’ na definição da Physica de Aristóteles, de que é a medida, o número; que
depois a temporização venha a ser dita devir-tempo, não do espaço mas do
espaçamento, isto é, do fazer-se espaço, devir-espaço, tal como a
temporalização é fazer-se tempo, devir-tempo, sublinha ainda que se trata da
prioridade do movimento sobre o tempo e o espaço, categorias fortes da
modernidade europeia, a começar pela Física e o seu espaço-tempo einsteiniano.
O tempo nomeadamente foi a categoria que mais marcou a ruptura do século XIX
com os séculos clássicos (como mostrou Foucault em As palavras e as coisas), é uma categoria de entes, correlativa do verbo
‘ser’; o espaço é uma categoria chave dos estruturalismos, que incidiram sobre
o espacial já feito espaço e que não a souberam articular com o tempo, nomeadamente
da história[1]. É que
justamente os estruturalismos rompiam com o tempo enquanto categoria dos
‘entes’, vivos ou fabricados, para os relacionar em estruturas que os situam e
lhe dão sentido. O que Derrida, pós-estruturalista, pós-husserliano e
pós-heideggeriano é a possibilidade de pensar o estruturar-se, o fazer-se ou o
transformar-se da estrutura, mas também, como sua condição, do fazer-se do próprio
ente, o vivo ou o fabricado, como do discurso ou texto. (b) a “estrutura da
relação ao outro” implica também a temporalização, já que significa que os
entes, vivos ou fabricados, vêm de outros e só em relação a outros têm sentido,
não há ilhas nem arquipélagos. Em relação aos vivos, tanto se diz a origem a partir
de outros vivos, a sexualidade como regra geral das origens deles, mas
igualmente a necessidade incessante de alimentação vinda de outros vivos no
reino animal, com ainda em relação aos animais diz a aprendizagem de
comportamentos úteis a essa reprodução (progressivamente mais complexa, desde o
reconhecimento pelo faro de presas). Tudo o que é fabricado tem origem em
artífices, matérias primas e instrumentos e como finalidade usos pde outros.
Como se esta estrutura da relação ao Outro reintroduzisse algo de evocativo da
causalidade final aristotélica que a filosofia e a ciência europeia evacuaram.
Mas também o uso do termo temporização em vez de ‘temporalização’ em Marges situa o motivo de diferendo na relação ao Outro. (c) A “linguagem como
escrita” ou a arqui-escrita como origem da linguagem, motivo que foi mal compreendido
– a escrita antes da fala – porque afrontando justamente a mais irredutível das
oposições vindas dos Gregos, o privilégio da interioridade e do pensamento, o
que chamou logocentrismo:
trata-se da transformação da relação dentro / fora; só há linguagem, voz e
discurso duplamente articulado, a “fala” (parole) dos estruturalistas, porque há antes e fora do falante a língua dos Outros, a qual penetra
nele e o faz, o estrutura
como falante e pensante, tal como
as formas de aprendizagem de outros usos, de fora se faz o dentro enquanto
dentro que antes não existia, a consciência de Husserl, por exemplo, que é
devido à aprendizagem de usos nomeando coisas que é intencional.
6. Seja um exemplo que recapitule este triplo
gramatológico na sua indissociabilidade, aquele que me é mais familiar,
escrever ou ler, ouvir ou falar. (a) O espaçamento é o fazer-se das linhas
escritas de palavras em frases ou da fila indiana de sons, espaços estritamente
regrados (uma letra pode alterar uma palavra, ‘rasto’ ou ‘rasgo’), intervalos
na escrita que não na fala, o fazer-se de algo que não existia (havia papel em
branco e ar entre os interlocutores, um cabo telefónico porventura). Esse
fazer-se espaço é simultaneamente temporalização, mas esta não é apenas
‘linear’, já que implica que se retenha o já dito ou escrito e se adie em
expectativa o que virá em seguida, sabendo-se que o sentido do discurso ou
texto reside no conjunto e não em nenhuma das palavras ou frases, por
sublinhadas que sejam. (b) A relação ao Outro que ouve ou lê é estrutural,
joga-se na mesma língua que
ambos conhecem mas está longe de se esgotar nessa relação ocasional, já que
cada um compreende o que se escreve ou diz consoante o seu saber aprendido ao
longo da vida, como é óbvio quando há desigualdades de saber devidas à idade ou
à posição social. O que se liga por exemplo com o que Derrida chama “o fim do
livro”: um livro provém de muitos textos que o seu escritor leu, e até de
outros que não leu mas leram os autores de textos que ele leu, mas também na
sua leitura o leitor exerce a sua competência de leitor de muitos outros. A
noção de intertextualidade implica que não se pode cortar senão arbitrariamente
um texto ou uma sua parte, como citação, que qualquer texto é um agenciamento de citações infindável (c) em que
tudo o que se ouve ou lê, mesmo esquecido no curto prazo, é aprendido de fora
para se converter em dentro, aceite ou contestado, o diferendo das opiniões e
dos argumentos sendo parte estrutural deste movimento de linguagem. Usei a
palavra ‘movimento’, com que tinha começado esta explicação com Derrida,
dizendo que o “movimento da temporalização” era ocultado, como sendo o do rasto ou da différance, não acessível fenomenologicamente[2].
Ora bem, o que há de linear no espaçamento como espaço e tempo de escrita ou
fala, da leitura ou de audição, é um movimento fenomenologicamente acessível
(pode-se filmar alguém a escrever como se filma alguém a falar): este movimento
é justamente o rasto ou vestígio do movimento oculto que Derrida chamou assim, indescritível aliás na sua
complexidade de retenções e expectações como de relações a Outros (mais do que
muitos). Que nós não possamos saber este jogo oculto de que só apanhamos
vestígios é uma razão para tornar fortemente complexa a questão da memória, em
que há muito de não consciente, e que é o que faz a fartura duma psicanálise.
Limites e possibilidades do Dasein
7. Retomando a questão posta a Heidegger, vê-se à
luz gramatológica que a diferença Dasein / mundo não vai ao cabo que faria dela uma não oposição, permanece uma
zona inexpugnável dele, um resto de logocentrismo, de resistência ao mundo como
exterioridade, apenas de acesso, sem retorno nem iniciativa. O Dasein não só não aprende como nem sequer se alimenta,
mas também não nasce pela mesma falta de iniciativa do mundo em que ele é, não
cresce, não foi criança. É ser no mundo e não ser do mundo, muito menos ser o
mundo; também é ser no tempo, mas não ser temporalizado nem espacializado, não
é um vivo, como Derrida ironiza algures; se é mortal, não é por ser vivo, mas
por uma razão existencial, a sua possibilidade de antecipar a morte e de se
angustiar em consequência, de se poder ‘converter’ à existência autêntica. Por
outro lado, enxertar no seu ser no mundo a aprendizagem permite perceber melhor o seu motivo de possibilidade como sendo simultaneamente tanto a do Dasein como a do mundo em que ele é, indo até à
possibilidade de mudar parcialmente o mundo, nomeadamente inventando novos usos
que se revelem fecundos para os Outros.
Gramatologia e ciências
8. O exemplo do § 6 permite perceber porquê a
Linguística foi uma ciência decisiva para a instauração da Gramatologia, embora
o autor tenha tido o cuidado de dizer que se tratou sobretudo de razões
estratégicas, que poderia começar por outra ponta, como aliás se ilustra no
texto “Freud et la scène de l’écriture” (in L’écriture et la différence) em que, tanto quanto me lembre, a linguística
nunca é chamada à argumentação gramatológica sobre Freud. Mas a reflexão que
proponho aqui tem a ver com a compreensão de como o triplo gramatológico
permite elucidar a complexidade das questões das várias ciências, sobre as
quais tenho trabalhado a partir do motivo posterior de duplo laço, deduzido gramatologicamente mas usado
preferencialmente nas questões éticas e politicas dos anos 80 e 90. Devo dizer
que nunca me lembrei de tentar buscar ilustrar a fecundidade deste motivo no
meu trabalho com o triplo dos inícios gramatológicos, nem vejo muito bem, assim
de repente que penso nessa hipótese pela primeira vez, como isso se poderia
fazer, embora se trate justamente duma categoria que explicita o movimento, mas duma outra perspectiva, que se presta a
análises fenomenológicas que pressupõem já feitas, acabadas, as ‘coisas’ que se
movem nas cenas que as dão. Em relação à Biologia, o triplo esclarece como se
estrutura um animal (de plantas não sei nada), sendo certamente a embriologia a
região mais complicada do processo de crescimento, a que terá maior proximidade
à difícil questão da evolução e dos seus mecanismos que ela porventurqa repete
parcialmente, como propôs Haeckel*. A dificuldade consistirá no espaçamento e
temporalização dos diversos órgãos do organismo, na maneira como eles jogam uns
com os outros na sua incompletude, o feto sendo alimentado pelo sangue da mãe
que versa oxigénio e moléculas no seu sangue enquanto os outros órgãos se vão
constituindo par apenas entrarem em acção, pulmões e digestão, a seguir ao
parto. Será a seguir que, ainda muito imaturos mas já capazes do essencial,
estes órgãos vão crescendo em espaçamento e temporalização adequando uns e
outros, com a vinda incessante de alimentos e as primeiras aprendizagens
neuronais. O início é caótico para o feto e depois bebé, precisando sempre de
outros para ir singrando, até ganhar competências seguras para partilhar com os
outros o que dá e o que recebe da unidade social. A Neurologia fará parte do
mesmo tipo de dificuldades, multiplicadas pela complexidade incrível do sistema
neuronal (voltarei em breve à questão). Se pensarmos no início dum casal em sua
casa, também ele é caótico, não apenas por utensílios que ainda faltam mas
também por se começar quase como um acampamento de malas, roupas e coisas que
se vão estruturando – espaçamento da casa na sua temporalização inicial – no
dia a dia, até se estabelecer a rotina dos usos diários em que cada um tem o
seu papel. É claro que tudo vem de fora, repete mais ou menos o que as outras
casas fazem, o que se aprendeu a fazer nas suas casas, se conta com o apoio de
familiares e amigos. Neste jogo, também se dão muitas retenções e adiamentos,
relações entre os vários e com os móveis e louças, roupas, e por aí fora, tudo
induzido por um movimento oculto complexo de que só se apreende alguns
aspectos, capazes de serem contados aos de fora. Se a exigência científica de
descrição dum processo organizativo duma unidade social, casa ou fábrica, é
extremamente maçador nos pormenores, muito mais é o indescritível do rasto que
a gramatologia pressupõe.
9. Resta a questão da Física e Química, mas a
dizer verdade não há a priori
adequação da Gramatologia a elas, que Derrida falará nos anos 90 de “rasto
vivo” (trace vivante) em
diálogo com Elisabeth Roudinesco: em rigor, o rasto é a invenção da vida. Mas
tentemos qualquer coisa. Para a Química, seja o exemplo no estaleiro dum
edifício das cofragens com os respectivos ferros que se enchem com uma mistura
de cimento, brita, areia e água e se a deixa os dias necessários para que o
cimento faça presa da brita e da areia e o conjunto agarre o ferro: haverá um
espaçamento rígido do betão armado que deverá durar uma temporalização de
bastantes anos como um edifício, segundo desenhos e cálculos que uns fizeram e com
o fim de habitação para Outros, tudo tendo vindo de ‘fora’ para criar um
‘dentro’ urbano. Mas talvez se possa dizer que o aforismo de Lavoisier, “na
natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, seria a ilustração
química do triplo gramatológico. Quanto à Física, a primeira observação a fazer
é que espaço e tempo são desde o início duas dimensões (medidas) indissociáveis
de movimentos e que a noção de espaço-tempo, se por um lado sublinha a sua
indissociabilidade, por outro creio que tende a ser tomada isolada e a esquecer
a primazia do movimento que assim se mede; mas é fortemente significativo que a
gramatologia tenha retomado o tempo que na Physica de Aristóteles media o movimento e o espaço que
Galileu lhe juntou no primeiro exemplo de Física e sabido encontrar o movimento como razão de ser
dos dois, como quem liga as duas grandes teorias do movimento, a dos Gregos e a
dos Europeus. A relação ao Outro aqui é bizarramente contida no motivo da
inércia, segundo o qual só há início, alteração ou fim de um movimento, se uma
força exterior o impuser, que na Física não há dentro (nem na Química aliás).
Não havendo dentro, tudo é fora ou não haverá fora? A questão pôr-se-á para o
motivo de campo de forças, como por exemplo o do sistema planetário, que a
astrofísica recente do universo em expansão, tornou muito mais curiosa do que
quando não se lhe conhecia senão uma rotina de circulação de órbitas
permanentes. Como é que ele permanece assim, levado embora na expansão, lhe
resiste todavia? Pela relação recíproca das respectivas forças de gravidade,
pelo campo que elas constituem, o qual é uma estrutura de astros em
movimento. Como é que esse campo
se estruturou assim, não sei se os astrofísicos sabem, como não sei se todos os
astros que eles conhecem mais de perto formam igualmente campos estruturados de
maneira equivalente, e muito menos sei se, havendo casos desses, se trata duma
regra ou de excepções. O nosso sistema solar é uma excepção ou é a regra? Ou
tão frequentes são as estruturas como as excepções? As galáxias são estruturas
de estrelas sempre relacionadas estavelmente? Se for assim, então a grande
excepção é a desestruturação – uma multidão louca de partículas a temperaturas
impossíveis – que os físicos propõem como sequência do mito deles, o famoso big
Bang. Esse não universo resiste a qualquer gramatologia ou fenomenologia, sem
nenhuma verosimilhança laboratorial, é um mito que pede crença: os cálculos em
que se baseia poderão ser retomados, tal e qual ou corrigidos, por uma hipótese
mais consistente de futuros físicos.
Que o que sabemos foi aprendido é
o que não podemos saber quando sabemos desse saber “não fenomenalidade
constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em geral [...] não doação no coração de cada doação” (L’événement et le
(non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p. 155-183,
oct. 2017). Um retiro
da doação para que ela possa ser doação
[1] Também a Biologia
molecular, segundo a minha leitura do confronto entre Darwin e Barbieri, revela
o mesmo problema ‘estruturalista’ na dificuldade em tematizar bioquimicamente a
evolução.
[2] Que o que
sabemos foi aprendido é o que não podemos saber quando sabemos, é o retiro da
doação para que ela possa ser doação, o que Derrida chamou “o impossível”: “não
fenomenalidade constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em
geral [...] não doação no coração
de cada doação” (L’événement et le (non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p.
155-183, oct. 2017).
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