segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

O mito de Adão e Eva sem o ‘pecado original’




1. Os mitos de origem, como é o caso do de Adão e Eva, são maneiras de sociedades agrícolas pensarem problemas seus, no caso: porquê a morte, se o nascimento é uma bênção divina, porquê a dureza do trabalho se as colheitas e os rebanhos são a outra grande bênção, a riqueza económica duma casa. Trata-se do grande enigma, que só a biologia molecular, na segunda metade do século passado, desvendou, o da fecundidade da vida, que do menos saia o mais. A filosofia grega, mantendo a diferença Céu / Terra que é a estrutura básica dos mitos, criticou-os para se apoderar dessas questões e lhes buscar respostas racionais, susceptíveis de argumentação, nomeadamente a phusis de Aristóteles, a latina ‘natureza’: porque crescem os vivos? Uma das forças do cristianismo foi a de se ter apoderado, por sua vez, do discurso filosófico para transmitir a sua narrativa a respeito do destino de Jesus, representado nos dogmas já não como Messias judaico mas como parte da Trindade do Céu Incarnada na Terra; esta dicotomia desde Copérnico e Galileu até Armstrong foi sendo desconstruída, e com ela a teologia cristã. Mas desses mitos e teologias somos filhos, ainda que descrentes e relê-los pode ajudar-nos a repensar algo das nossas questões. Por exemplo, reler o mito grego de Prometeu roubando o fogo aos deuses e dando-o aos mortais, castigado por temor de Zeus que estes ficassem tão poderosos como os deuses, pode ajudar a pensar as coisas ecológicas, a desmedida das especulações financeiras jogando com a aceleração vertiginosa dada à tecnologia pela invenção fabulosa do ‘fogo moderno’, a electricidade.
2. Se Prometeu com o desafio aos deuses é fácil de ter uma leitura moderna positiva, o caso de Adão e Eva deu um ‘pecado original’ de má memória, por terem comido uma fruta popularizada como maçã e manchado em consequência cada humano que nascia, na teologia cristão sendo necessário baptizar cada bebé para, se morresse precocemente, ‘a sua alma ir para o céu’. Hoje, até as crianças se riem desta história. Ora, ela não é a única, último dos três mitos de Génesis 2-3 que se foram acrescentando uns aos outros, foi o que ficou. Todavia o segundo mito é susceptível duma comparação honrosa com o de Prometeu. A Bíblia hebraica foi escrita por mil mãos, que nunca apagavam o que já havia sido escrito, ainda mesmo quando lhe corrigiam a lição acrescentando-lhe o que a nova mão entendia em relação à anterior, um diálogo, um antecedente ou um consequente, consoante. Por isso se mantiveram arcaísmos, apesar duma progressiva perspectiva ética e espiritual, que por exemplo, desantropomorfiza o Deus, que neste caso passeia à tarde no jardim, e chega a proibir de dizer o seu nome.
3. A primeira versão do mito é o essencial do cap. 2 do livro do Génesis, sem as menções das árvores e do interdito nem da vergonha final da nudez primeira (Gen 2,4b-9a,10-15, 18-23): termina com a criação de Eva, é um mito da origem do matrimónio, promovendo a mulher a companheira, já que “osso dos ossos e carne da carne” do homem (e não de argila, como ele): “por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”. “Mãe de todos os vivos”, dirá a segunda versão, ela é a fonte da fecundidade, segredo dos deuses, maior bênção duma casa, juntamente com a fecundidade das colheitas e dos rebanhos. Acrescente-se que na Bíblia, como em geral nas religiões, é a impotência humana quanto a estas fecundidades, e portanto quanto à riqueza económica, a razão estrutural da religião. O terceiro mito é o conjunto dos dois capítulos, incluindo os castigos sobre a serpente, a mulher e o homem (Gen 3,14-19), que são justamente o que o segundo mito ignora, limitando-se à cena do comer do fruto interdito e à expulsão do paraíso. Vale a pena lê-lo na sua limpidez, reparando que a morte e o trabalho aparecem como consequência da transgressão, inerentes à expulsão do paraíso : é para explicar a existência destas contra-bênçãos que o mito é contado. As maldições do terceiro, vindas dum deus zangado com a transgressão, relevam da época do exílio de Israel em Babilónia, servindo de ‘moral da história’ para fazer do mito das origens a causa remota dessa derrota : a transgressão vira pecado.
4. Lido sozinho, percebe-se que o que a serpente diz para incitar à transgressão, “Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deuses, ficareis a conhecer o bem e o mal”, é retomado pelo próprio Iavé Deus: “eis que o homem se tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal”. E acrescenta um temor que lembra o de Zeus face ao roubo do fogo por Prometeu: “agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da vida e, comendo dele, viva para sempre”. A lógica deste mito não é o lamento da morte e do trabalho, como no terceiro, mas pelo contrário, trata-se de se congratular com o que se ganhou, a responsabilidade de conhecer e decidir o bem e o mal. O que é comparável com o fogo, uma técnica fundamental e perigosa que escapa aos humanos (um dos 4 elementos dos Gregos); aqui trata-se da própria dignidade ética, do conhecimento como responsabilidade. Então como ler a cena da transgressão? tal como Prometeu, é uma espécie de ‘roubo’ irreversível feito à divindade. O que é engraçado é ver que a serpente, “o mais astuto de todos os animais selvagens”, vem justamente ensinar a manha, a dissimulação como necessária à liberdade e ao conhecimento do bem e do mal e é de dissimulações que se trata na narrativa: eles acreditaram na serpente e descobriram que estavam nus – primeira dissimulação, a vergonha – esconderam-se (jogar às escondidas é um elemento essencial da dissimulação, entre crianças e entre ladrões e polícias), e depois desculpam-se diante Iavé, Adão com Eva, ela com a serpente, as dissimulações são em catadupa. Mas como escolher entre o bem e o mal sem pensar duas vezes, sem hesitar, sem saber guardar segredo, sem ter um foro interior que sabe que nem todas as verdades são boas para se dizer a toda a gente? Dissimular o que se pensa, a vida interior, é essencial a quem busca o saber, só se é capaz de bem se se for capaz de mal. Busca de pertinência e capacidade de dissimulação são condição prévia da ética (argumento no blogue “filosofia mais ciências 2”). A transgressão de Adão e Eva foi tornar os seus descendentes capazes de bem e de mal, o mito tendo trocado a responsabilidade do saber pela morte e pelo trabalho.
[editado  pelo Público on-line em 29 de dezembro de 2017]

A segunda versão do mito de Adão e Eva

Quando Iavé Deus fez a Terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque Iavé Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, e da terra brotava uma nascente que regava toda a superfície, então Iavé Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo.
Depois, Iavé Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. Iavé Deus fez brotar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da Vida estava no meio do jardim, assim como a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Um rio nascia no Éden para regar o jardim, dividindo-se, a seguir, em quatro braços. O nome do primeiro é Pichon, rio que rodeia toda a região de Havilá, onde se encontra ouro, ouro puro, sem misturas, e também se encontra lá bdélio e ónix. O nome do segundo rio é Guion, o qual rodeia toda a terra de Cuche. O nome do terceiro é Tigre, e corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. Iavé Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E Iavé Deus deu esta ordem ao homem: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.”

Iavé Deus disse: “Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. Então, Iavé Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele.
Então, Iavé Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, Iavé Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha.
A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que Iavé Deus fizera; e disse à mulher: “É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?” A mulher respondeu-lhe: “Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”. A serpente retorquiu à mulher: “Não, não morrereis; porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal”.
Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu.
Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.
Ouviram, então, a voz de Iavé Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde, e o homem e a sua mulher logo se esconderam de Iavé Deus, por entre o arvoredo do jardim.
Mas Iavé Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu”. Iavé Deus perguntou: “Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?” O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi”. Iavé Deus perguntou à mulher: “Porque fizeste isso?” A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi”. Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes. Iavé Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os.
Iavé Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre”. Iavé Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou a oriente do jardim do Éden os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.
Extracto da Bíblia dos Capuchinhos on line, com restituição do original hebraico Iavé em vez de SENHOR


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