domingo, 31 de dezembro de 2017

Transcendência ou transgressão ?





1. É hoje frequente ouvir ou ler pessoas responsáveis, intelectuais ou políticos, lamentando, face ao que se deplora como ‘consumismo’, o declínio do horizonte da transcendência, pensada esta em regra na sua forma religiosa tradicional, como foi na Cristandade medieval pré-europeia. Foi o caso dum filósofo de origem italiana, Luciano Floridi, que ensina em Oxford filosofia e informática, que, sendo não crente, introduz uma novidade (Público, 26/12/2017): a crença em quem não se pode provar a existência deixou de ser possível, então os não crentes podem esperar que ele exista, essa esperança substituindo a impossível crença: “eu não acredito em deus, espero é que ele exista” (foi o jornalista que o entrevistou ou ele próprio quem grafou o d minúsculo?). Uma entrevista tem a vantagem de o jornalista poder fazer perguntas que espevitem o entrevistado mas também tem pouco espaço-tempo para detalhar a argumentação. A questão é a de saber se esse deus que se esperaria é o mesmo em que se acreditou no Ocidente ou se a cada um o seu, consoante a experiência e a qualidade ética. Mas se, ainda que com minúscula,  vem trazer a transcendência contra a imanência do consumismo, deve ser difícil de evitar a oposição entre os dois termos, que a civilização ocidental desconstruiu e donde resultou que as grandes massas de população, que sempre foram crentes nas crenças propostas pelo seu tempo, se tornaram consumistas na época do mercado dominante. Ou seja, quer o filósofo da informática voltar para trás? Não é provável, deixemo-lo em paz, agradecendo o estímulo: há algum tempo que pressinto que me devo medir com esta questão da transcendência, a transgressão positiva de Adão e Eva fornecem uma pista.
2. O comum ‘trans-’ que diferença esconde entre os dois termos? Segundo as etimologias, um deles ‘ascende’ além da partida que deixa ficar para trás, sem nenhum pé na imanência, já que se presume que a esperança é de tipo da aposta pascaliana, aponta para o após-morte; o outro (pro)gride além, ‘gresso’ reenvia para os ‘passos’ que se dão para além do espaço que se abandona, o dos usos e costumes da tribo, não deixa pois a imanência terrestre que todavia se altera com a transgressão duradoura. Posta a questão nos termos da fenomenologia que aqui se pratica (tanto quanto), pode-se propor que a biologia molecular nos ensinou que de bioquímica, física e electricidade de iões somos feitos, que tal será aproximadamente o nível básico de imanência que é o de cada bebé que nasce, mas o ‘aproximadamente’ indicia que o quadro comunitário em que se nasce já oferece a possibilidade de transcender esse nível básico, já o promete. Porque a unidade social familiar e económica é mais do que a bioquímica da nossa biologia e da exigência de alimentação. A captação do fogo, o uso de coisas para outros fins, depois a invenção de instrumentos, e mediando estas invenções a linguagem que as ia nomeando e criava mitos relacionando a comunidade actual com os seus antepassados inventores, eis o passo decisivo da transgressão da bioquímica biológica. Mas estes passos foram deles mesmos também passos da mesma bioquímica: por um lado, porque a alimentação e a defesa na selva eram o objectivo fundamental deles, o que os estimulava, ou seja bioquímica que estimulava a ultrapassar a bioquímica por razões da bioquímica, mas também porque essas invenções implicavam práticas e estratégias mais ou menos complicadas que se ensinavam aos novos para se transmitirem de geração em geração, e a aprendizagem significa que essas práticas aprendidas, tornadas rotina, se biologizaram quimicamente, como manifesta a espontaneidade ganha que antes não havia. Isto é, os automatismos ganhos nos novos gestos são a assunção deles pela bioquímica neuronal.
3. Pode-se dizer que é este conjunto de práticas comunitárias que preenche o que Heidegger chamou cuidado em 1927 e, nos ensaios e conferências dos anos 50, o habitar que define o humano. Nalguns desses textos, ele propôs uma Quadrindade (Geviert) do Céu e dos Deuses, da Terra e dos Mortais, onde mantinha a diferença Céu / Terra como medida dos humanos, tal como, a partir da mitologia, ela fora proposta, quer pelo livro profético do Deuteronómio, quer pela República de Platão e foi estruturante dos paradigmas de habitação ocidentais. Foi essa oposição que foi desconstruída pelo processo histórico de invenções que foi alterando as práticas comunitárias, desconstrução essa que as massas consumistas puderam presenciar no final dos anos 60, quando Armstrong pôs o pé na lua e confirmou que, vista dali, a terra também era um astro do céu. Também nesses anos se ia espalhando entre as pessoas que liam livros a descoberta da biologia molecular que explicava enfim o funcionamento e a reprodução das células, portanto o crescimento dos vivos e ainda a sua reprodução, o grande mistério da fecundidade das agriculturas e rebanhos, e dos humanos em sua sexualidade, o qual fora o segredo dos Deuses de quem dependiam as economias.
4. Há um belo argumento de Floridi para a “esperança”: “algumas das maiores conquistas da humanidade ocorreram porque sempre tivemos esperança em algo mais e nunca nos contentámos com o que existia”; este argumento não chega para a transcendência dele, é todavia um óptimo argumento para a transgressão. Com efeito, o que são as invenções, as de ordem técnica, por exemplo? São fruto de algum desconforto com os instrumentos e meios que se herdaram para a habitação, insatisfação de alguém com a imanência da sua rotina que leva a transgredi-la num dado ponto que a modifica parcialmente: há uma relativa saída dum aspecto do paradigma dos usos para o melhorar, transgressão essa que, em geral, é boa para os mais novos que a acolhem e má para os mais velhos que a reprovam. Mais óbvia esta transgressão do paradigma dos usos com a invenção das literaturas e de outras artes, musicais, pictóricas, esculturais, que todavia também retornam ao habitar como cultura em sentido corrente, a manterem elevado o nível do humano, que justamente já não corresponde a exigências da bioquímica biológica e nesse sentido pode ser dito transcendê-la (razão escondida porventura do interdito hebraico das imagens, como se fizessem concorrência ao divino): transcendência estética dos artistas e dos que entendem as artes como transgressão do utilitário da habitação. Acrescente-se o pensamento filosófico e científico, com o que ele sempre teve de raridade, de tocar pouca gente, difícil a abstracção como ruptura intelectual, transgressão dos paradigmas comuns que o comum dos mortais não conseguia acompanhar. Mas foi o que veio a desaguar nas invenções da tecnologia actual e a tornar possível o famigerado consumismo.
5. Falta a transgressão maior, a espiritual, a mais radical, porque corta com o paradigma naquilo em que ele excede as exigências da bioquímica biológica, não apenas com o luxo e a sua tranquilidade, mas também com o próprio consumismo (sem contar pois com os que buscam transcendências íntimas por via bioquímica). Mas para a ter em conta, é necessário dar atenção a outra vertente da habitação, descurada por Heidegger, aquela que tem que ver com a apropriação além das exigências da bioquímica biológica, com a busca do luxo da habitação em termos de se mostrar aos outros, vizinhos, rivais, concorrentes, como os melhores, os mais fortes, hábeis e poderosos em artes e astúcias das guerras. Escravos, servos, proletários, foram a condição histórica da situação de poder social conseguida, como a forma de transcendência que perseverou em linhagens e ranks: a chamada propriedade privada, de que o que é comum de todos foi privado, incluindo sobretudo a energia bioquímica do trabalho dos que, por força da guerra ou por fraqueza social herdada, não têm outra maneira de satisfazer as suas exigências bioquímicas imanentes. Ou seja, esta transcendência de poder e riqueza social produziu uma recíproca imanência de pobreza e miséria, em verdadeira oposição social. E a questão é a de saber se, quando se fala de transcendência, se tem ou não em vista também estoutra e os seus efeitos nefastos.
6. Sem que eu conheça mais do que o que pelos médias nos vem, não creio que se possa negar que há muita gente hoje que, de forma mais ou menos adequada, responde a apelos de transcendência em termos de cooperação em associações que buscam minorar esta imensa miséria social nos arredores de si ou rumando ao longe, enquanto outros se dedicam a formas de arte, ou de investigação científica, ou outras ‘vocações’, como se dizia a transgressão espiritual, mais ou menos radical, dos paradigmas da imanência tribal. Não deixa de ser notável a resposta dos evangelhos a esta questão, que não propõe sem mais uma ‘conversão a Deus’ – “não é dizendo-me ‘Senhor, Senhor!’ que se entrará no reino dos céus, mas fazendo a vontade do Pai que está nos céus” (Mateus 7,21) – mas uma conversão ao pobre: “tive fome e deste-me de comer, sede e deste-me de beber, era um estrangeiro e acolheste-me, estava nu e vestiste-me, doente e visitaste-me, na prisão e vieste ver-me” (idem, 25,35-36). Se os evangelhos têm em conta um reino de deus transcendente após a ressurreição dos mortos (e como é com a bioquímica?), percebe-se que – com o picante de buscar dar aos pobres a possibilidade de chegarem ao consumismo que ataranta Floridi – a transgressão que eles pedem inclina-se sobre a imanência elementar dos paradigmas dos usos como quem recomenda que se comece de novo a evolução histórica corrigindo-a da sua má transgressão do poder privado. Ora, uma tal transgressão mantém-se viva e fecunda ainda que não se acredite em nenhum céu transcendente após a morte, poder-se-ia mesmo dizer que, nesta época de catástrofe planetária previsível, ela vai ser a grande esperança. 

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

O mito de Adão e Eva sem o ‘pecado original’




1. Os mitos de origem, como é o caso do de Adão e Eva, são maneiras de sociedades agrícolas pensarem problemas seus, no caso: porquê a morte, se o nascimento é uma bênção divina, porquê a dureza do trabalho se as colheitas e os rebanhos são a outra grande bênção, a riqueza económica duma casa. Trata-se do grande enigma, que só a biologia molecular, na segunda metade do século passado, desvendou, o da fecundidade da vida, que do menos saia o mais. A filosofia grega, mantendo a diferença Céu / Terra que é a estrutura básica dos mitos, criticou-os para se apoderar dessas questões e lhes buscar respostas racionais, susceptíveis de argumentação, nomeadamente a phusis de Aristóteles, a latina ‘natureza’: porque crescem os vivos? Uma das forças do cristianismo foi a de se ter apoderado, por sua vez, do discurso filosófico para transmitir a sua narrativa a respeito do destino de Jesus, representado nos dogmas já não como Messias judaico mas como parte da Trindade do Céu Incarnada na Terra; esta dicotomia desde Copérnico e Galileu até Armstrong foi sendo desconstruída, e com ela a teologia cristã. Mas desses mitos e teologias somos filhos, ainda que descrentes e relê-los pode ajudar-nos a repensar algo das nossas questões. Por exemplo, reler o mito grego de Prometeu roubando o fogo aos deuses e dando-o aos mortais, castigado por temor de Zeus que estes ficassem tão poderosos como os deuses, pode ajudar a pensar as coisas ecológicas, a desmedida das especulações financeiras jogando com a aceleração vertiginosa dada à tecnologia pela invenção fabulosa do ‘fogo moderno’, a electricidade.
2. Se Prometeu com o desafio aos deuses é fácil de ter uma leitura moderna positiva, o caso de Adão e Eva deu um ‘pecado original’ de má memória, por terem comido uma fruta popularizada como maçã e manchado em consequência cada humano que nascia, na teologia cristão sendo necessário baptizar cada bebé para, se morresse precocemente, ‘a sua alma ir para o céu’. Hoje, até as crianças se riem desta história. Ora, ela não é a única, último dos três mitos de Génesis 2-3 que se foram acrescentando uns aos outros, foi o que ficou. Todavia o segundo mito é susceptível duma comparação honrosa com o de Prometeu. A Bíblia hebraica foi escrita por mil mãos, que nunca apagavam o que já havia sido escrito, ainda mesmo quando lhe corrigiam a lição acrescentando-lhe o que a nova mão entendia em relação à anterior, um diálogo, um antecedente ou um consequente, consoante. Por isso se mantiveram arcaísmos, apesar duma progressiva perspectiva ética e espiritual, que por exemplo, desantropomorfiza o Deus, que neste caso passeia à tarde no jardim, e chega a proibir de dizer o seu nome.
3. A primeira versão do mito é o essencial do cap. 2 do livro do Génesis, sem as menções das árvores e do interdito nem da vergonha final da nudez primeira (Gen 2,4b-9a,10-15, 18-23): termina com a criação de Eva, é um mito da origem do matrimónio, promovendo a mulher a companheira, já que “osso dos ossos e carne da carne” do homem (e não de argila, como ele): “por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”. “Mãe de todos os vivos”, dirá a segunda versão, ela é a fonte da fecundidade, segredo dos deuses, maior bênção duma casa, juntamente com a fecundidade das colheitas e dos rebanhos. Acrescente-se que na Bíblia, como em geral nas religiões, é a impotência humana quanto a estas fecundidades, e portanto quanto à riqueza económica, a razão estrutural da religião. O terceiro mito é o conjunto dos dois capítulos, incluindo os castigos sobre a serpente, a mulher e o homem (Gen 3,14-19), que são justamente o que o segundo mito ignora, limitando-se à cena do comer do fruto interdito e à expulsão do paraíso. Vale a pena lê-lo na sua limpidez, reparando que a morte e o trabalho aparecem como consequência da transgressão, inerentes à expulsão do paraíso : é para explicar a existência destas contra-bênçãos que o mito é contado. As maldições do terceiro, vindas dum deus zangado com a transgressão, relevam da época do exílio de Israel em Babilónia, servindo de ‘moral da história’ para fazer do mito das origens a causa remota dessa derrota : a transgressão vira pecado.
4. Lido sozinho, percebe-se que o que a serpente diz para incitar à transgressão, “Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deuses, ficareis a conhecer o bem e o mal”, é retomado pelo próprio Iavé Deus: “eis que o homem se tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal”. E acrescenta um temor que lembra o de Zeus face ao roubo do fogo por Prometeu: “agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da vida e, comendo dele, viva para sempre”. A lógica deste mito não é o lamento da morte e do trabalho, como no terceiro, mas pelo contrário, trata-se de se congratular com o que se ganhou, a responsabilidade de conhecer e decidir o bem e o mal. O que é comparável com o fogo, uma técnica fundamental e perigosa que escapa aos humanos (um dos 4 elementos dos Gregos); aqui trata-se da própria dignidade ética, do conhecimento como responsabilidade. Então como ler a cena da transgressão? tal como Prometeu, é uma espécie de ‘roubo’ irreversível feito à divindade. O que é engraçado é ver que a serpente, “o mais astuto de todos os animais selvagens”, vem justamente ensinar a manha, a dissimulação como necessária à liberdade e ao conhecimento do bem e do mal e é de dissimulações que se trata na narrativa: eles acreditaram na serpente e descobriram que estavam nus – primeira dissimulação, a vergonha – esconderam-se (jogar às escondidas é um elemento essencial da dissimulação, entre crianças e entre ladrões e polícias), e depois desculpam-se diante Iavé, Adão com Eva, ela com a serpente, as dissimulações são em catadupa. Mas como escolher entre o bem e o mal sem pensar duas vezes, sem hesitar, sem saber guardar segredo, sem ter um foro interior que sabe que nem todas as verdades são boas para se dizer a toda a gente? Dissimular o que se pensa, a vida interior, é essencial a quem busca o saber, só se é capaz de bem se se for capaz de mal. Busca de pertinência e capacidade de dissimulação são condição prévia da ética (argumento no blogue “filosofia mais ciências 2”). A transgressão de Adão e Eva foi tornar os seus descendentes capazes de bem e de mal, o mito tendo trocado a responsabilidade do saber pela morte e pelo trabalho.
[editado  pelo Público on-line em 29 de dezembro de 2017]

A segunda versão do mito de Adão e Eva

Quando Iavé Deus fez a Terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque Iavé Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, e da terra brotava uma nascente que regava toda a superfície, então Iavé Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo.
Depois, Iavé Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. Iavé Deus fez brotar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da Vida estava no meio do jardim, assim como a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Um rio nascia no Éden para regar o jardim, dividindo-se, a seguir, em quatro braços. O nome do primeiro é Pichon, rio que rodeia toda a região de Havilá, onde se encontra ouro, ouro puro, sem misturas, e também se encontra lá bdélio e ónix. O nome do segundo rio é Guion, o qual rodeia toda a terra de Cuche. O nome do terceiro é Tigre, e corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. Iavé Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E Iavé Deus deu esta ordem ao homem: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.”

Iavé Deus disse: “Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. Então, Iavé Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele.
Então, Iavé Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, Iavé Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha.
A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que Iavé Deus fizera; e disse à mulher: “É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?” A mulher respondeu-lhe: “Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”. A serpente retorquiu à mulher: “Não, não morrereis; porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal”.
Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu.
Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.
Ouviram, então, a voz de Iavé Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde, e o homem e a sua mulher logo se esconderam de Iavé Deus, por entre o arvoredo do jardim.
Mas Iavé Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?” Ele respondeu: “Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu”. Iavé Deus perguntou: “Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?” O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi”. Iavé Deus perguntou à mulher: “Porque fizeste isso?” A mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi”. Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes. Iavé Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os.
Iavé Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, quanto ao conhecimento do bem e do mal. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre”. Iavé Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou a oriente do jardim do Éden os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.
Extracto da Bíblia dos Capuchinhos on line, com restituição do original hebraico Iavé em vez de SENHOR


segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A dissimulação antes da ética (três argumentos)




1. Há alguns anos, a Sociedade Portuguesa de Filosofia lançou um inquérito, pedindo aos seus sócios uma lista dos vinte textos do século XX mais importantes do seu ponto de vista, que aliás foi um fracasso, apenas três respostas. Na lista que enviei, havia um pequeno artigo de meia dúzia de páginas que ainda hoje considero luminoso, embora o autor já se tivesse esquecido dele, como me confessou quando lhe contei que fazia parte do meu top 20: ora, esse texto sugeria nada mais nada menos do que o mecanismo social ligado à aprendizagem pelo qual se incentiva a diferença entre o pensamento (dianoia) que se tem em diálogo consigo mesmo e o discurso (logos) com outros, de que escreve o Sofista de Platão (263e). Tratava-se da lógica da conversa[1], com o filósofo americano P. Grice que propôs um “princípio de cooperação” entre os dois (ou mais) parceiros da conversa, com quatro máximas a que devem obedecer: quantidade da informação prestada, sua qualidade verdadeira, relevância para a conversa e modalidade de clareza e brevidade. François Flahault, além de criticas da primeira e da última máximas e da própria noção ‘moral’ do princípio de cooperação, retoma as outras duas através da elaboração do espaço da conversa duma forma que me fascinou e que nunca encontrei em mais nenhum lado: conversar não implica nenhum contrato de cooperação, cada locutor não pode falar ao mesmo tempo do que o outro, já que o “conflito inerente a um lugar em que não há lugar para dois encontra-se estruturalmente gerado, não há senão um fio da conversa (é por isso que se diz tomar a palavra, cortar, dar a palavra); noutros termos, o que se diz, vale, deve valer para os que ouvem” (p. 74). Mas então, continua ele, cada um no seu tempo de fala tem que conseguir que o(s) outro(s) o escute(m), tem que mostrar que é pertinente, que o que diz merece ser ouvido. A conversa releva dum conflito em que se procura convencer o outro e é onde sem dúvida se situa o extraordinário leque de entoações de que as línguas dispõem, que se pode observar ouvindo em redor de nós, a qualquer nível é raro quem não ponha na conversa o peso todo para ser considerado pertinente no que diz, inteligente, informado, em não ser desconsiderado como estúpido ou ingénuo, pior um pouco, como doido (competente no que se faz é a outra vertente das reputações). A inflamação das entoações nas discussões televisivas é um espectáculo delicioso, com muitas variantes, a ‘razão’ devendo resultar da pertinência do que se diz, o altear da voz, o crescendo das entoações sendo o reconhecimento implícito de que ela está falhando no conflito. Resta a máxima da ‘verdade’ de Grice, que já de si é contestada pelo facto de que ninguém é obrigado moralmente a dizer todas as verdades a toda a gente, a verdade só é eticamente exigível em relação a quem tem direito a ela, ensinou-me o meu primeiro mestre, o P. Honorato Rosa, isto é, deixa de lado as questões de etiqueta em que mal iria ao mundo se toda a gente dissesse o que pensa ser verdade. Mas o argumento de Flahault relaciona-a com a pertinência: para se ser pertinente no que se diz, tem que se medir o que se vai dizer e reservar, o termo é dele, algo como um foro interno da fala, que permita a distância ao interlocutor ou, como se diz, permita ‘pensar duas vezes’ antes de falar, permita dissimular nesse foro o que haja de impertinente: e eis que encontramos de forma inopinada a mente de Damásio, lá onde só o próprio tem acesso, a sua reserva. Se se tem em conta que desde miúdos se riem de coisas que dizemos, nos castigam por vezes e premeiam outras, percebe-se que, à medida que vamos aprendendo a falar, vamos também aprendendo a dissimular o que vamos percebendo não ser conveniente, pertinente em tal ou tal situação, aprendemos a ‘pensar’ mentalmente, a guardar segredo, a ter távcticas. Flahault, sem aparentemente dar por isso, encontrou o mecanismo de construção da interioridade como distância em relação ao próximo. Entre outras consequências, isto ajuda a perceber um mistério da história intelectual europeia: a percentagem muito grande, em proporção ao resto da população, quer de judeus quer de gays entre os artistas e os intelectuais: provavelmente a constrição a que foram sujeitos em meios anti-semitas e machistas forçou-os a desenvolver o seu mundo interior secreto, obrigando-os a um esforço maior de compreensão do seu contexto, dos outros, mas também contribuindo para descobrir linhas de paixão como liberdade sua e saída para aceitação social. Pois se aprender a dissimular é poder aprender a mentir, isso põe a questão da lei da verdade nesta estrutura de conflito da linguagem: por isso mesmo que há conflito e que a língua é a mesma para todos da tribo, ela só pode funcionar se o axioma da pertinência se conjugar também com um axioma da verdade na relação entre os nomes e as coisas, dois axiomas igualmente prévios à ética. A maneira como as anedotas brincam constantemente com a linguagem mostra bem como ela pesa sobre nós, o riso traz um alivio, embora também devido a pesos sociais, trabalhos e vários tipos de conflitos e rivalidades. Mas a capacidade de dissimulação é também poder aprender a ser actor, escritor de ficções, e ainda aprender que se pode errar, enganar-se, que a verdade das conversas e das escritas é uma coisa boa mas por vezes difícil, e por aí fora: é algo que tem uma grande relevância ética justamente por term como condição que todos aprendemos a dissimular, tal como a paz recebe a sua relevância da lei da guerra. Já que a dissimulação é uma boa arma de guerra, como se pode perceber lendo Nietzsche.  
2. Um texto póstumo dele, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral (1872), que li em contraponto com a Poética de Aristóteles[2], após uma fabulosa fábula – “num canto qualquer afastado do universo espalhado no flamejar de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o conhecimento; foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da ‘história universal’, mas foi apenas um minuto; alguns suspiros da natureza e a estrela congelou, os animais inteligentes tiveram que morrer” – desenvolve uma tese sobre o intelecto e o conhecimento que resume bem esta citação. “Enquanto é um meio de conservação para o indivíduo, o intelecto desenvolve as suas forças principais na dissimulação (Verstellung); esta é com efeito o meio pelo qual os indivíduos mais frágeis, menos robustos, subsistem como sendo aqueles a quem é recusado conduzir uma luta pela existência com cornos ou com a mandíbula aguda dum animal de predação. No humano esta arte da dissimulação atinge o cume: a ilusão, a adulação, a mentira e o enganar, a coscuvilhice, os ares de importância, o brilho de imitação, a máscara, o véu da convenção, a comédia para os outros e para si próprio, em resumo o circo perpétuo da adulação por uma labareda de vaidade são de tal maneira a regra e a lei que nada é mais inconcebível entre os humanos do que a vinda dum instinto de verdade honesto e puro”.
3. Nietzsche em 1872 ainda é professor em Basileia, se não leu, ouviu certamente falar da publicação, 13 anos antes, de A origem das espécies, a quem vai buscar o quadro para colocar a questão do conhecimento, no ‘minuto’ cósmico que durará um ou dois milhões de anos: arrogante, esse minuto, e mentiroso. Que a arrogância e a mentira faziam parte dele, também congelaram. A dissimulação é uma forma geral da astúcia, termo que diz melhor o carácter guerreiro que pode ter a mentira no sentido extra moral, mas que convém tanto ao conhecimento como a ‘verdade’, já que qualquer novo conhecimento, qualquer nova verdade, só pode resultar dum lento processo de dissimulação em relação à verdade instituída que for vencida. Ora, a astúcia foi herdada com os músculos da evolução submetida à lei da selva e da guerra: a “luta pela existência”. É este quadro cósmico e evolutivo grandioso da ciência sua contemporânea que o filósofo encena para situar o teatro mundano de Basileia, o conhecimento é um meio de conservação dos indivíduos na luta pela existência: o teatro mundano que o texto vai fustigar é sem dúvida o da universidade que abandonará brevemente para o ar livre da montanha de Zaratustra, as guerrazinhas académicas com os seus “ares de importância e brilho de imitação”. Todavia, este início grandioso que liga conhecimento e dissimulação não busca desvalorizá-los enquanto competição com animais de cornos e mandíbulas, mas bem pelo contrário quer fustigar o humano de razão, só de razão, e valorizar o artista como o grande dissimulador. “Este instinto que leva a formar metáforas, este instinto fundamental do humano de que não se pode fazer abstracção um instante só [...] procura um novo domínio para a sua actividade e um outro leito de fluxo e encontra-os no mito e sobretudo na arte; continuamente confunde as rubricas e as células dos conceitos instaurando novas transposições, metáforas, metonímias; continuamente mostra o seu desejo de dar a este mundo presente do humano acordado tão confusamente irregular, tão incoerente, uma forma cheia de charme e eternamente nova como sucede no mundo do sonho”.
4. Antes, o texto como que se viu forçado a ‘admirar’ o humano de razão. “Há que admirar aqui o humano por ser um poderoso génio da arquitectura que consegue erigir , sobre fundações móveis e de certa maneira sobre água corrente, um edifício conceptual infinitamente complicado; em verdade, para encontrar um ponto de apoio sobre tais fundações, tem que ser uma construção como que feita de fios de aranha, fina que baste para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa pelo sopro de pouco vento. Pelo seu génio da arquitectura, o humano eleva-se muito acima da abelha: esta constrói com a cera que colhe da natureza, ele com a matéria muito mais frágil dos conceitos que só pode fabricar a partir de si mesmo. Há que admirá-lo muito aqui – mas não pelo seu instinto de verdade, nem pelo puro conhecimento das coisas”. Estas fundações móveis sobre água corrente do edifício dos conceitos da filosofia e da ciência ocidental, ou se se preferir este edifício sem fundações, pode ser lido como a intuição do pensamento com jogo das diferenças, que não é feito a partir da ‘verdade’ duma realidade exterior mas tece-se de maneira a bastar-se enquanto o tão difícil de pensar texto sem fora de texto (Derrida), mas que a homeostasia de Damásio no coração do mundo dos humanos permite compreender, ou seja a estabilidade instável de Prigogine, estável sem fundação.
5. O texto termina contrastando-os a ambos, “o humano racional e o humano intuitivo, [...] um no medo da intuição, o outro no desdém da abstracção; e o último é quase tão irracional quanto o primeiro é insensível à arte. Ambos desejam dominar a vida: este sabendo afrontar as precisões mais importantes pela previdência, a prudência, a regularidade; aquele, enquanto herói ‘alegre demais’, não vendo essas precisões e não tomando como real senão a vida disfarçada em aparência e em beleza. Aonde, talvez como a Grécia antiga, o humano intuitivo dirige as suas armas com mais força e mais vitoriosamente do que o seu adversário, uma civilização pode-se formar favoravelmente, a dominação da arte pode-se fundar na vida: esta dissimulação, esta negação da indigência, este brilhar das intuições metafóricas e sobretudo este carácter imediato da ilusão acompanham todas as exteriorizações duma tal vida. Nem a casa, nem o marchar, nem o vestir, nem os jarros de argila traem que a necessidade os atingiu: parece que neles devia-se exprimir uma felicidade sublime, uma serenidade olímpica e em certo sentido um jogo com o sério. Enquanto que o humano conduzido pelos conceitos e as abstracções faz deles uma defesa contra a infelicidade, sem sequer obter a felicidade a partir dessas abstracções, enquanto aspira a ser libertado o mais possível dos sofrimentos, ao contrário, posto no coração duma cultura, o humano intuitivo colhe já, a partir das suas intuições, ao lado da defesa contra o mal, um esclarecimento de irradiação constante, um florescimento, uma redenção. É verdade que ele sofre mais violentamente quando sofre: sofre mesmo mais vezes, porque não se entende a tirar lições da experiência, cai sempre no buraco em que já caiu. É tão pouco razoável na dor como na felicidade, grita muito alto e fica sem consolo. No seio da mesma desgraça, como é diferente o estóico, instruído pela experiência e dominando-se por meio do conceito! Ele que não procura ordinariamente senão sinceridade, verdade, liberdade face às ilusões e protecção contra as surpresas enganadoras, coloca agora na infelicidade a obra prima da dissimulação, como o outro na felicidade; não tem um rosto humano móvel e animado, mas leva em certo sentido uma máscara com os traços dignamente proporcionados, não grita nem altera o som da sua voz: quando uma nuvem justa de aguaceiro desagua sobre ele, esconde-se no manto e afasta-se com um passo lento”. Dois estilos de dissimulação, antes da ética.
6. Também a Bíblia hebraica testemunha de que a dissimulação é anterior à ética: ela predomina na cena célebre de Adão e Eva, que merece ser relida deste ponto de vista. Trata-se dum paraíso vegetariano de frutas, mas com uma árvore interdita, a do discernimento entre o bem e o mal, isto é, da responsabilidade, o que significa que nele não há ética, apenas a sua previsão como possibilidade ligada à morte. É essa previsão que vai lançar uma figura exterior, uma serpente caracterizada como “o mais manhoso de todos os animais”. A manha consistirá em desmentir a razão do interdito dada por Iavé: “Nada disso, vocês não morrem! Iavé sabe que no dia em que comerdes o fruto, os vossos olhos abrir-se-ão e sereis como deuses, que conhecem o bem e o mal”. Eles acreditaram e descobriram que estavam nus – primeira dissimulação, a vergonha – esconderam-se (jogar às escondidas é um elemento essencial da dissimulação, entre crianças e entre ladrões e polícias), e depois desculpam-se diante Iavé, Adão com Eva, ela com a serpente, as dissimulações são em catadupa. Mas o melhor ainda está para vir, após os castigos[3]  quando Iavé se justifica: “eis que o homem se tornou como um de nós para discernir o bem e o mal”.  Afinal, a manha da serpente é requintada, mente como se estava agora a verificar nos castigos e diz a verdade, já que tinha razão ao dizer que eles se tornavam como deuses: é o próprio Iavé, ao confirmá-lo, que se revela ser o grande dissimulador.

7. Já agora, há quem conte a história desta narrativa segundo três versões. A primeira (Gen 2,4b-9a,10-15, 18-24) termina com a criação de Eva, é um mito da origem do matrimónio, promovida a mulher já que “tirada do homem” (e não de argila, como ele): “é por isso que o homem deixa o seu pai e a sua mãe e se liga à sua mulher e ambos se tornam uma só carne”. A segunda (Gen 2,9b,16-17, 3,1-13,20-24) é a cena do fruto interdito e da dissimulação, que termina com a expulsão do paraíso e a mortalidade, com o reconhecimento divino de os humanos serem como deuses – porque dissimulam e conhecem o bem e o mal – mas mortais: seria a maneira hebraica da diferença em relação aos animais (em contraste com a alma imortal platónica). A terceira (Gen 3,14-19) é que traz o castigo e releva da época do exílio de Israel em Babilónia, servindo de ‘moral da história’ para fazer do mito das origens a causa remota dessa derrota. A segunda versão dá-nos uns Adão e Eva positivos, uma espécie de Prometeus hebraicos que, em vez do fogo escolheram a responsabilidade do conhecimento, decidiram arriscar a morte, seguindo a serpente manhosa, para “abrirem os olhos e serem como deuses que conhecem o bem e o mal”, como Iavé ratifica, implicando além da morte o trabalho, como as consequências que o mito elucida, alem do matrimónio, ma não como castigo.




[1] Dossier La Conversation. Communications 30, 1979. Inclui P. Grice, “Logique et conversation”, pp. 57-72 e F. Flahault, “Le fonctionnement de la parole. Remarques à partir des maximes de Grice”, pp.73-79. Tratei deste motivo em A conversa, linguagem do quotidiano. Ensaio de Filosofia e Pragmática, Presença, 1991
[2] Leituras de Aristóteles e de Nietzsche. A Poética, Sobre a verdade e a mentira, F. C. Gulbenkian, 1994. O texto de Nietzsche encontra-se traduzido em português num volume com o título geral de O livro do Filósofo.
[3] As dores do parto e a dominação do marido em relação à mulher em relação a ele o duro trabalho da terra amaldiçoada também, a mortalidade (era antes que eram imortais como deuses) e a expulsão de ambos. Não são arbitrários: são os sofrimentos que acompanham as grandes bênçãos que são o nascimento de filhos (que são mortais) e as colheitas agrícolas.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A homeostasia, segredo da vida (Damásio)



“Imaginemos a extraordinária habilidade
de um malabarista,
que não pode interromper o processo
de manter todas as bolas no ar
sem deixar que alguma caia,
e temos uma representação teatral
 da vulnerabilidade e do risco da vida.
 Pensemos [...] que está já a imaginar
uma actuação ainda melhor” (p. 57)


Homeostasia, anatomia, genes
Princípio de inércia e princípio homeostático
Os dois sistemas da anatomia, o ‘antigo’ e o ‘não tão antigo’
Energia: sentimentos e emoções
A oposição interior / exterior a desconstruir
O cérebro é um órgão simultaneamente biológico e social
A evolução e o malabarista


Homeostasia, anatomia, genes

1. “Deixei de me chamar um neurocientista. Sou um biólogo interessado na mente e no cérebro” disse António Damásio (AD) em entrevista a Clara Ferreira Alves[1], a qual, perspicaz, comentou: “aqui está uma novidade; nunca tinha ouvido A. Damásio dizer isto”. Trata-se com efeito duma revolução na sua caminhada de cientista, a neurologia inserida no conjunto da anatomia, como faz esta fenomenologia desde 1996, quando, inocência de leigo apaixonado, começou a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2007) pelo seu capítulo 3 sobre as ciências da vida, e como se tem reclamado frequentemente neste blogue a biólogos e neurologistas. Não contente com esta revolução, opera uma outra ao contestar o primado dos genes que grassou durante as primeiras décadas da biologia molecular e se tornou parte da ‘cultura geral’ do sr. Todo o Mundo (que diz ‘faz parte do meu ADN...’): defende a “teoria do metabolismo primordial” de Freeman Dyson (1999), tendo havido em seguida “uma série de acontecimentos fortuitos que levou à geração de moléculas auto-replicadoras, como os ácidos nucleicos”, os genes[2] (A estranha ordem das coisas, p. 62). Este novo livro de AD começa bem, no seu 2º capítulo já biológico, ao pôr o ponto de partida e o fulcro da sua nova posição sobre a anatomia dos vivos na homeostasia, indo mais aquém do que fazia J.-D. Vincent há uma trintena de anos em Biologia das paixões (1986), porque jogando desde a célula (em 1970, já J. Monod aludia ao “estado homeostático do metabolismo celular”[3]). Segundo AD, é a homeostasia que permite ao vivo, ao unicelular, persistir e prevalecer, isto é, sobreviver por um lado, e por outro florescer (42), ir mais além do que a reprodução de iguais.
2. Temos todavia que ultrapassar a posição de todos os biólogos e neurologistas que li, descendentes de Aristóteles que define os vivos como os que se movem por si mesmos (kath’autôn), definição essa que valoriza, por exemplo, a “autopoiêsis” de F. Varela (63); temos que colocar o vivo como ser no mundo, na cena ecológica que o dá e deixa ser autónomo em sua temporalidade nessa mesma cena. Para isso, há que ligar a homeostasia à produção de entropia positiva de Prigogine, que trabalhando – como químico e não como biólogo – sobre a química do metabolismo celular, mostrou como este – duas mil transformações químicas [incrível!] – cria uma estabilidade instável, uma estrutura dissipativa (que lhe valeu o Nobel de Química em 1977), ou seja uma homeostasia, sendo que esta só é possível por haver uma fonte externa que alimenta energeticamente essa estabilidade instável, essa criação de entropia. Ou seja, a homeostasia é correlativa da alimentação do metabolismo por moléculas vindas da cena ecológica, o que obviamente confirma AD (65). É por isso que a noção de homeostasia (do sangue) implica a de dois limiares, mínimo e máximo (77), entre os quais ela oscila, a descida perto do mínimo levando a pedir aumento que não pode ultrapassar o máximo: é a esta demanda que corresponderá o que AD chama o “imperativo da homeostasia”. Trata-se com efeito dum processo que tem a ver com as dimensões – da célula, dos órgãos, do conjunto do organismo – que são possíveis a tal espécie de seres vivos. “Sobreviver” significará então reproduzir-se dentro dos limites a que a homeostasia corresponde e “florescer” será crescer paulatinamente até chegar ao tamanho de adulto, movendo-se para se ultrapassar. Por exemplo endócrino: há hormonas da fome que suscitam os comportamentos de caça, de captação de outro vivo e outras que fazem saciar-se, que além dum certo limite interrompe a entrada de mais moléculas; também as células crescem até um certo tamanho e depois dividem-se em duas mais pequenas que crescerão por sua vez. Para Damásio, há neste ‘florescimento’ “uma projecção dessa vida no futuro dum organismo ou duma espécie” (p. 42), “a homeostasia como impulsionadora da evolução” (p. 77). Eis o que é novo, as “paixões” de Vincent incluídas mas talvez mais além; com o risco duma finalidade? A dizer verdade, qualquer ser vivo tem uma meta de espécie, no fundo é ela que Darwin considera na sua teoria da evolução, mas que é limitada à espécie e manifestando-se nas variedades que desta resultam, após se estabilizar endogamicamente (aludiremos de novo à questão evolutiva).

Princípio de inércia e princípio homeostático
3. Como caracterizar este fenómeno base dos vivos? Damásio cita o físico Schrödinger, O  que é a vida? (1944), que diz que “a vida parece ser o comportamento ordeiro e correcto da matéria, não baseado exclusivamente na sua tendência de passar da ordem para a desordem”, a vida ser uma força que se opõe à “tendência natural de todas as coisas de procurarem a desordem” (p.  64), essas coisas que seguem o 2º princípio da Termodinâmica, da degradação da energia como entropia que cresce negativamente (Clausius); Schrödinger como que anuncia a entropia positiva de Prigogine. Poder-se-á então contrastar a homeostasia com o princípio da inércia próprio da física e química mineral, a qual inércia não é algo de intrínseco ao grave mas significa que o seu estado de repouso ou de movimento depende de haver ou não forças da cena da gravitação incidindo sobre ele. Talvez se possa dizer que, do ponto de vista das transformações químicas (um pedaço de ferro que se oxida ao ar), a inércia implicaria uma ‘abertura’ à proximidade na cena da gravitação de outro grave (o oxigénio do ar), tal que os respectivos electrões livres se atraiam mutuamente para criar um novo grave composto (óxido de ferro). Então a proposta de Damásio levaria a considerar o princípio homeostático como característico dos seres vivos, a auto-regulação da oscilação resultante do fluxo de moléculas vindas das fontes externas de alimentação, respiração incluída: essa auto-regulação, a autonomia de cada vivo (com regras recebidas da heteronomia da espécie), em que os genes têm um papel importante, mas Damásio frisa que posterior: “faz sentido aventar que o imperativo homeostático, tal como se manifestou nas primeiras formas de vida, terá sido seguido pelo material genético, e não vice-versa” (66); pode-se dizer que foi o citoplasma que veio a precisar dos genes, estes definem-se pela sua função no metabolismo, antes da reprodução celular.

Os dois sistemas da anatomia, o ‘antigo’ e o ‘não tão antigo’
 4. Chegados aqui, podia-se esperar um programa biológico de leitura da anatomia animal que permitisse situar cabalmente as investigações sobre a mente e o cérebro, como diz, lamentando o fenomenólogo que AD não acentue  mais claramente a sua lição de O Livro da consciência, a de que a mente não é outra coisa do que os neurónios cerebrais, enquanto só o próprio[4] lhes tem acesso, confortando no leitor que não leu esse livro a lição cartesiana dualista de que tão primorosamente nos libertara. Todavia a expectativa gorou-se: a anatomia do biólogo, provavelmente dos biólogos em geral, é uma colecção empirista de órgãos, ao fenomenólogo foi mais difícil do que é costume a leitura, dada a diferença entre as duas filosofias[5]. Mas houve uma excelente compensação, uma das suas propostas principais, que permite uma diferença essencial para o autor entre sentimentos e emoções, indica duas regiões anatómicas decisivas, caracterizadas na sua manifesta novidade para AD de forma muito curiosa, pela cronologia da sua invenção na longa evolução do mundo animal: “mundo interior ‘antigo’” e “mundo interior ‘não tão antigo’”. O primeiro “é o mundo interior do metabolismo, com as sua respectivas químicas, vísceras, como o coração, os pulmões, os intestinos e a pele, e os músculos lisos [...] paredes dos vasos sanguíneos e os invólucros dos órgãos” (118). Correspondem-lhe “termos como bem-estar, fadiga ou desconforto; dor e prazer; palpitações, azia ou cólicas [...] constrição da faringe e da laringe que ocorre quando sentimos medo, ou a das vias respiratórias e o arquejar dum ataque de asma [...] ou tremores” (118-9). O “mais recente é dominado pelo esqueleto e pelos músculos a ele ligados (esqueléticos), ‘estriados’ ou ‘voluntários’. [...] São usados para andar, manipular objectos, falar, escrever, dançar, tocar música e operar maquinarias [...] A estrutura corporal global, dentro da qual se situa parte do mundo visceral antigo, é o suporte sobre o qual se drapeia [...] o mundo antigo da pele [...], a maior das nossas vísceras. [...] A estrutura corporal global é o cenário onde se encontram os nossos portais sensoriais [...] as regiões da ‘moldura’ corporal onde estão implantados os dispositivos sensoriais, bem como estes” (119), os quais são dados a partir dos tradicionais cinco sentidos, dos quais o quinto, a pele, “está distribuído por todo o corpo” embora irregularmente, concentrados nas mãos, na boca, nas zonas mamilar e genital (119-120)[6]. Sua proposta: do mundo antigo, “os sentimentos retratam o interior do organismo” (149), como exemplos de forma geral, o bem estar e a dor relativos às vísceras do abdómen, tórax e pele e seus processos químicos, contracções ou descontracções de tubos respiratórios, intestinos ou vasos sanguíneos (150), e ainda a consciência das pulsões de fome ou sede (146). Em contraste, exemplos de emoções que correspondem a movimentos do mundo não tão antigo,: “a alegria, a tristeza, o medo, a fúria, a inveja, o ciúme, o desprezo, a compaixão e a admiração” (146).
5. O mundo antigo é o mundo do metabolismo, disse o início da explicitação, “da regulação fundamental da vida” (121), o que há de músculos (lisos) nele foge ao controlo voluntário, é caracterizado pela espontaneidade ou automatismo dos seus movimentos ou ritmos, pelos sentimentos que são gerados nele. O que contrasta bem com o mundo recente, que é justamente o da mobilidade em relação com a cena exterior em que se é. É possível que alguns leitores mais frequentes dos meus textos, se os há, sejam capazes de reconhecer na maneira como costumo apresentar as anatomias animais estes dois mundos de Damásio como respectivamente o sistema da alimentação e o sistema da mobilidade. Com toda a franqueza, fico com o sentimento de que, se acontecer que venha a ler este texto, possa AD aprender com o fenomenólogo algo de biológico, por muito estranho que possa parecer. O mundo antigo da alimentação é aquele onde a anatomia obedece à componente química da lei da selva: alimentar todas e cada uma das células do organismo, além de água e oxigénio, com moléculas orgânicas, tal como o mundo mineral inerte não as tem e que a fotossíntese fornece às plantas (glucose, com as moléculas de carbono que são essenciais em todas as moléculas orgânicas) e que os herbívoros vão buscar a estas, sendo por isso presas, por sua vez, dos carnívoros. Neste processo, aprendo por minha vez com Damásio que os automatismos são a regra de toda a movimentação do sistema de alimentação, o coração e os pulmões nomeadamente, e que os sentimentos que nele se geram espontaneamente relevam da homeostasia que regula todo o sistema (Claude Bernard e J.-D. Vincent), permitindo preservar e florescer a homeostasia de cada célula, contribuindo para a do órgão de que faz parte, e para a da sua reprodução, quando é o caso[7]. Quanto ao mundo mais recente, é aquele onde a anatomia obedece à componente guerreira, por assim dizer, da lei da selva, que é pulsionado pelo que AD chama o imperativo da homeostasia a caçar ou buscar ervas, assim como a fugir de ser caçado por mais forte ou astuto, sendo obviamente, ensina Damásio, o reino das emoções, das ‘moções’ surgidas de dentro (e-, como também ‘esforço’ diz uma força que vem de dentro). O cérebro articula os dois sistemas, regulando endocrinologicamente a homeostasia do sistema alimentar e daí pulsionando a buscar na cena as moléculas que aquele exige, sendo provável que no duplo cérebro de aves e mamíferos, o novo córtice se especialize nas tarefas estratégicas da selva que incombem ao sistema da mobilidade, antes de virem a ser a base da cultura humana a que AD aponta nos últimos capítulos.
6. A sensação que fica no leitor fenomenólogo é a de presumir que se AD tivesse dado por esta lógica estritamente biológica da constituição das anatomias animais, todas, em tão grande diversidade, invertebrados e vertebrados, incluindo a dos humanos[8], determinadas por esta lei da selva, poderia AD ter distinguido melhor o que em nós releva da biologia e da cultura; pode ser que o fito de chegar a esta tenha impedido maior atenção àquela. Por exemplo, o tratamento da violência, que “contra os outros humanos [...] não precisa de ser justificada pela fome ou por lutas territoriais” (p. 239-240): ora, é justamente a lei da selva que é a responsável da evolução dos músculos esqueléticos como das astúcias de ataque e de defesa, seleccionados bem antes dos humanos. Outro exemplo seria a seguinte afirmação: “não temos maneira de saber ao certo quando, nem como, teve lugar a emergência dos sentimentos na evolução; todos os vertebrados têm sentimentos e quanto mais penso nos insectos sociais, mais desconfio que os seus sistemas nervosos gerem as respectivas mentes simples com versões básicas de sentimentos e de consciência” (177). Mas aqui põe-se uma questão mais vasta. A noção de mente do Livro da consciência pareceu-me inerente a toda e qualquer rede neuronal, por incipiente que seja: onde há neurónios, o animal sabe de si, toscamente que seja, terá pois uma mente sua, é consciente na sua mobilidade, ao seu nível. Parece que Damásio guarda um conceito humano de mente e consciência como modelo que aplica para trás e busca a respectiva emergência sem ser nos neurónios, quando me parece que são os seus graus que as anatomias ao longo da evolução podem testemunhar: se ouso pôr hipóteses de saltos, de invertebrados para vertebrados, metamorfoses nuns e noutros, cérebro duplo de aves e mamíferos, invenção cultural de usos técnicos e de linguagem com melhoramento progressivo.

Energia: sentimentos e emoções
7. O motivo central da homeostasia na sua relação essencial à regulação da energia presta-se a uma reflexão geral que, do ponto de vista fenomenológico, me parece ir longe. O esquema de AD pode resumir-se assim: quando há movimentos inesperados no mundo visceral (sistema da alimentação), geram-se por homeostasia sentimentos que podem implicar igualmente por homeostasia emoções no sistema de mobilidade que levem a comportamentos tendendo a uma solução possível do surgido inesperadamente. Partirei dum excelente esquema de O Erro de Descartes[9] sobre a expressão de emoções entre corpo e cérebro, a qual é susceptível de suceder segundo dois mecanismos, um em que a emoção provém do corpo como força energética que se exprime cerebralmente (o esquema é dum duplo anel, o do corpo e o do cérebro) e outro, dito de simulação, em que o corpo é curto circuitado completamente (só há um anel, o cerebral). A discussão entre AD e outros autores supõe que os dois casos se põem em alternativa, mas o fenomenólogo, que nada sabe de laboratório, entendeu que os dois casos da figura podiam também representar a aprendizagem dum uso: o duplo anel diria o lento esforço de aprender, com a energia corporal que isso implica, e o anel de simulação diria justamente a poupança energética que sobreveio no uso tornado espontâneo e rotineiro. Ora, desde que haja aprendizagem – que é progressiva com a complexidade do sistema de mobilidade e respectivo sistema nervoso –, haverá este processo de primeiro duplo anel e depois anel de simulação, o que acrescenta um ponto importante à lição de AD: se é certo que o sistema de alimentação, o seu mundo mais antigo, é caracterizado pelo carácter automático dos movimentos, percebe-se agora que no outro sistema também se vem a conseguir como meta um equivalente automatismo, o da habilidade espontânea ganha por quem antes não sabia usar, algo que permanece um dos meus grandes espantos em biologia. A energia da emoção que ‘dá’ o esforço de aprender, retira-se, ‘(dis)simula-se’ na repetição mais ou menos automática conseguida: subindo um patamar para a disciplina seguinte, a antropologia, estes usos são agora o nível ‘mais antigo’ do funcionamento de qualquer unidade social, família ou emprego, todas supondo no seu funcionamento as rotinas dos seus habitantes. As invenções de novos usos repetem o duplo anel e a grande despesa energética dos inventores, que será muito mais mitigada junto dos que os aprenderão até chegarem à rotina. Ou seja, a homeostasia de Damásio verifica-se fecunda ao nível antropológico e até histórico, se pensarmos nas invenções de conceitos filosóficos ou nas descobertas científicas que se tornam depois ‘paradigmas normais’ rotineiros (Kuhn) após essas revoluções. Ou também os movimentos espirituais que queriam reformar as estruturas eclesiásticas, beneditinos, franciscanos, dominicanos e outros, e depois confissões protestantes, todos surgem com grande força espiritual contagiosa que ao cabo de poucas gerações seguintes se tornaram rotineiras, tal como aquilo que queriam reformar. Sendo assim algo de bastante geral como característica da homeostasia, é possível também estender o interesse deste mecanismo à evolução biológica, naquilo que diz respeito à esmagadora maioria dos exemplos de Darwin e da sua “luta pela existência”, que têm a ver justamente com o ‘mundo interior recente’ de AD e em que se pode pensar assim os efeitos da homeostasia: primeiro, ganham-se rotinas de comportamentos na luta pela existência na selva, segundo, essas rotinas vêm a ser corroboradas por mutações genéticas que as tornam hereditárias. Grande vantagem de Damásio dar primazia à homeostasia sobre os genes! tornando-se prigoginiano sem o saber.

A oposição interior / exterior a desconstruir
8. Peguemos então na questão filosófica mais difícil, a da “filosofia espontânea dos sábios”, título dum livro de Althusser que nunca li, mas restituo do meu ponto de vista: a filosofia recebida nos liceus em qualquer disciplina, científica ou humanística[10], que releva da tradição europeia e da oposição entre alma / corpo, alma-corpo / mundo, cérebro-mente / ambiente, em resumo, a oposição entre interior e exterior que vigora ainda em muitas ciências e até filosofias modernas[11]. Não se trata de inverter esta oposição mas de a desconstruir, inserindo ambos os termos na cena ecológica que os torna possíveis: esta cena, vulgo ‘ambiente’, é prévia a cada organismo que nasce e que dela tem que receber o alimento que o fará crescer autonomamente, auto-regulando essa alimentação (que aliás tem que procurar). Seja o exemplo da linguagem que, reduzida pela tradição filosófica europeia a ‘instrumento’ do pensamento, continua em AD a sê-lo, ao falar de “uma faixa verbal pessoal que traduz imagens que surgem do mundo exterior, mas também as imagens que chegam do mundo interior” (207), as quais imagens são “mapeadas” quer do mundo externo quer do mundo interno (130). Como se o cérebro tivesse a iniciativa de ‘mapear’ imagens recebidas e depois de as ‘traduzir’ em palavras. Basta pensar como uma criança de 3 ou 4 anos diz frases sintacticamente correctas, com preposições, morfologias verbais e nominais, e por aí fora, pensar como nós próprios formulamos as nossas frases de forma automática no que diz respeito à sintaxe e à morfologia, para perceber que não há ‘tradução’ nenhuma, assim como não houve aprendizagem expressa dessas regras linguísticas nas línguas maternas, ao contrário da aprendizagem escolar de línguas estrangeiras. Ora, este automatismo (homeostático) das frases é indiscutivelmente ‘externo’, na língua que já lá está quando nascemos, ela que é a mesma para todos os falantes da tribo, e nesse sentido não é “uma faixa verbal pessoal”, já que foi ‘recebida’, mas é-o quando se fala, quando dizemos o nosso próprio pensamento ‘pessoal’ com a língua da tribo. Ou seja, a oposição externo / interno é neutralizada pela fenómeno da aprendizagem, o que é ‘passivo’, pois que recebido, torna-se mecanismo ‘activo’ de fala. Tal como o ovo ou zigoto recebido dos progenitores – homeostasia do metabolismo e genes reguladores – que, também ‘passivo’, é deposto no útero feminino como ‘activo’: o que o ovo recebe é a própria potência da espécie, heteronomia, como condição da autonomia do novo indivíduo, a ser alimentado pelo sangue e depois pelo leite da mãe, a ter que aprender os usos da tribo, para que a sua homeostasia venha a jogar autonomamente. Do que se propôs no § anterior, deduz-se que a homeostasia damasiana inclui sistematicamente esta passivactividade como sua condição, esta marcha permanente com um pé fora que dá e um pé dentro que regula o que recebe a partir de regras que recebeu. Esta homeostasia, do sistema e do que de fora constantemente o alimenta, é mais difícil de pensar, como também é difícil ser malabarista. Difícil para os neurologistas pensarem como o cérebro joga com a linguagem[12] e com as suas emoções, como ela as exacerba como paixões de todas as artes e todos os excessos mas também as contém e racionaliza: sempre este jogo entre razão e paixão foi mal-estar insolúvel do pensamento filosófico e psicológico. Eis o que incita a aceitar a proposta de Damásio: a própria homeostasia resiste às nossas tentativas de pensá-la. 

O cérebro é um órgão simultaneamente biológico e social
9. O que haveria que corrigir sistematicamente na prosa de AD por razões duma fenomenologia da homeostasia? Muita coisa, sem dúvida, limito-me aqui à noção de ‘mapeamento’ ‘criado’ pelo cérebro, que tem o grave inconveniente de o separar do corpo e do mundo, noção essa a ser substituída pela de grafo de J.-P. Changeux, que implica a de ‘gravação’ como trabalho energético; tal como leio O homem neuronal, o que os ditos órgãos dos sentidos fazem é gravar[14] o que AD chama “cadeias de circuitos neuronais” (137), recebidas para actuarem (passivo->activo): pensar por exemplo faz-se em frases cujos nomes e verbos vêm relacionados com as coisas que dizem, que também foram aprendidas, a ver, mexer e nomear. Por certo, não é fácil saber como é que estas coisas se passam no cérebro, mas que pensar se faça por frases encadeadas sugere que sejam estas redes de cadeias de circuitos gravados que são activadas, uma notícia referente às experiências de J. Gallant[15] sugerindo que as palavras se encontram espalhadas por todo o córtice segundo paradigmas semânticos de usos quotidianos. Mas também o que se vê é gravado electroquimicamente em grafos, próximos provavelmente dos seus nomes, na sequência complexa da “projecção de padrões luminosos na retina” (210), expressão de AD que sublinha o que eu chamaria a ‘iniciativa da visibilidade’ do mundo externo, em detrimento da noção de ‘mapeamento’: esta atribui à criatividade do cérebro aquilo que ele começa por receber de forma repetida – uma criança pequena leva muito tempo a aprender a segurar num copo, dizia na Tv o neurologista Rui Costa – até que se grave e se torne cerebralmente activo, nesta matéria cinzenta de química e electricidade.

10. Eis o que resiste mais à nossa compreensão destas coisas neuronais, que se trate apenas de química e de electricidade. A electricidade industrial é de electrões de metais e outros bons condutores, a neuronal é de iões de sódio e potássio, prestando-se a trocas químicas nas sinapses[1]. Dada esta diferença, seja uma comparação. Ao telefone, reconhecemos a voz de quem nos fala, ela chegou transformada em corrente eléctrica e depois virou de novo voz humana que diz tal e tal coisa : não é óbvio, mas a frequência acústica duma voz e a sua frequência eléctrica telefónica são as mesmas. A ideia que me fica do que leio há muitos anos dos neurologistas é a de que é também assim, mutatis os mutandis que disse acima: a nossa mente é estruturalmente aberta ao que vê, ouve e mexe lá fora e que no sistema neuronal se transformou em electricidade química em suas operações cerebrais, estas sempre ligadas ao mundo que recebe de fora e agindo muscularmente (falando, fazendo) nele ; ela é a mente dum ser no mundo. É muito ‘materialista’, creio que é muito difícil de ‘aceitar’ isto, mas quando se aceita que nós não somos só ‘corpo’ mas seres no mundo, dando-se importância à gramática e à tabuada, é algo de fabuloso : tudo o que amamos e admiramos, todo o humanismo, tem o seu segredo na homeostasia deste neuronal corporal. Inacreditável ! É certo todavia que o mundo, que inclui as outras pessoas, é muito mais bonito do que as nossas vísceras, que felizmente nós não vemos.
11. Ora, segundo o Livro da consciência, é a rede de sinapses neuronais a que só o próprio tem acesso que é a mente. E provavelmente é também a memória, que no fundo não é senão o conjunto cerebral dos grafos de todo o nosso saber, de si e do seu mundo, que, enquanto conjunto, está ‘esquecido’, fora do circuito que está agindo em cada circunstância, mas sempre apto a vir à baila quando o que se está a jogar o solicita. A mente humana – aquele que age e fala em seu nome – parece ‘ser vista’ nas luzes das pantalhas laboratoriais dos neurologistas, acendendo-se e apagando-se interminavelmente: ela também é homeostática, oscilando entre as redes de sinapses ‘atentas’ que se vão sucedendo, oscilação maior quando a atenção cessa para uma rede agora descontraída, relaxada, poupança energética antes de voltar a nova concentração. Ou, ao fim do dia, oscilação da relaxação ao deixar-se adormecer, e outra ainda entre o sono pacífico e o paradoxal dos sonhos agitados. Estas oscilações homeostáticas trazem zonas de memória à consciência desperta, se for certo que esta é tudo o que fica ‘esquecido’ em cada momento para que atenção haja: à medida que vamos ouvindo ou lendo, falando ou escrevendo, fazemos associações do que temos em mente com outra coisa que está na memória e é chamada a jogo, muitas vezes razoavelmente mas de vez em quando da forma inesperada que se diz ‘inspiração’, onde porventura a noção damasiana de homeostasia ‘floresce’, como ele diz de maneira tão bonita, faz flores e florestas. O pensar é florestal, donde a noção de cultura que Damásio procura homeostasiar.

A evolução e o malabarista
12. Damásio propôs a noção de “imperativo homeostático” e chegou mesmo a chamar-lhe “jugo despótico” (260), o que me fez franzir os olhos de leitor, só alguns dias depois deste texto escrito me tendo apercebido da boa razão para um tal despotismo, que funciona nas considerações sobre a cultura humana como um motor. O interesse do tema é vasto, ele permite reavaliar a questão daquilo a que Darwin chamou selecção natural e que os biólogos actuais dizem ser um ‘mecanismo’, que obviamente não é, como o não é a selecção humana de criadores de gado e de agricultores; na Origem das espécies ela funciona apenas como lógica imanente dos fenómenos biológicos, Darwin chama-lhe “lei” ou “princípio” e claramente que no seu texto tem como função opor-se à doutrina tradicional da criação divina das espécies. E o problema é saber se há e o que é um tal “mecanismo” da evolução: a proposta de AD, que não fala assim, é a de que será a homeostasia e o seu imperativo. Ora, como tenho tendência a pensá-la como ‘equilíbrio’, e a não ter directamente em conta o imperativo, só a evocação de Prigogine me fez perceber, embora ele não dê importância à biologia além da química do metabolismo: a questão da alimentação é primordial todavia e, sem o negar, AD não lhe dá a devida conta em parte nenhuma do texto, certamente pela pecha do paradigma que privilegia o interior sobre o exterior, como se só o primeiro é que fosse ‘biologia’. Ora, nos animais a homeostasia é o equilíbrio oscilante do “meio interior” de Cl. Bernard, que alimenta a mini-homeostasia de cada célula do organismo, e é o teor em nutrientes do sangue que indica a necessidade dum interdito: ‘nós, as células todas, precisamos de ser alimentadas, senão morremos’. E o organismo tem que ir à busca de ervas ou presas para responder. Ora, desde que se saiba que os dois sistemas articulados pelo sistema neuronal, o da alimentação e o da mobilidade, o ‘antigo’ e o ‘recente’ de AD, são o desencadear e a resposta a esta necessidade estrutural, segundo a lei da selva, percebe-se que o tal mecanismo, que ajuda a perceber a célebre “luta pela existência” darwiniana, será justamente o do interdito da homeostasia em nome da alimentação e o da caça pela mobilidade, a conseguir essa alimentação. Caça e fuga de ser caçado, questão de vida ou de morte: se o vivo não come, morre. Porque a homeostasia, em terminologia prigoginiana, é produção de entropia, de uma estabilidade instável que, se falhar, vira entropia negativa, a de Clausius, degradação que é a morte do vivo. Que está aqui o segredo da evolução, da vida, basta pensar que a lei da selva que exige a constante alimentação determina a anatomia de todos os sistemas animais na sua imensa variedade, invertebrados e vertebrados. O título deste texto está justificado, Damásio colocou a homeostasia como segredo da vida.
13. Gostaria de também justificar a exergue do malabarista como figuração homeostática, algo que está já lançado na acrobacia das bolas no ar que lhe vão passando pelas mãos: o ponto é que as bolas não caiam no chão. Passa-se o mesmo com o sistema planetário ou com a lua, os planetas estão lançados em movimento num malabarismo que é das forças de gravidade deles e do sol, sem paragem possível em que se apoiassem. É o caso da homeostasia: não tem assento, joga-se no ar, numa estabilidade instável. A interpretação proposta no § 6 das duas figuras do primeiro livro de AD (fig. 7.6) permite compreender a figura dos dois anéis como a da aprendizagem dum uso mais ou menos complexo (guiar um carro, por exemplo), o duplo anel dizendo como o sistema corporal de mobilidade despende energia até o uso ser conseguido, o anel só mostrando como então entra o ‘malabarista’, que guia espontânea e habilidosamente, como se estivesse ‘acima do chão’, sem apoio. É o que acontece quando falamos (na escola com duplo anel, aprendendo saberes disciplinados) ou corremos ou fazemos as rotinas da casa ou do emprego. Mas assim como se supõe alimentação diária, também é certo que este fazer quotidiano entre espontâneo e atarefado obriga a repouso de várias horas nocturnas: a homeostasia precisa destes apoios para recomeçar na manhã seguinte. Animais como plantas à sua outra maneira, são formas – oh quão diversas! – de malabaristas. Bem haja, Damásio, pela sua bela lição.



[1] Expresso de 28/10/2017.
[2] Que é compatível com a teoria de M. Barbieri (1985) que no entanto coloca o papel de ribossomas replicadores na génese do metabolismo, ignorando todavia a homeostasia.
[3] Le hasard et la nécessité, p. 98.
[4] Horrivelmente traduzido em português por proprietário”, não sei como em inglês.
[5] Ao empirismo acrescenta-se uma psicologia das faculdades” que na filosofia do século XIX ainda era dita como faculdades da alma” (Lalande, Vocabulaire technique et critique da la philosophie).
[6] A pele provavelmente pertence aos dois sistemas, que o sistema neuronal articula. Há ainda o sistema sexual.
[7] Células dos ossos, da pele, etc., mas não, por razões essenciais de memória, os neurónios que somos enquanto ‘mente viva’ no mundo.
[8] Que se libertaram da ‘selvajaria’ da lei da selva com a invenção da agricultura e da criação de gado.
[9] Figura 7.6 (p. 202 da edição francesa).
[10] Que na ascendência universitária americana actual tende a ser uma vulgata do empirismo anglo-saxónico.
[11] A proposta que aqui se segue supõe a sua ultrapassagem, se dizer se pode, pelo motivo do ser no mundo e de doação da autonomia temporal por heteronomias que se dissimulam para deixar ser aquela (Heidegger), retomados mais radicalmente pelo trabalho de inscrição (rasto ou différance de Derrida). É o que me permite reler as grandes descobertas científicas com um olhar novo.
[12] Assim como a tabuada no mundo das quantidades, contas e medidas, a linguagem é para o cérebro o que a alavanca é para os músculos : aumenta-lhe as possibilidades. Por exemplo, a de contar um acontecimento passado longe ou antigamente, ou anticipá-lo por uma receita.
[14] Criando sinapses, segundo Kandel (2007), nos seus vermes de mar que aprendem a reagir a certos sinais.
[15] Público, 28 / 04 / 2016.
[1] O engano da gente de Sillicon Valley que trabalham com silício na Inteligência Artificial é julgarem que a electricidade de electrões que esta usa é o mesmo que a electricidade de iões das sinapses que trabalham com carbono. Um ião é, no caso, ou um átomo de sódio ou um átomo de potássio, os quais se podem transformar quimicamente um no outro trocando um electrão excedente : se a electricidade industrial, que Volta inventou ao inventar a pilha em 1800, fizesse o mesmo com o cobre, por exemplo, a corrente dava cabo dos cabos ou do hardware dum robot. Segundo as experiências de Kandler, em que aprender é criar sinapses, o que se passa no cérebro é que é o software, aquilo que é aprendido, que se torna hardware, impossível fisicamente para as máquinas de sílica. A dizer verdade, espanta-me que este engano exista, que o Vale do Silício não tenha dado pela coisa, eles a quem Inteligência Natural é que não falta.