1. Os mitos de origem, como é o caso
do de Adão e Eva, são maneiras de sociedades agrícolas pensarem problemas seus,
no caso: porquê a morte, se o nascimento é uma bênção divina, porquê a dureza
do trabalho se as colheitas e os rebanhos são a outra grande bênção, a riqueza
económica duma casa. Trata-se do grande enigma, que só a biologia molecular, na
segunda metade do século passado, desvendou, o da fecundidade da vida, que do
menos saia o mais. A filosofia grega, mantendo a diferença Céu / Terra que é a
estrutura básica dos mitos, criticou-os para se apoderar dessas questões e lhes
buscar respostas racionais, susceptíveis de argumentação, nomeadamente a phusis de Aristóteles, a latina ‘natureza’: porque
crescem os vivos? Uma das forças do cristianismo foi a de se ter apoderado, por
sua vez, do discurso filosófico para transmitir a sua narrativa a respeito do
destino de Jesus, representado nos dogmas já não como Messias judaico mas como
parte da Trindade do Céu Incarnada na Terra; esta dicotomia desde Copérnico e
Galileu até Armstrong foi sendo desconstruída, e com ela a teologia cristã. Mas
desses mitos e teologias somos filhos, ainda que descrentes e relê-los pode
ajudar-nos a repensar algo das nossas questões. Por exemplo, reler o mito grego
de Prometeu roubando o fogo aos deuses e dando-o aos mortais, castigado por
temor de Zeus que estes ficassem tão poderosos como os deuses, pode ajudar a
pensar as coisas ecológicas, a desmedida das especulações financeiras jogando
com a aceleração vertiginosa dada à tecnologia pela invenção fabulosa do ‘fogo moderno’,
a electricidade.
2. Se Prometeu com
o desafio aos deuses é fácil de ter
uma leitura moderna positiva, o caso de Adão e Eva deu um
‘pecado original’ de má memória, por terem comido uma fruta popularizada como
maçã e manchado em consequência cada humano que nascia, na teologia cristão
sendo necessário baptizar cada bebé para, se morresse precocemente, ‘a sua alma
ir para o céu’. Hoje, até as crianças se riem desta história. Ora, ela não é a
única, último dos três mitos de Génesis 2-3 que se foram acrescentando uns aos
outros, foi o que ficou. Todavia o segundo mito é susceptível duma comparação
honrosa com o de Prometeu. A Bíblia hebraica foi escrita por mil mãos, que
nunca apagavam o que já havia sido escrito, ainda mesmo quando lhe corrigiam a
lição acrescentando-lhe o que a nova mão entendia em relação à anterior, um
diálogo, um antecedente ou um consequente, consoante. Por isso se mantiveram
arcaísmos, apesar duma progressiva perspectiva ética e espiritual, que por
exemplo, desantropomorfiza o Deus, que neste caso passeia à tarde no jardim, e
chega a proibir de dizer o seu nome.
3. A primeira versão do mito é o essencial do
cap. 2 do livro do Génesis, sem as menções das árvores e do interdito nem da
vergonha final da nudez primeira (Gen
2,4b-9a,10-15, 18-23): termina com a criação de Eva, é um mito da origem do
matrimónio, promovendo a mulher a companheira, já que “osso dos ossos e carne
da carne” do homem (e não de argila, como ele): “por esse motivo, o homem deixará
o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”. “Mãe de todos os vivos”, dirá a segunda versão,
ela é a fonte da fecundidade, segredo dos deuses, maior bênção duma casa,
juntamente com a fecundidade das colheitas e dos rebanhos. Acrescente-se que na
Bíblia, como em geral nas religiões, é a impotência humana quanto a estas
fecundidades, e portanto quanto à riqueza económica, a razão estrutural da
religião. O terceiro mito é o conjunto dos dois capítulos, incluindo os
castigos sobre a serpente, a mulher e o homem (Gen 3,14-19), que são justamente o que o segundo mito ignora, limitando-se à cena
do comer do fruto interdito e à expulsão do paraíso. Vale a pena lê-lo na sua
limpidez, reparando que a morte e o trabalho aparecem como consequência da
transgressão, inerentes à expulsão do paraíso : é para explicar a
existência destas contra-bênçãos que o mito é contado. As maldições do
terceiro, vindas dum deus zangado com
a transgressão, relevam da época do exílio de Israel em Babilónia, servindo de
‘moral da história’ para fazer do mito das origens a causa remota dessa derrota : a transgressão vira pecado.
4. Lido sozinho, percebe-se que o que a serpente diz para incitar à
transgressão, “Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e
sereis como Deuses, ficareis a conhecer o bem e o mal”, é retomado pelo próprio Iavé Deus: “eis que o homem se
tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal”. E acrescenta um temor que lembra o de Zeus face
ao roubo do fogo por Prometeu: “agora é preciso que ele não estenda a mão para se
apoderar também do fruto da árvore da vida e, comendo dele, viva para sempre”. A lógica deste mito não é o lamento da morte e
do trabalho, como no terceiro, mas pelo contrário, trata-se de se congratular
com o que se ganhou, a responsabilidade de conhecer e decidir o bem e o mal. O
que é comparável com o fogo, uma técnica fundamental e perigosa que escapa aos
humanos (um dos 4 elementos dos Gregos); aqui trata-se da própria dignidade
ética, do conhecimento como responsabilidade. Então como ler a cena da
transgressão? tal como Prometeu, é uma espécie de ‘roubo’ irreversível feito à
divindade. O que é engraçado é ver que a serpente, “o mais astuto de todos os
animais selvagens”, vem justamente ensinar a manha, a dissimulação como
necessária à liberdade e ao conhecimento do bem e do mal e é de dissimulações
que se trata na narrativa: eles acreditaram na serpente e descobriram que estavam
nus – primeira dissimulação, a vergonha – esconderam-se (jogar às escondidas é
um elemento essencial da dissimulação, entre crianças e entre ladrões e
polícias), e depois desculpam-se diante Iavé, Adão com Eva, ela com a serpente,
as dissimulações são em catadupa. Mas como escolher entre o bem e o mal sem
pensar duas vezes, sem hesitar, sem saber guardar segredo, sem ter um foro interior
que sabe que nem todas as verdades são boas para se dizer a toda a gente?
Dissimular o que se pensa, a vida interior, é essencial a quem busca o saber,
só se é capaz de bem se se for capaz de mal. Busca de pertinência e capacidade
de dissimulação são condição prévia da ética (argumento no blogue “filosofia
mais ciências 2”). A transgressão de Adão e Eva foi tornar os seus descendentes
capazes de bem e de mal, o mito tendo trocado a responsabilidade do saber pela
morte e pelo trabalho.
[editado pelo Público on-line em 29 de dezembro de 2017]
[editado pelo Público on-line em 29 de dezembro de 2017]
A
segunda versão do mito de Adão e Eva
Quando Iavé Deus fez a Terra e os
céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta
germinara ainda, porque Iavé Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e
não havia homem para a cultivar, e da terra brotava uma nascente que regava
toda a superfície, então Iavé Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe
pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo.
Depois, Iavé Deus plantou um
jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. Iavé Deus
fez brotar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos
frutos para comer; a árvore da Vida estava no meio do jardim, assim como a
árvore do conhecimento do bem e do mal.
Um rio nascia no Éden para regar
o jardim, dividindo-se, a seguir, em quatro braços. O nome do primeiro é
Pichon, rio que rodeia toda a região de Havilá, onde se encontra ouro, ouro
puro, sem misturas, e também se encontra lá bdélio e ónix. O nome do segundo
rio é Guion, o qual rodeia toda a terra de Cuche. O nome do terceiro é Tigre, e
corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. Iavé Deus levou o homem
e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E
Iavé Deus deu esta ordem ao homem: “Podes comer do fruto de todas as árvores do
jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no
dia em que o comeres, certamente morrerás.”
Iavé Deus disse: “Não é
conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”.
Então, Iavé Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas
as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele
os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o
homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas
as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar
semelhante a ele.
Então, Iavé Deus fez cair sobre o
homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas
costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, Iavé
Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é,
realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher,
visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o homem deixará o pai e a
mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. Estavam ambos
nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha.
A serpente era o mais astuto de
todos os animais selvagens que Iavé Deus fizera; e disse à mulher: “É verdade
ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?” A mulher
respondeu-lhe: “Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao
fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer,
nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”. A serpente retorquiu à
mulher: “Não, não morrereis; porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes,
abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o
mal”.
Vendo a mulher que o fruto da
árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto e precioso para
esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu
marido, que estava junto dela, e ele também comeu.
Então, abriram-se os olhos aos
dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras
e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.
Ouviram, então, a voz de Iavé
Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde, e o homem e a sua mulher logo
se esconderam de Iavé Deus, por entre o arvoredo do jardim.
Mas Iavé Deus chamou o homem e
disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de
medo, escondi-me porque estou nu”. Iavé Deus perguntou: “Quem te disse que
estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?” O homem
respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore
e eu comi”. Iavé Deus perguntou à mulher: “Porque fizeste isso?” A mulher
respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi”. Adão pôs à sua mulher o nome de
Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes. Iavé Deus fez a Adão e à sua
mulher túnicas de peles e vestiu-os.
Iavé Deus disse: “Eis que o homem
se tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal. Agora é
preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da
Vida e, comendo dele, viva para sempre”. Iavé Deus expulsou-o do jardim do
Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. Depois de ter expulsado o
homem, colocou a oriente do jardim do Éden os querubins com a espada
flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.
Extracto da Bíblia dos Capuchinhos
on line, com restituição do original hebraico Iavé em vez de SENHOR
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