quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Uma ética do dom, de não violência






A lei da selva é anti-ética
A lei da guerra necessita de moral disciplinar
Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
Doação retirada e possibilidade
Uma ética da contingência
Uma ética de não violência

1. “Deixar ser o ente”, foi a fórmula em que Heidegger burilou algures o que se poderia chamar a sua ética geral. Ela resulta do retiro da doação do ente e do seu tempo pelo Ereignis, na proposta final de 1962, e como ética poderá ser dita assim: deixar a um dado ente com que se tenha relação, não apenas mas sobretudo humanos, deixar-lhe possibilidades da forma fecunda que convém à sua doação. É sobre esta questão que queria reflectir brevemente, duma forma necessariamente simplista, já que nunca frequentei a bibliografia deste tipo de questões, não cheguei à filosofia por razões éticas ou existenciais, como por vezes sucede: assentei-me nos seus bordos para as ciências sociais e humanas, nomeadamente a linguística por razões históricas, da proeminência estruturalista desta disciplina nos anos 60 e 70 em que trabalhei em Paris. Mas antes, vindo de questões teológicas tratadas por um tomismo insuficiente, ia lendo alguns textos de Heidegger.

A lei da selva é anti-ética
2. A lei da selva, que obriga cada animal de qualquer espécie a sobreviver comendo o que lhe chegue de outros vivos, vegetais ou animais, e que segrega hormonas que empurram para os comportamentos de sobrevivência, não é uma lei ética no que diz respeito às espécies carnívoras, sem falar de insectos e outros invertebrados. As espécies herbívoras, tanto quanto eu imagino, não destroem as plantas de que comem as folhas, já que estas as regeneram e, se elas desenvolveram músculos e astúcias na evolução, foi para se defenderem dos músculos e astúcias de carnívoros que não podem fugir ao destino de predadores. E deles os humanos herdaram – ainda que seus primos primatas sejam herbívoros, dignos antepassados comuns dos actuais vegetarianos –, tornando-se mais ou menos precocemente carnívo­ros, com ajuda do domínio do fogo ou precedendo-o, passando obrigatoriamente pelo canibalismo ou não, tudo questões que têm os seus especialistas e que não me parece virem agora ao caso, se for certo, como creio, que os nossos músculos e astúcias de mamíferos foram herdados da existência colateral de espécies carnívoras, como já eram muitas espécies invertebradas e vertebradas não mamíferas. O ponto que importa aqui é que os herdámos da lei da selva, como selvagens que foram os nossos antepassados antes de aprenderam a cultivar plantas e a criar rebanhos. E já então essa lei se desdobrara em lei da guerra.

A lei da guerra necessita de moral disciplinar
3. É esta lei da guerra, que a história e a antropologia atestam inexoravelmente[1], que põe o problema da violência, outrora dito ‘problema do mal’, que angustiava teólogos e filósofos, saberem como explicar a origem dele por um Criador suposto bom: nas nossas línguas, este motivo teológico não era totalmente separável desta violência, a noção de ‘criador’ se ligando à de ‘criação de gado’, como à de ‘criança’ e de ‘criado’, tudo entes que teriam em comum a necessidade de cuidadores para os deixar crescer sem violência, sabendo discipliná-la. A moral, tenha o nome que tiver em qualquer língua, é justamente a necessidade social elementar de controlar as dinâmicas hormonais excessivas, não propriamente de as ‘reprimir’ mas de as disciplinar, com o que este termo implica de aprendizagem de discípulo, isto é, dessas dinâmicas variadas saber fazer motivos (motores) de vida social, de vida com os outros, aprender a discernir nas rivalidades estímulos que não se oponham às necessidades de alianças na vida doméstica ou social.

Doação retirada e possibilidade
4. O que é que o motivo heideggeriano de doação retirada pode esclarecer nesta questão de ética disciplinar? “Deixar ser o ente” terá a ver, para começar, com o sentido das pulsões hormonais que, de secreção endócrina, são delas mesmas cegas para o exterior e por isso excessivas, como se sabe desde o choro dos bebés. São justamente, como dizer?, o pólo activo que há que ‘deixar ser’, que não se pode querer ‘apagar’, fazer desaparecer, mas que há que passivar por doação disciplinar, ‘actipassivar’ por aprendizagem de comportamentos com finalidades de aliança: por exemplo, jogos com os outros que impliquem um motivo de rivalidade, mas com regras que obriguem a criar habilidades e a merecer ganhar, ao rival ou adversário que não ao inimigo, com quem noutros comportamentos se tecem alianças. Educar é deixar ser aquele que se educa, ainda que por vezes em revolta contra o educador, sinal de que pode estar a abrir-se-lhe uma possibilidade que escape a este. O meu filho ou aluno não tem que ser como eu.
5. O motivo heideggeriano de possibilidade é, de certa maneira, uma retomada da dunamis aristotélica, a capacidade ou potencial de movimento (implicando ‘força’, dinamização), mas com uma diferença importante, a da sua temporalidade; sem oposição aos ‘acidentes’ (temporais na sua acidentalidade), as possibilidades vão-se reconfigurando a partir dos seus efeitos, devido a ‘acontecimentos’[2] em que outros igualmente intervêm: ‘possibilidade’ articula-se de muito perto com ‘aprendizagem’, esta sendo susceptível de suceder uma vida inteira. Este motivo é o ponto forte quando a questão se põe em termos mais largos, da ordem do social e político. Se há uma maneira de dizer com brevidade o que é a exigência da democracia no que diz respeito a todos e a cada um dos cidadãos, é que ela fomente e respeite possibilidades, que em cada caso seja esse o critério da sua fecundidade. Pode-se talvez dizer que este motivo de possibilidade, central em Ser e Tempo, pode circunscrever melhor o motivo de ‘liberdade’ que é muito genérico e se arrisca a ficar esvaziado: porque as possibilidades são mais claramente individuais e diversas enquanto tais. A elas corresponde o verbo poder, o que cada um pode, com a temporalidade que lhe advém de possibilidades conseguidas abrirem novas possibilidades e dizer-se assim, quer para a frente, quer retroactivamente (em currículos), a caminhada social de cada um. A outra vantagem do termo é a de se poder também caracterizar o que barra socialmente essa caminhada de cada possibilidade com o uso do substantivo poder: o que não deixa ser tal possibilidade, se lhe opõe, impede a sua doação manifesta. Haverá que distinguir aqui dois substantivos, ‘poder’ e ‘autoridade’, esta sendo provisória no caso da educação, cujo objectivo é ‘deixar ser’, ou sendo estruturalmente necessária por razões de especialização, a autoridade dum médico ou enfermeiro, dum engenheiro ou dum juiz, que são sempre susceptíveis de crítica por outros especialistas ou por abuso da autoridade exercida como poder.

Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
6. Um emprego numa empresa implica o seu organigrama de lugares de trabalho onde esse emprego é circunscrito, assim como regulamentos e directivas das várias actividades que criam formas de autoridade a que ele é sujeito, os próprios dirigentes devendo em princípio submeterem-se a eles, o que significará evitar que a autoridade abuse como poder, isto é, que o lugar de trabalho seja uma esfera de relativa possibilidade, de relativa autonomia, consentânea com as capacidades do trabalhador. Uma boa parte da ética ou justiça da organização do organigrama e da sua gestão deverá consistir neste cuidado das possibilidades dos vários lugares de trabalho, sendo óbvio que elas serão crescentes com o nível de competência pedido por tal ou tal lugar; uma maneira simples de conduzir essa gestão democrática da empresa é a de saber ouvir os próprios, individualmente ou por inquéritos, deixá-los exprimirem as suas reclamações de melhores possibilidades, com as responsabilidades correlativas. Se bem me lembro do filme ecologista Amanhã, a fábrica de envelopes Pocheco, em Forest-sur-Marque, no norte da França, de que o filme fala, tem 20 anos de experiência voltada para as condições de trabalho e de produção e não para o lucro, com um ciclo de reprodução que tende a dispensar matéria prima nova, recorrendo aos desperdícios do século XX e vendendo por sua vez os seus para reciclagem de agricultura. Será um caso exemplar de utopia económica, em que o que conta é o produto, o processo de produção e o ambiente, tanto o dos trabalhadores na fábrica como o do planeta, ou seja tudo o que é doado, pessoal e seu saber, maquinaria e matéria prima, é recebido como tal, como dom que se respeita no cuidar do processo de produção. Um exemplo de economia que não existe para dar lucro, o que há é reinvestido.
7. Após este belo exemplo, peguemos na questão mais geral. O substantivo poder poderá ser abordado através dos indicadores das suas três principais formas, que já o eram nas sociedades antigas, como revelam os textos dos evangelhos ditos sinópticos, que contam uma rebelião não armada que avança contra o poder financeiro e político envolvendo a religião estabelecida em torno do Templo de Jerusalém e a sua cumplicidade com o ocupante romano. Esses textos oferecem, a uma leitura que saiba entender a componente política e financeira dessa estrutura religiosa, a tríade do que se pode chamar os feitiços (palavra portuguesa donde Marx decalcou o “fetiche”) que coarctam desejos e portanto possibilidades: o do Dinheiro, o do César e o do Deus dos mortos[3], o primeiro indicando claramente o poder financeiro, o segundo o poder politico e das armas e o terceiro o poder de ‘publicidade’, no sentido, hoje mediático, do discurso que a sociedade publica, das ortodoxias que se impõem, a distância e por sedução, ao saber dos que, espectadores, são captados pelos diversos doutos e stars que substituíram os antigos clérigos e os intelectuais que lhes sucederam: os seus efeitos são de limitação das possibilidades dos que lhes estão – literalmente – confinados, efeitos de violência social que se sobrepõe às diversas ‘autoridades’ que a organização social implica como inerentes à reprodução do conjunto. Mas aqui as coisas tornam-se extremamente complicadas, que ao fenomenólogo não cabe fazer ciência social, além de lembrar o testemunho do Amanhã, mas procurar discernir linhas utópicas de justiça, recorrendo ao motivo da doação e do seu retiro.
8. Os feitiços são armaduras que tornam possível o poder substantivo, o fazem jogar ao invés do retiro: impõe-se de forma constrangedora e sofrida aos que se lhes sujeitam sem saberem e poderem evitá-lo. Impõem o ‘querer ser rico’, o ‘querer vir a mandar’ na politica ou equivalente, procurar prestígio mediático, tudo maneiras de se atrofiarem possiblidades fecundas, abertas, de as gentes se encafuarem em poses e etiquetas de circunstância, demolidoras da vida, de que a gravata masculina oferece a simbologia, uma corda apertando o pescoço. ‘Sofrida’, porque contra-doação, restrição de possibilidades abertas pela doação (biológico-tribal), possibilidades que cada um pode compreender do que vê, ouve e lê, como dizia Sophia e canta F. Fanhais. Dito duma forma geral, os salários poderiam ser melhores, se a economia fosse para serviço das comunidades e não para enriquecer patrões e accionistas; os cidadãos deveriam ser tratados como tal, ainda quando julgados e condenados; as gentes poderiam estudar, se não fossem aliciadas permanentemente para sei lá o quê. As doações acabam por se revelarem um imenso desperdício de possibilidades individuais, e portanto colectivas.

Uma ética da contingência
9. A questão ética atravessa Ser e Tempo, ainda que o autor o negue, nomeadamente na distinção entre “autêntico / inautêntico” (ou “próprio / impróprio): a descrição do Mann (‘on’ em francês) na peugada do Mitsein (ser-com) é de facto uma ilustração do que ele considera “inautêntico”, em linha com uma longa tradição misantrópica ocidental; há acontecimento da autenticidade quando a componente da temporalidade do Dasein, ser no mundo, implicando a sua finitude, se desvela como angústia do ser-para-a-morte. Hei-de confessar que é uma zona do livro que nunca me interessou muito, justamente porque a dimensão ética não foi o que me atraíu na fenomenologia, nem no existencialismo sartriano, mas a finitude parece-me ser fulcral para a questão da doação que será, com o seu retiro ou dissimulação, a grande descoberta do chamado II Heidegger. A finitude, com a noção de ‘fim’ que retém, terá a ver com a questão da morte e com a sua ocultação pela alma cristã imortal e pelo seu céu que anula o ‘fim’ que é a morte: é provável que é aonde se move o pensamento heideggeriano, que tenta desengatar-se dessa que foi a sua tradição de juventude (minha também). Mas os Gregos que veneramos como pensadores tinham uma outra palavra, por assim dizer pré-cristã, a de contingência, que Platão ilustrava com o par geração / corrupção, ou seja nascimento / morte, para dizer a radicalidade, não apenas humana mas terrestre, de qualquer vivo, sendo, por outro lado, os vivos – os que crescem (phuô), os da phusis – o que no terrestre é o mais surpreendente, mais digno de ser pensado e estimado, como Aristóteles mostrou de forma extraordinária ainda a olhos de hoje. A própria noção de tempo (chronos) é marcada pela contingência (que é a "facticidade" em Heidegger, ou seja, aquilo que nele muda, releva do tempo): naquele motivo temporal por excelência a que este filósofo chamou “acidentes” e que afectam os vivos sem necessidade (por acaso, acontecimentos, contingência), mas também no que se repete como ciclos, desde o dia e a noite ao ano, os ciclos das plantações agrícolas que se inscrevem nos do ano, os da vida de cada um, o próprio par geração / corrupção indicando nomeadamente os ciclos da vida humana[4].
10. O motivo heideggeriano de doação, tal como eu lhe entendo o alcance, é antes de mais plural: todos os entes, vivos ou fabricados, são dados por acontecimentos, ainda que rotineiros mas podendo não ter sido, dados com suas possibilidades temporais e sem destinos prévios, já que sempre sujeitos a acidentes imprevisíveis. Essas possibilidades, dos humanos de hoje, são regradas: temos que comer e dormir diariamente, por exemplo duma contingência maior e em torno da qual jogam direitos humanos fundamentais, questões de justiça que devem passar à frente de todas as outras; regras também dos usos e costumes tribais (familiares, escolares, profissionais) que, vindo de aprendizagens, são sempre abertos a correcções e inovações, portanto a alargamentos de possibilidades, que são de cada um e do seu mundo, isto é, das suas unidades sociais e das sociedades em que elas se inserem. Este ‘regrado’ consiste nas rotinas das diversas estruturas sociais, as quais, com suas autoridades, são estritamente necessárias para confortar a precariedade das contingências de cada um, que não pode ser deixado ao deus-dará na sua vulnerabilidade face às rivalidades permanentes resultantes da lei da guerra. Doadas igualmente por tradições e suas correcções, regras e rotinas e autoridades são o que garante as possibilidades singulares, em unidades sociais e na ordem política de que elas precisam. É óbvio no caso dos pais e dos professores que a autoridade deles é para se apagar com as aprendizagens de filhos e alunos, quando eles vão à vida e ao trabalho.
11. Ora, esta autoridade estrutural, estruturalmente necessária, é / foi de longa tradição apropriada pelo poder substantivo em proveito próprio, coarctando parcial mas decisivamente possibilidades daqueles que contribuem para o movimento de reprodução das unidades sociais, a quem se pode dar o nome de trabalhadores no sentido da reprodução social. Retomemos os três feitiços de forma artesanal, já que as questões são imensas e não são o meu forte. O ‘dinheiro’ é necessário como ‘propriedade’ de cada um que lhe permite liberdade na esfera do consumo: nenhum destes dois termos está em questão, mas sim a possibilidade, com origem antiga e feudal nos tempos dos guerreiros como nobres, de dominadores sociais se apropriarem como riqueza sua, em dinheiro acumulado, uma parte importante do que resulta de trabalho doutros. Igualmente, a autoridade política de ‘reger’ (rex) o mundo social com corpos armados, havendo lei da guerra de que eles são sintoma e efeito, é necessária em vista das leis e para resultarem em ordem, mas as armas calam as bocas que reclamam justiça para as possibilidades dos trabalhadores, o poder político resulta em segurança dos que o exercem e dos outros dominadores à custa das restrições que impõem. Enfim, o saber, que nas sociedades hodiernas aparece cada vez mais como factor decisivo de trabalho de compreensão de inúmeras dimensões e solução de inúmeros problemas, pede acesso facilitado ao conhecimento a qualquer um que manifeste capacidade de vir a ser um especialista. Aqui é mais difícil de simplificadamente dizer como é que os que trabalham nos médias, de livros e jornais a rádios e televisões, se tornam facilmente coniventes com os ‘poderosos’ do capital e do poder politico, ao servirem o novo “ópio do povo” dos tempos de lazer, tão necessário enquanto divertimento e festa como o sono nocturno (o ‘ópio’ implica gozo, Marx deu por isso ao cunhar a célebre expressão).

Uma ética de não violência
12. Chega-se enfim à questão levantada pelo título deste texto, entre dom e violência. O poder substantivo é a forma mais violenta de violência, porque perene, com raízes que as revoluções não têm conseguido arrancar, mas que se apresenta mascarada de ‘realismo’, de ‘sempre foi assim’. Em face dela, da lei da guerra que a protege, que fazer? Ser e Tempo propunha o par “autêntico / inautêntico”, ou “próprio / impróprio”; ‘próprio’ certamente inadequado face ao motivo derridiano de “apropriação”, tal como em ‘autêntico’, há algo da insularidade dos sujeitos e das almas nesta adjectivação. Preferiria o termo de justo para pôr a questão da atitude diante da lei da guerra e dos seus efeitos nefastos, como forma geral da questão ética, se é permitida esta simplificação. Que pode significar “deixar ser o ente”, se for questão de seu ‘ser’: querer ‘ser justo’ e não  se submeter ao dinheiro e ao poder de César e às respectivas ortodoxias? Deixar desvelar-se as doações de que se é fruto, tratar com desvelo – linda palavra heideggeriana da nossa língua – a descoberta da sua contingência, como quando se diz que se teve “muita sorte na vida”[5], reconhecimento que, se por um lado é constatação dum certo contentamento com o que se foi sendo, é também o outro sentido da palavra ‘reconhecimento’, gratidão pela sorte recebida. Esta duplicidade do reconhecimento é uma palavra de justo, que reconhece os dons. Que enfrenta a lei da guerra, localmente (como sempre cada um em qualquer posto que seja) sem o reforço dos feitiços, do poder do dinheiro que compra ou da instância política ou social que ordena ou das ortodoxias que fazem rebanhos. Um dos indícios de que se trata dum/a justo/a é a guerra que os poderes lhe fazem, contraste claro com a desapropriação pelo justo de coisas que aprendeu na tribo, a despossessão dos feitiços e das suas poses mediáticas, fecundidade não sabida de dons. A fecundidade é um outro indício, quando sucede algo que vai além das possibilidades aprendidas, inesperado por isso (“rasto diacrónico”, em linguagem de Levinas). Experiência de algo que em linguagem cristã se chamava “graça”, a gratuidade d’ “a rosa (que) é sem porquê” (Angelus Silesius, poeta alemão citado por Heidegger), tudo nela é dom.
13. A doação retirada heideggeriana é pré-ética, já que também é doação da violência, aqui Heidegger (§ 9) teria razão. Se o dom triunfou na não-violência do Mahatma Gandhi, que obteve a independência da Índia face ao império inglês, desvalido é certo das consequências da guerra mundial, ele está longe de assegurar sempre a fecundidade: a ‘graça’ pode virar ‘desgraça’, como aconteceu ao líder galileu dum movimento popular a quem propôs uma ética de doação não violenta, se se pode dizer, para enfrentar desabridamente os poderosos do seu tempo no Templo deles, mas que acabou traído e crucificado.



[1] Como é manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que evoca o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas socie­dades primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes, exploradores, missionários, comerciantes ou es­tudiosos: “americanos (do Alaska à Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das este­pes ou melanesianos das ilhas, nómadas dos desertos australianos ou agri­cultores sedentários das florestas da Nova Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente dados à guerra; é o seu carác­ter particularmen­te belicoso que impressiona, sem excepção, os observado­res euro­peus. [...] o que é suficiente para autorizar uma constatação socio­lógica: as sociedades primitivas são sociedades violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra”. P. Clastres, "Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas", in Clastres e outros, Guerra, religião, poder, [Libre 77-1], Ed. 70, 1980. Para a História, bastará a constatação de que as sociedades sem industrialização foram dominadas politicamente por castas nobres de guerreiros.
[2] ‘Acidente’ e ‘acontecimento’ são motivos equivalentes, implicando ambos a não necessidade ou imotivação, só que o primeiro é mais conotado negativamente e o segundo positivamente, mas ambos são alheios à diferença entre bem e mal.
[3] Esses três textos, de Marcos, Mateus e Lucas, com as suas diferenças também políticas, opõem o seu principal actor, Jesus como Messias que fomenta o reino de Deus”, ao Templo que, na altura em que o primeiro deles foi escrito, acabava de ser incendiado por Tito no ano 70. Ora, este reino escatológico por vir (que não veio) cifra-se no debate ideológico em três oposições: “Deus e o Dinheiro” (Mateus 6,24,), “Deus e César” (Marcos 12,13-17 e paralelos nos dois outros), “Deus dos vivos e Deus dos mortos” (Marcos 12,27 e paralelos)
[4] A nossa noção de história, com uma finalização, era ignorada por eles, não passando de acidentes em série, por assim dizer. O antes / depois de Cristo assinala como a noção iraniana e hebraica de escatologia marcou a possibilidade da noção moderna de história, de que as filosofias de Hegel e depois de Marx revelam as marcas históricas e evolutivas do século XIX, industrial e pós revolução francesa.
[5] Como disseram Miguel Lobo Antunes e Rui Vilar, exemplos que retive dos bons tempos das entrevistas de Ana Sousa Dias no 2º canal da RTP.

domingo, 14 de janeiro de 2018

“O olho e o mundo na fala” (Derrida)



1. “L’œil et le monde dans la parole” é uma expressão de Derrida (num pequeno livro sobre a economia do signo em Husserl, A voz e o fenómeno[1]) que tem a vantagem de relacionar vivos, coisas e as sociedades em que elas são trabalhadas, as ‘mãos’ fazendo parte da relação do olho ao mundo, relacionar entre si trêss domínios de ciências fenomenológicas adentro dum quarto, o domínio da linguagem. Nesse texto, a consciência é definida como “auto-afectação da voz”, o ouvir-se falar, ainda que não em voz alta: sendo a voz um movimento de frases ditas em sucessão, discurso estruturalmente temporal, tem no entanto uma diferença importante, enquanto parte do domínio da linguística e da semiótica e à diferença dos três outros domínios, física química, biologia e sociedades, a de a língua não ser composta de ‘entes’ e por isso mesmo exigir (tal como a música, os números e as imagens) um como que substrato em que se inscreva, no caso da fala correntes de ar, ou no da escrita papel ou equivalente.
2. [Vantagem de se estar reformado e de ter um blogue: pode-se ir escrevendo sem ter que obedecer a praxes e poses académicas, apenas ao gosto de ir pensando com o pensamento que vem, enquanto vem, tendo a boa ilusão de se ‘publicar’ (mas os livros também vivem da ilusão de serem lidos, sabe-se lá por quem, e ainda bem) que obriga a uma seriedade séria, ainda que ninguém leia, ou se alguém ler que tenha vontade de voltar]. O que agora veio foi ter percebido dessa frase de Derrida e duma outra que lhe anda perto, segundo a qual “não há fora de texto”, que as palavras não serem coisas, entes (assim como as imagens e os números, que a música é outro mundo ainda, o mais abstracto de todos), é primacial nas suas imensas – sem medida – possibilidades. As palavras são ‘nada’, puras diferenças entre sons aéreos, frequências eléctricas ao telefone ou suas ondas electro-magnéticas entre telemóveis, riscos ou pontinhos de Braille em papel ou ecrã de computador, ou ainda no cérebro que fala, ouve ou pensa sem voz, diferenças electroquímicas entre sinapses[2]. Tudo isto são exemplos de “matérias de empréstimo” usadas pelas línguas, expressão que o filósofo francês Alain inventou para a pintura. A questão é tentar perceber um pouco melhor como é que o ‘nada’ das palavras e frases joga em relação aos entes que são as pedras e a água, os cães e as gentes, as coisas dos usos quotidianos.
3. Em que consistem as falas ? Antes de mais, em nomes e verbos, aqueles sobre entes com estabilidade e temporalidade, ditos ‘substantivos’, estes sobre mudanças deles; depois em qualificativos de uns e outros, respectivamente ‘adjectivos’ e ‘advérbios’; depois em elementos permitindo situar locais e momentos, relação do que se diz a quem diz e ouve, e ainda junções de nomes com nomes e de frases com frases, maneiras de ligar estas para formar discursos mais ou menos longos, e por aí fora.  E ainda o truque de fazer dos qualificativos nomes (ou verbos) – de ‘bela’ a ‘beleza’ e a ‘embelezar’ ou de dois advérbios o conceito da filosofia medieval ‘aqui e agora’ – e de criar maneiras de falar sobre o que as frases podem fazer, uma das suas capacidades mais importantes sendo a de contar coisas passadas noutra época ou noutro lugar, fora do que se viu e testemunhou, isto é, fora do alcance do olho e do mundo que ele vê, abrir também caminho para algo antes nunca visto, o que chamamos invenção. O que chamamos ‘pensar’ e ‘saber’ passa-se em falas.
4. Tudo isto, frases ditas em vozes diferentes ou escritas em variadas grafias, que são ouvidas ou lidas com retiro da voz e do olho que disse ou do olho e mão que escreveu, o que passa assim dum ao outro ouvido ou olho é ‘nada’ que traz consigo algo do mundo, o que quer que seja que se possa dizer ou escrever por ter nome ou verbo que venha na fala. Este falar, porque é nada que se comun-ica, põe em comum, pode cobrir as coisas estáveis e as suas temporalidades, suceda ou não algo a estas. O que é ‘nada’, diz entes, gentes, lugares, momentos, circunstâncias, acontecimentos, incluindo ‘nadas’ como essência, liberdade, justiça, isto é termos sem lugar, momento e circunstância, e por aí fora. Um exemplo simples: ditar ao telefone uma receita de cozinha e o ouvinte cozinhá-la com os materiais de sua casa e os gestos que ouviu: a corrente de ar e a corrente eléctrica trouxeram as coisas pelos seus nomes e verbos, trouxeram-nas sem elas. E permitem dizer / pensar longe de coisas, o que lhes fiz ou quero fazer, sem lhes mexer nem ter que as mostrar, um ‘nada’ na vez delas mesmas, substituindo-as. Como com os números e as imagens, a fabulosa potência das palavras, das falas, que as não há sem olho (de cozinheira/o, no exemplo) nem sem mundo (nas mãos de quem cozinha), sem aprendizagem, assim: essa potência é o que se chama sentido. Não será pois por acaso que esta palavra designa também os cinco sentidos, lista que ignora justamente a voz da fonação, há muito tempo que isso me espanta. E porquê são ‘sentidos’? porque os ‘sentimos’, por certo, com relação aos ‘sentimentos’ que de dentro nos vêm, mas também porque com eles nos orientamos, no sentido do Oriente. Todos estes ‘sentidos’ juntos fazem sentido, a fala diz o sentido do olho e da mão no mundo, tal sentido é o pensamento, o saber. Não se pode separar, muito menos opor.
5. Mas foi o que fez Platão. Começou pelo Crátilo[3], em que se fartou de analisar etimologias de palavras gregas para as considerar como incapazes de chegarem a um saber fiável. Então, retiradas as palavras e a linguagem do conhecimento que almejava, pôde propor pela primeira vez na cronologia dos seus diálogos o motivo das Formas ideais eternas, contempladas pelas almas quando fora do corpo, nos intervalos das reencarnações. O que traduzo por estas duas palavras, uma latina a outra grega, é o eidos, que em Aristóteles dirá a ‘forma’ duma coisa, o seu ‘viso’ (traduzia Coelho Rosa), em francês ‘visage’ (rosto), o que se vê da coisa, sendo ‘eidos’ uma forma derivada do verbo idein (ver), donde veio a nossa ‘ideia’ europeia, que também é fora da linguagem e do mundo, até mesmo fora do olho, só intelectual, inteligível. Não sendo eterna, a nossa ‘ideia’ pertence em todo o caso ao inteligível do ‘eidos’ platónico, aquele que não tem relação com os tais ‘cinco sentidos’, com o sensível, que em Platão tinha a ver com os entes vivos, sujeitos à geração e à corrupção, ao nascimento e à morte (que horror! achava ele).
6. Esta grande separação platónica foi fortemente criticada por Aristóteles, que fez o primeiro ‘retorno às coisas’ da história ocidental da filosofia: juntou o eidos celeste, como ‘essência’, com a coisa, a ‘substância’ terrestre, mas estes dois termos são da tradução latina, nas Categorias são ambas uma só ousia, a distinção que deu as duas traduções sendo entre a ‘primária’, a ousia da coisa, e a ‘secundária’, a ousia da espécie. Mas fez isso como discípulo de Platão, isto é, juntou o que este tinha separado, deixando implícita a linguagem, se dizer se pode. Com efeito, esta teve sempre nos dois grandes socráticos o seu lugar no logos, como discurso (de razão)[4], e só tardiamente foi explicitada, coisa de grande espanto para nós, que somos de mais de uma língua: com efeito, só num dos últimos diálogos de Platão encontramos a distinção entre ‘nome’ e ‘verbo’, o Sofista (261d-262a), posterior ao Parménides, em que há uma viragem dos diálogos provocada pelas discussões com Aristóteles, jovem aluno da Academia. Por sua vez, este desenvolverá o que se chamará ‘lógica’ (de logos) sem fazer intervir (que eu saiba, mas são textos que não estudei) as várias partes do discurso estudadas no cap. 20 da Poética, do elemento (fonema) ao logos (exemplificado com uma definição e com a Ilíada), passando pelo nome e pelo verbo definidos como significando (coisas do mundo). E mais. No tratado de biologia chamado Da alma (todos os vivos têm uma, ‘vegetativa’, os animais também uma ‘sensitiva’ e três nos humanos, com a ‘intelectiva’), onde dos cinco sentidos e da fantasia se passa ao intelecto, sem que alguma vez se mencione um lugar para o logos, o qual, como se sabe, predomina na sua obra, nomeadamente na mais célebre definição filosófica, a do anthropôs (humano) como zôon echon logon (vivo tendo discurso), que Cícero nos transmitiu como “animal racional”, excluindo a implícita linguagem, que, bilingues, Estóicos e sábios de Alexandria já tinham desenvolvido como gramáticas. Não se trata de brincar com os Antigos: um neurologista tão advertido como Damásio, que sublinharia o meu ‘que horror!’ brincalhão, ele que se dedica só e tanto quanto pode ao que nasce e morre, não sabe ainda como meter a linguagem no cérebro humano: sabe instintivamente que vem de fora e tem uma concepção de cérebro como ‘criativo’, o que vai mais ou menos bem para as ‘ideias’.
7. Voltemos ao enunciado do título: ter acrescentado a ‘mão’ ao ‘olho’ e ao ‘mundo’ justifica-se? E os outros dois sentidos, do olfacto e do gosto? Para o justificar, suporia que, tratando Derrida de Husserl, um descendente de Platão e do predomínio óbvio da visão na tradição que veio dum ao outro (em Husserl, a percepção é “ante-predicativa”, prévia à fala), o ‘olho’ estaria lá, não apenas por ele, mas por todos os outros também, embora sobretudo por ele. É a isso que convida o outro enunciado de De la grammatologie, da mesma época (são dois textos de 1967), de que “não há fora de texto”. Deixando os neurologistas de lado, seria pedir-lhes demais, a questão é a da relação de conhecimento entre os humanos e o mundo em que eles são, “seres no mundo”, estabelecendo-se uma espécie de concorrência entre a fala e os cinco sentidos (ou os quatro, o ouvido sendo parte da fala que lhe responde), dizendo o do título que o olho estará, como dizer?, contido na fala (mas parole, sendo ‘fala’, também pode ser ‘palavra’, ex. ‘parole d’honneur’, nomeadamente no plural ‘paroles’, perto assim de ‘linguagem’), a questão sendo a de saber se os outros sentidos também nela se contêm, e o que é que isso significa. Sem dúvida que os humanos duma tribo selvagem (sem agricultura nem vilas) terão os seus sentidos muito mais apurados do que os nossos de civilizados, tal como os nossos cães têm um faro de muito maior alcance do que o nosso. Falando de nós, se pegarmos na questão da aprendizagem, parece claro que a fala é a última a ser aprendida, deveria ser subordinada aos sentidos que já lá estão. Acontece que todos nós nos esquecemos do que sabíamos desses tempos, o que é um índice para se pensar que à medida que fomos aprendendo a falar e a pensar, também fomos melhor discernindo o que se vê e que se vai nomeando, o que se mexe e se vai trabalhando, o que se cheira e saboreia e se vai encontrando nomes da tribo para ir distinguindo odores e sabores, mesmo que só para nós próprios: ‘tem falta de sal’, ‘a que é que me cheira? ah, é o frasco do éter que ficou aberto’, como os enólogos dizem a que sabem os vinhos. Também assim as matizes das cores e o problema dos daltónicos, tal como se educa o ouvido musical nomeando os sons dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, do solfejo. Então, o estranho “não há fora de texto” significará que o ‘mundo’ já está na fala, desde que se saiba, na vertente do Sofista de Platão, que falar também é pensar, ainda que não seja em voz alta. O que é que a gente vê, ouve, mexe, cheira e saboreia do mundo? O que aprendemos a nomear dele. Quando algo não tem nome, vai-se à procura dele, se for inédito, como sucede nas coisas do pensamento e da tecnologia, inventam-se novos nomes, em consentâneo com os que já há (hoje importam-se ‘aos montes’ nomes vindos dos Estados Unidos). Vemos pensando, mexemos e cheiramos e saboreamos pensando, trabalhamos e musicamos ‘no texto’. E este é feito de diferenças que jogam no que sabemos do mundo, complicando-o, subjectivando-o. Se pode parecer estranho, trata-se de não opor pensamento e sentidos, jogam juntos, nas palavras.
8. Isto releva da nossa tradição ‘intelectual’. O que é que esta perspectiva implica com o que se chama ‘espiritual’, ético e estético, por exemplo, a que, o que faço como fenomenologia jogando preferencialmente com ciências, não sabe dar grande cabimento, à falta de fenómenos ou de capacidade (minha) para os entender. Também são coisas que se aprendem, por certo, após as aprendizagens de base, creio, ou com elas talvez em alguns casos precoces. A palavra ‘espírito’ significa em latim sopro, como ‘pneuma’ em grego e ‘ruah’ em hebraico, sendo a filosofia platónica de Orígenes de Alexandria (iníco do sec III) que introduziu a noção de ‘espírito santo’ como “hipóstase intelectual”. Ora, o ‘sopro’ tem a vantagem de não ser ‘inteligível’, além do corpo e dos usos quotidianos, que pedem sopro muitas vezes, a vantagem de ter parte preponderante com a fala, justamente a que lhe vem da química, e por isso mesmo, a vantagem de poder dizer certos usos, éticos ou estéticos ou outros, para os quais se sopre ou se seja soprado além do corpo e dos usos quotidianos, como a coisas de maior preço, o tesouro que vale uma vida. Haja quem lhe sacrifique a fala sonora, faça profissão de silêncio para que toda a atenção dos chamados sentidos vá no sentido desse ‘além’ divino. Levinas quis desmarcar este sopro além da aprendizagem, como rasto sincrónico com a sua tribo, dando-lhe como fonte o que chamou traço diacrónico: nem sequer ‘sopro’, o ‘traço’ é um vestígio que não releva de outros humanos. Foi a maneira subtil que lhe restava para falar de Deus, quando a linguagem deixou de a permitir a diferença inteligível / sensível: subtil aliás porque justamente ‘não restava’, ele é que a inventou. Chapéu!



[1] Texto de 29/06/2016, neste blogue, Retorno à questão da mente (Damásio).
[2] O engano da gente de Sillicon Valley que trabalham com silício na Inteligência Artificial é julgarem que a electricidade de electrões que esta usa é o mesmo que a electricidade de iões das sinapses que trabalham com carbono. Um ião é, no caso, ou um átomo de sódio ou um átomo de potássio, os quais se podem transformar quimicamente um no outro trocando um electrão excedente : se a electricidade industrial, que Volta inventou ao inventar a pilha em 1800, fizesse o mesmo com o cobre, por exemplo, a corrente dava cabo dos cabos ou do hardware dum robot. Segundo as experiências de Kandler, em que aprender é criar sinapses, o que se passa no cérebro é que é o software, aquilo que é aprendido, que se torna hardware, impossível fisicamente para as máquinas de sílica. A dizer verdade, espanta-me que este engano exista, que o Vale do Silício não tenha dado pela coisa, eles a quem Inteligência Natural é que não falta. Estarei eu enganado ? não vejo como .
[3] Os eruditos discutem a cronologia dos diálogos de Platão. Este gesto de afastar as palavras do conhecimento como decisivo para a questão das Formas ideais é um critério para colocar o Crátilo antes de todos os que supõem-nas já, como o Ménon e, é claro, a República, a chamda grande digressão. Tenho um ensaio de leitura dos diálogos de Platão no blogue Filosofia mais ciências.
[4] Sofista  263 e : “Pensamento (dianoia) e discurso (logos) são o mesmo, salvo que o diálogo (dialogos) interior e em silêncio que a alma tem consigo mesma recebeu o nome de pensamento (dianoia)”.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Dasein e gramatologia



1. Procurar pensar e conhecer implica repetir-se, o que significa sublinhar o que se repete nesses vários textos como questões fortes dessa busca, de novos aspectos; ora, o que me interessa, mais do que os temas, são os gestos de ruptura de quem os trata, os toma ou abandona. Repito-me pois, mas por me ter vindo inopinadamente uma nova maneira de abordar o que costumo abordar (palavra engraçada, chega-se ao bordo vindo-se de fora, como os piratas atacavam navios: ‘à abordagem!’), neste caso as relações entre os meus três mestres de fenomenologia.

O Dasein e o mundo
2. No final dos anos 70, um colega meu cujo doutoramento foi sobre Hegel deu um curso intitulado “o problema fundamental da filosofia”; perguntei-lhe, com alguma ingenuidade, qual era esse problema, ao que ele respondeu como quem diz uma evidência: a questão do sujeito / objecto. Mais do que certo, até estes três e aos estruturalistas; era a oposição entre ambos que Husserl se propusera ultrapassar, tal como ela vingara desde a substancialização dos dois termos por Descartes, a coisa pensante e a coisa extensa, sustentada pelo privilégio desde os Gregos do ‘interior’ (que pensa) sobre o ‘exterior’ (que está aí, se vê e se mexe). Assim entre Husserl e Heidegger; o primeiro fez a consciência ser, não algo dela, de alguém, ‘coisa’ de sujeito, mas aquilo que ela percebe do objecto: a consciência é consciência de tal coisa, desfazendo a exterioridade de ambos os termos que os opunha; a intencionalidade significa que sem a exterioridade da coisa percebida não há consciência. Heidegger deslocou essa intencionalidade (a ‘intenção’ da coisa intuída ser a consciência) para o par Dasein e mundo: o Dasein é o mundo fora dele, extáctico. Não sei alemão para poder analisar o sentido deste termo que, na tradição filosófica diz o existente, com o ek- que diz o que –siste (como em consiste, insiste, persiste, resiste, desiste) fora, e foi o que Heidegger transpôs para o ser humano. Em português, ‘sein’ podendo traduzir-se por ‘ser’ e por ‘estar’ e ‘da’ sendo ‘aí’ (‘là’ em francês), haverá várias hipóteses de tradução. Sendo ‘aí’ um advérbio, fica excluído que ‘sein’ seja o substantivo filosófico tradicional para ‘ente’ (este corresponde ao conjunto, ao ‘Dasein’. Entre ‘ser’ e ‘estar’ para ‘sein’, a preferência parece ser para o primeiro, que indica constância ou consistência temporal, ‘é-se’ sempre, enquanto que ‘estar’ é circunstancial, ‘está-se’ de forma variável, é um termo mais de narrativa, singular, do que de gnosiológico filosófico. Ficaria então ‘ser aí’, ‘être-là’ em francês. Mas Heidegger precisou a Jean Beaufret, numa carta publicada em apêndice à Carta sobre o humanismo, que, não sendo embora bom francês, haveria que traduzir Dasein por être-le-là, em português ser-o-aí, o que, na sua estranheza sintáctica, justifica a exclusão de ‘estar’. ‘Aí’ como que se torna um advérbio substancializado, como sucede frequentemente com verbos (‘o comer estava muito bom’, ‘o correr repetiu-se várias vezes’). Ora, ‘aí’, tal como ‘là’ em francês, faz paradigma em oposição a ‘aqui’ (‘ici’): ‘ser-o-aí’ é então não ser o aqui que é do corpo, do sujeito: é claramente o mundo como , ser no mundo, quase como ‘ser o mundo’, onde se marca claramente a exterioridade do Dasein em relação a si mesmo, como a consciência intencional de Husserl, mas dando-se claramente em contraste com ela. Com efeito, vê-se que aqui é o global do ser humano que é tomado em conta, nomeadamente sem a oposição consciência / corpo, que releva quer da oposição pensamento / extensão de Descartes, quer da alma / corpo, de Platão ou a de Aristóteles, com a grande vantagem em relação a muitos empiristas ou materialistas anti-alma que se apoderam do ‘corpo’, sem perceberem que a retêm, a alma tradicional a que ele se opõe, ou pensamento, consciência, cabeça, até mesmo cérebro, tudo opostos de corpo e que permanecem sem serem expressos em textos que só falem do ‘corpo’. Heidegger, muito atento à historicidade das palavras, foi mais avisado. Finalmente, que o sein do Dasein seja um verbo, o verbo ‘ser’ com a sua morfologia, e dada a variedade do ‘aí’, do mundo (em) que se é, implica a sua temporalidade, a sua acção no mundo temporal segundo as suas possibilidades, motivo a que voltaremos mais adiante.
3. Mas não deixa de haver uma questão que fica pendente na concepção do Dasein desenvolvida em 1927 e que, tanto quanto me dei conta, não foi reformulada por Heidegger após a viragem, pelo menos nos ensaios e conferências dos anos 50  nem nos seminários dos anos 60, após a conferência decisiva de “Tempo e ser” de 1962 (Questions IV). Não só o  Dasein é raramente mencionado, em detrimento do Ser e depois do Ereignis, sem que manifestamente qualquer problema se lhe ponha vindo da reformulação decisiva de 62, como que o ‘acabamento’ do pensamento heideggeriano. Ora bem, no ser no mundo, a exterioridade do Dasein coloca-o aberto, fora de si, no mundo, por exemplo com mãos que mexem em coisas, as usam, mas sem reciprocidade do mundo em relação a ele: não dei por nenhuma menção de que o mundo o afecte no seu ‘ser’ Dasein, muito menos nenhum ‘como’ duma eventual afectação. No entanto, a força da viragem é a consideração da doação (retirada) dos entes pelo Ser que se dissimula, se retira para os deixar ser, doação essa que em 62 é atribuída ao Ereignis que dá ser e tempo aos entes, retirando a doação, sem que ela, nesta ultimação da viragem, afecte particularmente o Dasein, o seu ser e tempo, a sua abertura ao mundo tornada recíproca. Nem o Mitsein, o ser com outrem é reabilitado: Heidegger nunca soube pensar a relação entre mais de um Dasein. Ou seja, nem o mundo nem o Ereignis dão algo ao Dasein que mereça análise do pensamento, como se fosse este, o pensamento de Heidegger, pensador, que resistisse em última instância, se dizer se pode neste contexto, a qualquer recepção vinda da ‘exterioridade’. É certo que se pode dizer que o que faz a novidade deste pensamento é o manter-se inflexivelmente ao nível filosófico após ter rompido com os limites da definição que a constituíram desde Platão e Aristóteles, de ter prosseguido a sua discussão dos grandes textos destes fundadores como dos de Descartes, Kant e Hegel até Nietzsche, numa zona de abstracção quase inacessível; pode-se acrescentar que o espaço que rodeia o Dasein era fortemente assediado pelos vários discursos científicos sociais e humanos, de antropologias e psicologias de que sempre se quis liberto: que pôde falar do discurso que interpreta e da linguagem sem ter que saber da língua como instituição social dos linguistas, falar da mortalidade provocando angústia sem querer saber da biologia nem do nascimento e da sexualidade, falar do Outro Dasein sem querer saber da sua dimensão social. Mas também não se poderá negar que a sua incapacidade de pensar a relação com este Outro releve duma das mais criticáveis tradições filosóficas: a insularidade da alma, do sujeito, da consciência, também é  característica do Dasein, não afectável no seu princípio, o qual define a alma no Fedro de Platão.

O triplo da gramatologia
4. Se se pegar agora em Derrida para ver como ele se coloca, dizendo-se muito atento às questões husserlianas e heideggerianas, mas também inserido no contexto do estruturalismo que foi uma aliança da filosofia com as ciências sociais e humanas, para ver como ele singra filosoficamente nesse contexto em fidelidade fenomenológica, o que salta à vista é um salto desmesurado: o que ele faz é, nada mais nada menos, do que introduzir uma nova questão no pensamento ocidental, que Platão expulsara juntamente com os mitos e a literatura, a questão da escrita no coração do pensamento. E fazendo-o, destabiliza toda a tradição, a mais remota grega como a mais próxima, fenomenológica ou estruturalista. Tratar-se-á de ver o alcance da sua proposta gramatológica no que diz respeito às palavras e às coisas do mundo e aos que as nomeiam e transformam. Começarei por ilustrar a relação mantida com a problemática de Husserl e Heidegger, com dois subtítulos no 2º capítulo da De la grammatologie: “o fora e o dentro” (p. 46), “o fora é(x) o dentro” (p. 65), com o ‘é’ rasurado sob uma cruz, como em tempos Heidegger fizera para a palavra ‘ser’. Lidos sem o contexto, o primeiro assinala a continuidade fenomenológica, a conjunção ‘e’ recordando a intencionalidade e o ser no mundo que questionavam a oposição interior / exterior colocando aquele em relação essencial com este; o segundo, por sua vez, opera a ruptura que desaloja o primado da interioridade, acusando-o como o que chamará logocentrismo.
5. Para ver como essa ruptura se fará,  comentarei a seguinte citação de De la grammatologie: “a estrutura geral do rasto (trace) imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os possa separar senão por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o movimento da temporalização e a linguagem como escrita” (p. 69), que repetirá adiante assim: “[...] movimento da différance, abrindo simultaneamente (à la fois), numa única e mesma possibilidade, a temporalização, a relação ao outro e a linguagem” (p. 88). Na conferência de 1968 intitulada La différance: “espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização) [...] a différance (é) (simultaneamente) espaçamento (e) temporização” (Marges, p. 14), estes parêntesis, como a cruz sobre a cópula, significando a dificuldade duma escrita que não pode deixar de usar termos filosóficos contaminados metafisicamente pela proposta dessa mesma escrita. O que é a trace? É o rasto ou vestígio deixado pelo ‘movimento’ não perceptível fenomenologicamente, ocultado (veremos porquê), de que os discursos resultam (que o contexto é de relação entre gramatologia e linguística, mas também os vivos, lá iremos). Esse ‘movimento’ não fenomenológico abre um triplo indissociável. (a) A expressão “movimento da temporalização” permite perceber que o motivo do ‘tempo’, decisivo na ruptura de Heidegger com Husserl, ganha a secundariedade que tinha em relação ao ‘movimento’ na definição da Physica de Aristóteles, de que é a medida, o número; que depois a temporização venha a ser dita devir-tempo, não do espaço mas do espaçamento, isto é, do fazer-se espaço, devir-espaço, tal como a temporalização é fazer-se tempo, devir-tempo, sublinha ainda que se trata da prioridade do movimento sobre o tempo e o espaço, categorias fortes da modernidade europeia, a começar pela Física e o seu espaço-tempo einsteiniano. O tempo nomeadamente foi a categoria que mais marcou a ruptura do século XIX com os séculos clássicos (como mostrou Foucault em As palavras e as coisas), é uma categoria de entes, correlativa do verbo ‘ser’; o espaço é uma categoria chave dos estruturalismos, que incidiram sobre o espacial já feito espaço e que não a souberam articular com o tempo, nomeadamente da história[1]. É que justamente os estruturalismos rompiam com o tempo enquanto categoria dos ‘entes’, vivos ou fabricados, para os relacionar em estruturas que os situam e lhe dão sentido. O que Derrida, pós-estruturalista, pós-husserliano e pós-heideggeriano é a possibilidade de pensar o estruturar-se, o fazer-se ou o transformar-se da estrutura, mas também, como sua condição, do fazer-se do próprio ente, o vivo ou o fabricado, como do discurso ou texto. (b) a “estrutura da relação ao outro” implica também a temporalização, já que significa que os entes, vivos ou fabricados, vêm de outros e só em relação a outros têm sentido, não há ilhas nem arquipélagos. Em relação aos vivos, tanto se diz a origem a partir de outros vivos, a sexualidade como regra geral das origens deles, mas igualmente a necessidade incessante de alimentação vinda de outros vivos no reino animal, com ainda em relação aos animais diz a aprendizagem de comportamentos úteis a essa reprodução (progressivamente mais complexa, desde o reconhecimento pelo faro de presas). Tudo o que é fabricado tem origem em artífices, matérias primas e instrumentos e como finalidade usos pde outros. Como se esta estrutura da relação ao Outro reintroduzisse algo de evocativo da causalidade final aristotélica que a filosofia e a ciência europeia evacuaram. Mas também o uso do termo temporização em vez de ‘temporalização’ em Marges situa o motivo de diferendo na relação ao Outro. (c) A “linguagem como escrita” ou a arqui-escrita como origem da linguagem, motivo que foi mal compreendido – a escrita antes da fala – porque afrontando justamente a mais irredutível das oposições vindas dos Gregos, o privilégio da interioridade e do pensamento, o que chamou logocentrismo: trata-se da transformação da relação dentro / fora; só há linguagem, voz e discurso duplamente articulado, a “fala” (parole) dos estruturalistas, porque há antes e fora do falante a língua dos Outros, a qual penetra nele e o faz, o estrutura como falante e pensante, tal como as formas de aprendizagem de outros usos, de fora se faz o dentro enquanto dentro que antes não existia, a consciência de Husserl, por exemplo, que é devido à aprendizagem de usos nomeando coisas que é intencional.
6. Seja um exemplo que recapitule este triplo gramatológico na sua indissociabilidade, aquele que me é mais familiar, escrever ou ler, ouvir ou falar. (a) O espaçamento é o fazer-se das linhas escritas de palavras em frases ou da fila indiana de sons, espaços estritamente regrados (uma letra pode alterar uma palavra, ‘rasto’ ou ‘rasgo’), intervalos na escrita que não na fala, o fazer-se de algo que não existia (havia papel em branco e ar entre os interlocutores, um cabo telefónico porventura). Esse fazer-se espaço é simultaneamente temporalização, mas esta não é apenas ‘linear’, já que implica que se retenha o já dito ou escrito e se adie em expectativa o que virá em seguida, sabendo-se que o sentido do discurso ou texto reside no conjunto e não em nenhuma das palavras ou frases, por sublinhadas que sejam. (b) A relação ao Outro que ouve ou lê é estrutural, joga-se na mesma língua que ambos conhecem mas está longe de se esgotar nessa relação ocasional, já que cada um compreende o que se escreve ou diz consoante o seu saber aprendido ao longo da vida, como é óbvio quando há desigualdades de saber devidas à idade ou à posição social. O que se liga por exemplo com o que Derrida chama “o fim do livro”: um livro provém de muitos textos que o seu escritor leu, e até de outros que não leu mas leram os autores de textos que ele leu, mas também na sua leitura o leitor exerce a sua competência de leitor de muitos outros. A noção de intertextualidade implica que não se pode cortar senão arbitrariamente um texto ou uma sua parte, como citação, que qualquer texto é um agenciamento de citações infindável (c) em que tudo o que se ouve ou lê, mesmo esquecido no curto prazo, é aprendido de fora para se converter em dentro, aceite ou contestado, o diferendo das opiniões e dos argumentos sendo parte estrutural deste movimento de linguagem. Usei a palavra ‘movimento’, com que tinha começado esta explicação com Derrida, dizendo que o “movimento da temporalização” era ocultado, como sendo o do rasto ou da différance, não acessível fenomenologicamente[2]. Ora bem, o que há de linear no espaçamento como espaço e tempo de escrita ou fala, da leitura ou de audição, é um movimento fenomenologicamente acessível (pode-se filmar alguém a escrever como se filma alguém a falar): este movimento é justamente o rasto ou vestígio do movimento oculto que Derrida chamou assim, indescritível aliás na sua complexidade de retenções e expectações como de relações a Outros (mais do que muitos). Que nós não possamos saber este jogo oculto de que só apanhamos vestígios é uma razão para tornar fortemente complexa a questão da memória, em que há muito de não consciente, e que é o que faz a fartura duma psicanálise.

Limites e possibilidades do Dasein
7. Retomando a questão posta a Heidegger, vê-se à luz gramatológica que a diferença Dasein / mundo não vai ao cabo que faria dela uma não oposição, permanece uma zona inexpugnável dele, um resto de logocentrismo, de resistência ao mundo como exterioridade, apenas de acesso, sem retorno nem iniciativa. O Dasein não só não aprende como nem sequer se alimenta, mas também não nasce pela mesma falta de iniciativa do mundo em que ele é, não cresce, não foi criança. É ser no mundo e não ser do mundo, muito menos ser o mundo; também é ser no tempo, mas não ser temporalizado nem espacializado, não é um vivo, como Derrida ironiza algures; se é mortal, não é por ser vivo, mas por uma razão existencial, a sua possibilidade de antecipar a morte e de se angustiar em consequência, de se poder ‘converter’ à existência autêntica. Por outro lado, enxertar no seu ser no mundo a aprendizagem permite perceber melhor o seu motivo de possibilidade como sendo simultaneamente tanto a do Dasein como a do mundo em que ele é, indo até à possibilidade de mudar parcialmente o mundo, nomeadamente inventando novos usos que se revelem fecundos para os Outros.

Gramatologia e ciências
8. O exemplo do § 6 permite perceber porquê a Linguística foi uma ciência decisiva para a instauração da Gramatologia, embora o autor tenha tido o cuidado de dizer que se tratou sobretudo de razões estratégicas, que poderia começar por outra ponta, como aliás se ilustra no texto “Freud et la scène de l’écriture” (in L’écriture et la différence) em que, tanto quanto me lembre, a linguística nunca é chamada à argumentação gramatológica sobre Freud. Mas a reflexão que proponho aqui tem a ver com a compreensão de como o triplo gramatológico permite elucidar a complexidade das questões das várias ciências, sobre as quais tenho trabalhado a partir do motivo posterior de duplo laço, deduzido gramatologicamente mas usado preferencialmente nas questões éticas e politicas dos anos 80 e 90. Devo dizer que nunca me lembrei de tentar buscar ilustrar a fecundidade deste motivo no meu trabalho com o triplo dos inícios gramatológicos, nem vejo muito bem, assim de repente que penso nessa hipótese pela primeira vez, como isso se poderia fazer, embora se trate justamente duma categoria que explicita o movimento, mas duma outra perspectiva, que se presta a análises fenomenológicas que pressupõem já feitas, acabadas, as ‘coisas’ que se movem nas cenas que as dão. Em relação à Biologia, o triplo esclarece como se estrutura um animal (de plantas não sei nada), sendo certamente a embriologia a região mais complicada do processo de crescimento, a que terá maior proximidade à difícil questão da evolução e dos seus mecanismos que ela porventurqa repete parcialmente, como propôs Haeckel*. A dificuldade consistirá no espaçamento e temporalização dos diversos órgãos do organismo, na maneira como eles jogam uns com os outros na sua incompletude, o feto sendo alimentado pelo sangue da mãe que versa oxigénio e moléculas no seu sangue enquanto os outros órgãos se vão constituindo par apenas entrarem em acção, pulmões e digestão, a seguir ao parto. Será a seguir que, ainda muito imaturos mas já capazes do essencial, estes órgãos vão crescendo em espaçamento e temporalização adequando uns e outros, com a vinda incessante de alimentos e as primeiras aprendizagens neuronais. O início é caótico para o feto e depois bebé, precisando sempre de outros para ir singrando, até ganhar competências seguras para partilhar com os outros o que dá e o que recebe da unidade social. A Neurologia fará parte do mesmo tipo de dificuldades, multiplicadas pela complexidade incrível do sistema neuronal (voltarei em breve à questão). Se pensarmos no início dum casal em sua casa, também ele é caótico, não apenas por utensílios que ainda faltam mas também por se começar quase como um acampamento de malas, roupas e coisas que se vão estruturando – espaçamento da casa na sua temporalização inicial – no dia a dia, até se estabelecer a rotina dos usos diários em que cada um tem o seu papel. É claro que tudo vem de fora, repete mais ou menos o que as outras casas fazem, o que se aprendeu a fazer nas suas casas, se conta com o apoio de familiares e amigos. Neste jogo, também se dão muitas retenções e adiamentos, relações entre os vários e com os móveis e louças, roupas, e por aí fora, tudo induzido por um movimento oculto complexo de que só se apreende alguns aspectos, capazes de serem contados aos de fora. Se a exigência científica de descrição dum processo organizativo duma unidade social, casa ou fábrica, é extremamente maçador nos pormenores, muito mais é o indescritível do rasto que a gramatologia pressupõe.
9. Resta a questão da Física e Química, mas a dizer verdade não há a priori adequação da Gramatologia a elas, que Derrida falará nos anos 90 de “rasto vivo” (trace vivante) em diálogo com Elisabeth Roudinesco: em rigor, o rasto é a invenção da vida. Mas tentemos qualquer coisa. Para a Química, seja o exemplo no estaleiro dum edifício das cofragens com os respectivos ferros que se enchem com uma mistura de cimento, brita, areia e água e se a deixa os dias necessários para que o cimento faça presa da brita e da areia e o conjunto agarre o ferro: haverá um espaçamento rígido do betão armado que deverá durar uma temporalização de bastantes anos como um edifício, segundo desenhos e cálculos que uns fizeram e com o fim de habitação para Outros, tudo tendo vindo de ‘fora’ para criar um ‘dentro’ urbano. Mas talvez se possa dizer que o aforismo de Lavoisier, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, seria a ilustração química do triplo gramatológico. Quanto à Física, a primeira observação a fazer é que espaço e tempo são desde o início duas dimensões (medidas) indissociáveis de movimentos e que a noção de espaço-tempo, se por um lado sublinha a sua indissociabilidade, por outro creio que tende a ser tomada isolada e a esquecer a primazia do movimento que assim se mede; mas é fortemente significativo que a gramatologia tenha retomado o tempo que na Physica de Aristóteles media o movimento e o espaço que Galileu lhe juntou no primeiro exemplo de Física e sabido encontrar o movimento como razão de ser dos dois, como quem liga as duas grandes teorias do movimento, a dos Gregos e a dos Europeus. A relação ao Outro aqui é bizarramente contida no motivo da inércia, segundo o qual só há início, alteração ou fim de um movimento, se uma força exterior o impuser, que na Física não há dentro (nem na Química aliás). Não havendo dentro, tudo é fora ou não haverá fora? A questão pôr-se-á para o motivo de campo de forças, como por exemplo o do sistema planetário, que a astrofísica recente do universo em expansão, tornou muito mais curiosa do que quando não se lhe conhecia senão uma rotina de circulação de órbitas permanentes. Como é que ele permanece assim, levado embora na expansão, lhe resiste todavia? Pela relação recíproca das respectivas forças de gravidade, pelo campo que elas constituem, o qual é uma estrutura de astros em movimento. Como é que esse campo se estruturou assim, não sei se os astrofísicos sabem, como não sei se todos os astros que eles conhecem mais de perto formam igualmente campos estruturados de maneira equivalente, e muito menos sei se, havendo casos desses, se trata duma regra ou de excepções. O nosso sistema solar é uma excepção ou é a regra? Ou tão frequentes são as estruturas como as excepções? As galáxias são estruturas de estrelas sempre relacionadas estavelmente? Se for assim, então a grande excepção é a desestruturação – uma multidão louca de partículas a temperaturas impossíveis – que os físicos propõem como sequência do mito deles, o famoso big Bang. Esse não universo resiste a qualquer gramatologia ou fenomenologia, sem nenhuma verosimilhança laboratorial, é um mito que pede crença: os cálculos em que se baseia poderão ser retomados, tal e qual ou corrigidos, por uma hipótese mais consistente de futuros físicos.


Que o que sabemos foi aprendido é o que não podemos saber quando sabemos desse saber “não fenomenalidade constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em geral [...]  não doação no coração de cada doação” (L’événement et le (non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p. 155-183, oct. 2017). Um retiro da doação para que ela possa ser doação


[1] Também a Biologia molecular, segundo a minha leitura do confronto entre Darwin e Barbieri, revela o mesmo problema ‘estruturalista’ na dificuldade em tematizar bioquimicamente a evolução.
[2] Que o que sabemos foi aprendido é o que não podemos saber quando sabemos, é o retiro da doação para que ela possa ser doação, o que Derrida chamou “o impossível”: “não fenomenalidade constitutiva do dom, do acontecimento, da nossa experiência em geral [...]  não doação no coração de cada doação” (L’événement et le (non-) phénomène: Marion/Derrida. Phainomenon, [S.l.], n. 26, p. 155-183, oct. 2017).

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Homeostasia e hermenêutica




1. As células fazem tudo o que têm que fazer na sua especialidade de tecido para serem alimentadas pelo sangue, essa alimentação por sua vez permite-lhes fazer tudo o que têm que fazer na sua especialidade de tecido para serem alimentadas, e por aí fora, sem que entre o passivo de serem alimentadas e o activo da sua participação no trabalho do tecido se possa decidir. Esta indecidibilidade releva da sua homeostasia celular mas pode ser estendida à homeostasia do organismo animal, cujo equilíbrio instável tanto depende do que o sangue leva de nutrientes às células como do trabalho destas para caçar ou comer ervas e da sua sequência digestiva que vai alimentar o sangue. É o que se pode chamar o círculo homeostático, que vem desde o óvulo materno e do zigoto fecundado, que só será decidido pela morte, por fome ou incapacidade de órgãos e suas células na sua função alimentar (que os cancros furam, furtando-se egoisticamente ao ‘contrato orgânico’, por exemplo), por velhice. É esta indecidibilidade que torna impossível uma teoria das origens da vida ou das espécies (e, quero crer, muito difíceis as investigações em embriologia): não há genes sem metabolismo, alimentação da célula sem cena ecológica, são os conjuntos que dão origem a conjuntos, é isso o ‘círculo’. Dependendo pois da cena ecológica, da sua população vegetal e animal, o indecidível deste círculo foi decidido pelo dogma de Crick, privilegiando o ‘interior’ do núcleo das células, tomando partido teórico, acima da análise laboratorial que sempre precisa de teoria mas não decide desta, o físico inglês seguindo sem saber a lógica predominante da tradição greco-cristã-europeia (a ‘alma’ interior comanda ao corpo e ao mundo).
2. A aprendizagem humana encontra um círculo equivalente, o de andar ou nadar, de falar, o que Heidegger chamou círculo hermenêutico, que põe o acento na impossibilidade de se penetrar no círculo por se lhe ser estrangeiro: não se consegue ler um texto de pensameto a não ser que já se esteja ‘dentro’’ dele [1]. Um exemplo teológico medieval que me fascina: um pecador que entrasse no céu não saberia que estava no céu. Traduzido em termos actuais, os sem solfejo que não entendem o que se passa num concerto de Bach ou Beethoven, as gentes em geral, eu por vezes, face a exposições de cultura. Mas também exemplos de todos os dias: para que a criança fale tem que escutar, em passividade, longamente os outros, os quais não falam como gramáticos (sim, nas escolas de línguas) nem dicionários mas como falantes que usam e nomeiam sem darem por isso, até que, inscritos os grafos neuronais da língua tribal, a criança vai articulando activamente, falando a partir de si. Andar de patins ou bicicleta, tocar guitarra ou desenhar, também se faz sem se saber como, o que ensina não podendo fazer nada de decisivo para que o aprendiz consiga lá chegar, zangar-se e castigar não adianta. A escola é uma sucessão permanente de círculos hermenêuticos, deve-se ingressar em novos paradigmas, em que é preciso aprender a fazer como os outros, como Kuhn diagnosticou para as ciências. O círculo hermenêutico exige que se dê tempo ao tempo, cada caso é um caso, indeterminado, senão enigmático nas coisas difíceis que decidem vocações. Também esta indecidibilidade da aprendizagem do conhecimento levou a uma decisão académica, a invenção da definição que conceptualiza retirando do contexto a palavra e a torna igual em todos os contextos, segura de verdade perto da alma do filósofo. Todas as ortodoxias, dogmas católicos ou deterministas, todos os reducionismos, vêm d’aí.
3. Uma unidade local tribal tem igualmente um círculo privado de usos, no que diz respeito à reciprocidade das habilidades ganhas por cada um nos usos tradicionais que aprendeu: pelo lado da passividade, todos devem poder comer e habitar em segurança (direitos de cada um), pelo outro lado, todos devem cumprir os seus usos de forma que todos possam comer e habitar em segurança (deveres). O que inclui os seus membros e faz circular as relações entre todos numa intimidade ao longo dos dias e dos anos, entre cumplicidades e rivalidades que incitam a melhorar as habilidades, e exclui os outros como ‘hospes’, estrangeiros hostis ou hóspedes, pedindo-lhes para entrarem uma iniciaçãoaos usos e a contenção das energias sexuais. Talvez que o patriarcado das casas votadas à conquista guerreira tenha decidido em favor do pai-patrão, o que a modernidade recente procura anular. Mas todos os racismos contra o ‘estrangeiro’ têm aí a sua raiz antropológica, assim como as endogamias dos Hebreus (face aos Gentios, contrariado pelo apóstolo Paulo) e dos Gregos (face aos Bárbaros, contrariado por Alexandria), que não os Romanos: foram três factores históricos que permitiram a Europa.
4. Há nestes círculos uma lógica de duplos laços, um de restrição que fornece energia ao outro sob forma de pequenas repetições rotineiras, desde que aprendidas (como disse no texto sobre Damásio de 6/12, § 7, sobre um modelo que ele propôs). Ora, quer as células num organismo, quer os estilos de cada um que aprendeu, quer o que ele faz na sua unidade local de habitação, são elementos com sua autonomia (recebida e homeostática) que são recebidos numa estrutura abrangente em duplo laço, autónoma (igualmente recebida e homeostática); são estas duas autonomias, dos elementos constitutivos e do conjunto deles, que implicam  as duas leis indissociáveis e inconciliáveis que estabilizam a instabilidade da homeostasia: a das homeostasias das células e a do organismo enlaçadas na cena ecológica, a do enigma do que aprende e a do saber hermenêutico a receber antropologicamente (que se ensina e examina: qualquer professor sabe da antinomia entre a sua função de ensinar e a de julgar em exames), a dos desejos e interesses da cada habitante e a do funcionamento razoável da unidade social enlaçadas no conjunto tribal ou político das outras unidades. O que se chama acontecimento resulta dum cruzamento entre duas ou mais homeostasias em suas rotinas que afecta o conjunto e o desequilibra segundo vários vectores mais ou menos simultâneos. Diante dele, a nossa razão definitória e experimental tem muitas vezes que se declarar vencida pela indeterminação ou mesmo pelo enigma. Ora, a rotina é o grau zero do acontecimento, tudo é acontecimento, é uma questão de escala, entre rotinas e acontecimentos maiores ou menores: o enigma, ou pelo menos a indeterminação, é a regra, não é a excepção. Era o que pretendia Nietzsche com o seu humano artista, intuitivo. As ciências não trabalham sobre acontecimentos, mas sobre regras e suas oscilações rotineiras, os seus limiares, ultrapassados os quais o círculo homeostático ou hermenêutico ou da habitação rebenta, explode ou implode.


[1] Quem não fez mais duma vez a experiência; levei 30 anos a ensaiar lê-lo (de vez em quando) até ter enfim a sensação de compreender alguma coisa, quando me pus a escrever sobre ele e li o seu texto sobre a phusis em Aristóteles. Com Derrida demorou menos tempo, o empenho foi maior e sobretudo ele deu várias entrevistas que me ajudaram muito.