domingo, 31 de dezembro de 2017

Transcendência ou transgressão ?





1. É hoje frequente ouvir ou ler pessoas responsáveis, intelectuais ou políticos, lamentando, face ao que se deplora como ‘consumismo’, o declínio do horizonte da transcendência, pensada esta em regra na sua forma religiosa tradicional, como foi na Cristandade medieval pré-europeia. Foi o caso dum filósofo de origem italiana, Luciano Floridi, que ensina em Oxford filosofia e informática, que, sendo não crente, introduz uma novidade (Público, 26/12/2017): a crença em quem não se pode provar a existência deixou de ser possível, então os não crentes podem esperar que ele exista, essa esperança substituindo a impossível crença: “eu não acredito em deus, espero é que ele exista” (foi o jornalista que o entrevistou ou ele próprio quem grafou o d minúsculo?). Uma entrevista tem a vantagem de o jornalista poder fazer perguntas que espevitem o entrevistado mas também tem pouco espaço-tempo para detalhar a argumentação. A questão é a de saber se esse deus que se esperaria é o mesmo em que se acreditou no Ocidente ou se a cada um o seu, consoante a experiência e a qualidade ética. Mas se, ainda que com minúscula,  vem trazer a transcendência contra a imanência do consumismo, deve ser difícil de evitar a oposição entre os dois termos, que a civilização ocidental desconstruiu e donde resultou que as grandes massas de população, que sempre foram crentes nas crenças propostas pelo seu tempo, se tornaram consumistas na época do mercado dominante. Ou seja, quer o filósofo da informática voltar para trás? Não é provável, deixemo-lo em paz, agradecendo o estímulo: há algum tempo que pressinto que me devo medir com esta questão da transcendência, a transgressão positiva de Adão e Eva fornecem uma pista.
2. O comum ‘trans-’ que diferença esconde entre os dois termos? Segundo as etimologias, um deles ‘ascende’ além da partida que deixa ficar para trás, sem nenhum pé na imanência, já que se presume que a esperança é de tipo da aposta pascaliana, aponta para o após-morte; o outro (pro)gride além, ‘gresso’ reenvia para os ‘passos’ que se dão para além do espaço que se abandona, o dos usos e costumes da tribo, não deixa pois a imanência terrestre que todavia se altera com a transgressão duradoura. Posta a questão nos termos da fenomenologia que aqui se pratica (tanto quanto), pode-se propor que a biologia molecular nos ensinou que de bioquímica, física e electricidade de iões somos feitos, que tal será aproximadamente o nível básico de imanência que é o de cada bebé que nasce, mas o ‘aproximadamente’ indicia que o quadro comunitário em que se nasce já oferece a possibilidade de transcender esse nível básico, já o promete. Porque a unidade social familiar e económica é mais do que a bioquímica da nossa biologia e da exigência de alimentação. A captação do fogo, o uso de coisas para outros fins, depois a invenção de instrumentos, e mediando estas invenções a linguagem que as ia nomeando e criava mitos relacionando a comunidade actual com os seus antepassados inventores, eis o passo decisivo da transgressão da bioquímica biológica. Mas estes passos foram deles mesmos também passos da mesma bioquímica: por um lado, porque a alimentação e a defesa na selva eram o objectivo fundamental deles, o que os estimulava, ou seja bioquímica que estimulava a ultrapassar a bioquímica por razões da bioquímica, mas também porque essas invenções implicavam práticas e estratégias mais ou menos complicadas que se ensinavam aos novos para se transmitirem de geração em geração, e a aprendizagem significa que essas práticas aprendidas, tornadas rotina, se biologizaram quimicamente, como manifesta a espontaneidade ganha que antes não havia. Isto é, os automatismos ganhos nos novos gestos são a assunção deles pela bioquímica neuronal.
3. Pode-se dizer que é este conjunto de práticas comunitárias que preenche o que Heidegger chamou cuidado em 1927 e, nos ensaios e conferências dos anos 50, o habitar que define o humano. Nalguns desses textos, ele propôs uma Quadrindade (Geviert) do Céu e dos Deuses, da Terra e dos Mortais, onde mantinha a diferença Céu / Terra como medida dos humanos, tal como, a partir da mitologia, ela fora proposta, quer pelo livro profético do Deuteronómio, quer pela República de Platão e foi estruturante dos paradigmas de habitação ocidentais. Foi essa oposição que foi desconstruída pelo processo histórico de invenções que foi alterando as práticas comunitárias, desconstrução essa que as massas consumistas puderam presenciar no final dos anos 60, quando Armstrong pôs o pé na lua e confirmou que, vista dali, a terra também era um astro do céu. Também nesses anos se ia espalhando entre as pessoas que liam livros a descoberta da biologia molecular que explicava enfim o funcionamento e a reprodução das células, portanto o crescimento dos vivos e ainda a sua reprodução, o grande mistério da fecundidade das agriculturas e rebanhos, e dos humanos em sua sexualidade, o qual fora o segredo dos Deuses de quem dependiam as economias.
4. Há um belo argumento de Floridi para a “esperança”: “algumas das maiores conquistas da humanidade ocorreram porque sempre tivemos esperança em algo mais e nunca nos contentámos com o que existia”; este argumento não chega para a transcendência dele, é todavia um óptimo argumento para a transgressão. Com efeito, o que são as invenções, as de ordem técnica, por exemplo? São fruto de algum desconforto com os instrumentos e meios que se herdaram para a habitação, insatisfação de alguém com a imanência da sua rotina que leva a transgredi-la num dado ponto que a modifica parcialmente: há uma relativa saída dum aspecto do paradigma dos usos para o melhorar, transgressão essa que, em geral, é boa para os mais novos que a acolhem e má para os mais velhos que a reprovam. Mais óbvia esta transgressão do paradigma dos usos com a invenção das literaturas e de outras artes, musicais, pictóricas, esculturais, que todavia também retornam ao habitar como cultura em sentido corrente, a manterem elevado o nível do humano, que justamente já não corresponde a exigências da bioquímica biológica e nesse sentido pode ser dito transcendê-la (razão escondida porventura do interdito hebraico das imagens, como se fizessem concorrência ao divino): transcendência estética dos artistas e dos que entendem as artes como transgressão do utilitário da habitação. Acrescente-se o pensamento filosófico e científico, com o que ele sempre teve de raridade, de tocar pouca gente, difícil a abstracção como ruptura intelectual, transgressão dos paradigmas comuns que o comum dos mortais não conseguia acompanhar. Mas foi o que veio a desaguar nas invenções da tecnologia actual e a tornar possível o famigerado consumismo.
5. Falta a transgressão maior, a espiritual, a mais radical, porque corta com o paradigma naquilo em que ele excede as exigências da bioquímica biológica, não apenas com o luxo e a sua tranquilidade, mas também com o próprio consumismo (sem contar pois com os que buscam transcendências íntimas por via bioquímica). Mas para a ter em conta, é necessário dar atenção a outra vertente da habitação, descurada por Heidegger, aquela que tem que ver com a apropriação além das exigências da bioquímica biológica, com a busca do luxo da habitação em termos de se mostrar aos outros, vizinhos, rivais, concorrentes, como os melhores, os mais fortes, hábeis e poderosos em artes e astúcias das guerras. Escravos, servos, proletários, foram a condição histórica da situação de poder social conseguida, como a forma de transcendência que perseverou em linhagens e ranks: a chamada propriedade privada, de que o que é comum de todos foi privado, incluindo sobretudo a energia bioquímica do trabalho dos que, por força da guerra ou por fraqueza social herdada, não têm outra maneira de satisfazer as suas exigências bioquímicas imanentes. Ou seja, esta transcendência de poder e riqueza social produziu uma recíproca imanência de pobreza e miséria, em verdadeira oposição social. E a questão é a de saber se, quando se fala de transcendência, se tem ou não em vista também estoutra e os seus efeitos nefastos.
6. Sem que eu conheça mais do que o que pelos médias nos vem, não creio que se possa negar que há muita gente hoje que, de forma mais ou menos adequada, responde a apelos de transcendência em termos de cooperação em associações que buscam minorar esta imensa miséria social nos arredores de si ou rumando ao longe, enquanto outros se dedicam a formas de arte, ou de investigação científica, ou outras ‘vocações’, como se dizia a transgressão espiritual, mais ou menos radical, dos paradigmas da imanência tribal. Não deixa de ser notável a resposta dos evangelhos a esta questão, que não propõe sem mais uma ‘conversão a Deus’ – “não é dizendo-me ‘Senhor, Senhor!’ que se entrará no reino dos céus, mas fazendo a vontade do Pai que está nos céus” (Mateus 7,21) – mas uma conversão ao pobre: “tive fome e deste-me de comer, sede e deste-me de beber, era um estrangeiro e acolheste-me, estava nu e vestiste-me, doente e visitaste-me, na prisão e vieste ver-me” (idem, 25,35-36). Se os evangelhos têm em conta um reino de deus transcendente após a ressurreição dos mortos (e como é com a bioquímica?), percebe-se que – com o picante de buscar dar aos pobres a possibilidade de chegarem ao consumismo que ataranta Floridi – a transgressão que eles pedem inclina-se sobre a imanência elementar dos paradigmas dos usos como quem recomenda que se comece de novo a evolução histórica corrigindo-a da sua má transgressão do poder privado. Ora, uma tal transgressão mantém-se viva e fecunda ainda que não se acredite em nenhum céu transcendente após a morte, poder-se-ia mesmo dizer que, nesta época de catástrofe planetária previsível, ela vai ser a grande esperança. 

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