terça-feira, 28 de março de 2017

O que é isso de Valores ?



1. É uma questão que parece ‘idealista’, no sentido filosófico do termo, e por isso incómoda ao fenomenólogo. Mas não é fácil iludi-la: quando por exemplo António Vitorino diz, no Público de 25 de Março, que “a Europa tem que pôr as politicas onde estão os valores”, como entender o sentido desta frase? Foi de facto Platão, o filósofo ‘fundador’ do idealismo no pensamento ocidental, se se pode dizer assim, que definiu o bem, o belo, o justo, a virtude, e os colocou como as “formas ideais” eternas que as almas contemplaram antes de virem aos corpos e que permitiam conhecer o mundo, em conhecimento indissociavelmente ético e intelectual: devia-se governar com os olhos nelas. Depois o cristianismo foi tomado por esse paradigma, a que ajustou a sua concepção dum criador do mundo a coincidir com a fonte desses ‘valores’. Humanistas, as Luzes puseram como ideais humanos ou valores a liberdade, igualdade e fraternidade, o progresso, democracia e justiça, a declaração dos direitos dos cidadãos. Não são ainda hoje os nossos valores? Embora com o ‘progresso’ sujeito a reticências ecológicas.
2. Duma forma muito simplista, ponhamos a nossa questão assim. Se vamos de carro numa viagem, precisamos, além do meio de transporte e de quem o guie, de saber para onde vamos, o ‘sentido’ ou ‘orientação’ da viagem, que é fornecido ao motorista pelo viajante, que é pois algo que não pertence ao carro (este pode ter muitos destinos) mas sem o quê este não pode fazer nenhuma viagem. Ora bem, em qualquer percurso de carro pôr-se-á alguma questão de ‘valores’? Essa pertencerá ao motorista: a necessária atenção a evitar acidentes, a não atropelar ninguém.
3. Se tomarmos os processos sociais humanos muito variados, desde os económicos e políticos aos cívicos e culturais e de lazer, percebe-se que eles não se organizam sem finalidades, que guiam as decisões dos percursos, à maneira metafórica dum destino,  que lhes dão direcção, o sentido de cada movimento. É essencialmente em linguagem que esse sentido se exprime. Mas as decisões destes processos com os respectivos sentidos, visto que têm de confluir com uma multidão de outros processos, precisam igualmente de ‘valores’, que são colectivos e plurais, os quais jogam nomeadamente na atenção para evitar que os mais fortes não atropelem os mais fracos, que as poluições não destruam as condições de habitação dos seres vivos, que os conflitos não degenerem em crimes ou em guerras, e por aí fora.
4. Pode-se dizer que é este motivo de valores que traduzia a antiga palavra ideal, sem ter esta que ser contaminada pela noção ‘idealista’ de que se trate duma causa metafísica, nem se trate duma questão de ‘mentalidades’, como se diz muitas vezes. Precisa de atenção democrática e dos debates cívicos e políticos que atendam às vicissitudes das decisões que se vão tendo de tomar, atenção às pessoas e às coisas, ao que é terrestre, contra o que é hoje dominante, o dinheiro como ‘valor’, o qual justamente não ‘vale’ nada por si, é puramente ‘idealista’, só vale em função das coisas terrestres. Quando se diz que a nossa civilização é ‘materialista’, está-se profundamente enganado: se só o dinheiro, abstracção de troca, é que vale, a 'especulação' financeira, como se diz, mostra o idealismo do sistema, donde os seus efeitos de crise a jogarem nos conflitos humanos que em torno dele se geram.
5. Mas nunca me ocupei das questões éticas e ainda menos de ética politica, donde o simplismo desta nota. 

domingo, 19 de março de 2017

A criação (Gn 1) : o cosmos como bênção




1. É interessante neste texto da criação do cosmos em seis dias (finais do sec. 6 aC ou inícios do 5) perceber a lógica da época, a apreciação das coisas que são criadas segundo a sequência delas. E para grande espanto nosso, a primeira de todas é a luz e o dia, com separação das trevas e da noite, a segunda a chuva, as águas acima do céu separadas das dos mares. O nosso espanto é o da nossa razão, mas não deve concluir que o texto a não tivesse: basta ver como ele se divide em duas metades com o mesmo número de palavras hebraicas, a primeira metade contando quatro dias e cinco palavras de criação e a segunda também com cinco palavras mas em dois dias de criação apenas (P. Beauchamp, Création et séparation). É pois um texto de razão, como ressalta aliás da sua sobriedade comparada com as cosmogonias das civilizações contemporâneas e até com o Timeu de Platão.
2. O versículo 1 dá o título: “no princípio Deuses (é um plural, Elohim) criou o céu e a terra”, enquanto que o segundo dá a entender o que havia antes: a terra informe e vazia, trevas sobre abismo, vento ou sopro de Deuses sobre águas, apenas o vento parecendo algo de positivo, que contrastará com o refrão que seguirá as criações (excepto a do céu): “Deuses viu que isso era bom”. Ora, a luz é criada no 1º dia, o céu no 2º, a terra, os mares e as ervas com sementes e as árvores de frutos contendo sementes no 3º enquanto que o sol, com a lua, é criado apenas no 4º dia, para dar aclarar a terra, separar a luz e as trevas! Na segunda metade, vêm os animais, no 5º dia, os animais que andam nos mares e as aves que voam nos ares, no 6º os animais terrestres, bichos, rastejantes e selvagens num primeiro tempo, os humanos, homem e mulher à imagem do Criador, enfim, para dominarem sobre os animais dos mares, ares e terrestres.
3. Como compreender (quanto me é possível, não sou nenhum especialista) a lógica desta sequência de criações? A primeira metade dá o quadro do universo, a segunda os seres vivos que o habitam, com a excepção, a nossos olhos, das plantas. Seja a separação tão claramente expressa entre a luz e o sol; no 4º dia o texto esclarece que sabe que é ele que alumia a terra, que separa a luz das trevas, como quem cita o 1º dia e sublinha pois que esta separação é propositada. Há duas razões me parece: por um lado, é a luz que tem o privilégio, como lhe ecoará o prólogo do evangelho de João, falando da “luz que aclara todo o humano que vem a este mundo”, aliança pois da luz e do saber, que os Gregos também perfilharam e a nossa civilização na senda de uns e de outros. Por outro lado, o sol é naquelas civilizações facilmente o personagem por excelência dos mitos, e ser relegado para o 4º dia da criação desaloja-o claramente desse pedestal das religiões.
4. E a questão das plantas virem tão claramente separadas dos outros vivos, apesar das referencias às sementes bem sublinhar que não há nenhuma distracção nesta colocação. É a 10ª palavra que nos esclarece. Das dez palavras, “Deuses disse”, oito são palavras de criação propriamente dita, palavras seguidas da vinda à existência do que elas disseram, enquanto que duas, a 7ª e a 9ª, são palavras de bênção: “Deuses abençoou-os e disse: ‘sede fecundos, multiplicai-vos, enchei [no primeiro caso] a água dos mares’ [e no segundo] a terra’”. a bênção é a palavra que ‘cria’ a fecundidade. Ora, a 10ª palavra explica a colocação das plantas: “Deuses disse: ‘dou-vos todas as ervas com semente e todas as árvores que dão frutos com sementes: será a vossa alimentação’”, palavra dita aos humanos que depois acrescenta para os animais. Assim se explica também o sentido discutido durante muitos séculos da expressão “a terra informe e vazia” (tohu e bohu), era a terra árida de não ter plantas, como a Lua aonde chegaram os astronautas, incapaz de vida, isto é, de bênção, de fecundidade. Tal como a phusis de Aristóteles: que os vivos cresçam e se multipliquem, é uma maravilha, é a maravilha. Aos nossos olhos, que a luz nos dá a ver, ela que é a primeira criatura divina    .

No blogue Questions au christianisme, análise com mais pormenor no cap. 6, §§ 47-50 do texto deste link


terça-feira, 7 de março de 2017

Filosofia com Ciências: Fenomenologia ... quê?



1. A Physica de Aristóteles tem como objectivo a compreensão do movimento, mormente do dos vivos, que o têm por eles mesmos: definiu a ousia e destacou dela os “acidentes”; a consideração de que o tempo é a medida do movimento sublinha bem que, ao contrário dos modernos, o movimento é nele prioritário em relação ao tempo. E ao mesmo tempo é como se esta definição já anunciasse vinte séculos antes a Física de Galileu e Newton que também busca entender o movimento, mas agora apenas o deslocamento dos inertes: há que o medir em laboratório (pesando água à falta de relógios precisos!), começando precisamente pelo movimento, pelo que se chamou ‘cinética’, antes da ‘dinâmica’, que introduziu o motivo de força e veio a possibilitar a invenção de máquinas capazes de se moverem sozinhas, desde que se as ‘alimente’ de energia (os vivos alimentam-se também de moléculas orgânicas). O pensamento contemporâneo, o do século XX que foi vertiginoso, não parece ter dado pelo facto de que uma das suas ‘variáveis’ preferidas, o tempo, não é senão a “medida do movimento, com o anterior e o posterior” (Aristoróteles), não parece ter compreendido o lugar estrutural do movimento, nem na fenomenologia de Husserl, focada sobre a percepção, nem no estruturalismo, pouco à vontade para explicitar o tempo e o movimento das ‘estruturas’.
2. Ora, quem ler o texto neste blogue sobre intencionalidade e cuidado que apresentei ao Congresso de Fenomenologia em Braga (abril de 2016), percebe que me situo na corrente fenomenológica aberta por Husserl tendo em conta as dissidências de Heidegger e de Derrida, busco responder à reclamação do fundador: ‘retornar às coisas’, aos fenómenos, portanto considero que faço ‘fenomenologia’ (bem ou mal, é outra coisa). Até aqui, tem havido todavia um embaraço, quando por exemplo me dizem que Heidegger e Derrida não são fenomenólogos, o que só se entende definindo a fenomenologia em relação a Husserl; mas como o que eu faço também não coincide com nenhum destes dois, fica claro que me falta um adjectivo qualquer a esclarecer que ‘fenomenologia’, que no subtítulo do 2º volume do Le jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida era “fenomenologia reformulada”. O que diferencia estes dois pensadores de Husserl pode ser dito a introdução da temporalidade (um no mundo, o outro na escrita), o que faz que a fenomenologia do mestre se adjectivaria como ‘estática’; ora o motivo heideggeriano de doação retirada e o motivo derridiano de duplo laço são o que permite dar conta do movimento dos fenómenos. Por outro lado, havendo neste retorno aos fenómenos uma recuperação das ciências, há que celebrar quer a herança de Aristóteles, a sua Physica sendo a primeira ‘filosofia com ciências’ que durou vinte séculos, quer a herança de Galileu e Newton, cuja cinética inaugurou as ciências modernas. Em vez de Fenomenologia do movimento, que seria regionalizá-la, seria – fidelidade a três grandes antepassados – Fenomenologia cinética.
3. Mas há uma dificuldade com esta palavra ‘cinética’ que praticamente deixou de ser usada, só é conhecida dos manuais de física liceal, o que traria à designação algo de antiquado, erudito e sem graça. Então, uma vez que abarca as principais ciências com os respectivos ‘géneros’ de movimento (deslocamento no espaço, transformação química, crescimento dos vivos, fala e escrita, mudança social e psicológica), e ‘género’ pede ‘geral’ (‘general’ em latim, francês, castelhano), deverá ser algo como Fenomenologia Geral. Ambicioso, é certo.