domingo, 12 de novembro de 2017

As ciências contra as nossas evidências



1. Os nossos olhos são geocêntricos, vêem o sol de nascer e pôr-se rodear a terra, tal como o nosso comboio parado parece andar quando outro se desloca em sentido inverso. Foi por isso que a primeira grande demonstração da (astro)física europeia por Copérnico, Galileu, Kepler e Newton provocou tanto escândalo nesse tempo. O que é extraordinário é que todos nós que passámos pelo liceu aceitamos de boa mente essa contradição da ciência com as nossas evidências, destes nossos olhos que a terra há-de comer, como se dizia antes da moda das incinerações, embora as aventuras dos astronautas tenham vindo ajudar a essa aceitação. É certo que, como dizia Cornelius Castoriadis, a verdade geocêntrica faz parte intrínseca dessa demonstração, já que as medidas (de Tycho Brahe) com que esta foi calculada são geocêntricas, feitas a partir da terra segundo as evidências dos olhos dos astrónomos. Mas não me lembro, após 60 anos de leituras de autores muito variados, de ter visto nenhum filósofo espantar-se dessa contradição – salva a honra de Husserl cujo fundamento na percepção lhe exigia que “a terra não se move” – entre a primeira grande tese científica e as nossas evidências sensíveis (contestadas estas por cartesianos, é certo). Quem sabe como é que Newton conseguiu enfim demonstrar o heliocentrismo?[1] Não a esmagadora maioria das gentes, com certeza. Conclusão: a física não é democrática, há um acto de crença generalizada na adesão à ciência. O problema de Galileu com a Igreja, ainda que não fossem esses os conteúdos da disputa, atesta historicamente o início da transferência de crenças entre as duas instituições, consumada com a posterior generalização da escola e com a viagem de Armstrong.
2. O que é picante é que, no início do século XX, Einstein e os outros seguidores de Planck tenham desembocado estrondosamente na nova área das partículas, tanto os fotões da luz e a sua velocidade inultrapassável como os átomos e os seus constituintes, tais entes ínfimos tendo comportamentos que punham por sua vez em questão as evidências da física clássica de Newton. Ainda hoje o problema não está resolvido e andam em busca de unificar o que ficou quebrado por laboratórios irredutíveis.
3. Então não é que as ciências acima da matéria inerte e da sua química mineral, se encontram numa situação semelhante, sem saberem todavia que os seus paradigmas de busca integram evidências que os impedem da cientificidade postulada? Digamos que acontece nas ciências dos vivos, das sociedades humanas e das suas linguagens, cujos cientistas estarão presos muitas vezes ainda em epistemologias deterministas fora das quais não sabem o que seja ‘ciência’. Como as especializações se acentuaram muito, o apetite por questões epistemológicas ter-se-á esbatido e, se acaso esbarrassem com o título deste meu texto, achariam provavelmente que se trata duma evidência mais ou menos pueril.
4. Mas o que me interessa é a etapa seguinte a esse determinismo filosófico obsoleto, quando biólogos, neurologistas, cientistas sociais, filólogos ou semióticos compreendem que os entes dos seus domínios – vivos, unidades sociais e discursos ou textos – são constituídos como autónomos em cenas que os reproduzem e onde circulam e que, por via de consequência, as regras que vão descobrindo são justamente dadas como as dessa autonomia de reprodução. Marquei com itálicos as chaves desta concepção geral do saber sobre tudo o que releva da vida: são autónomos, sim, com regras que o permitem, mas essas regras são-lhes dadas por outros vivos, por geração e reprodução temporal, regras (da espécie, da tribo, da língua e do paradigma) de heteronomia, a qual permite entes individualmente distintos pois que os deixa ser em sua autonomia, heteronomia dissimulada, retirada (Heidegger). O motivo derridiano do rasto vivo (trace) é a descoberta filosófica desta regra geral do ciclo “vida morte”.
5. É quando se chega aqui que se entende que os cientistas destas vastas áreas têm, como todos nós, uma evidência que lhes oculta este processo de doação retirado, dissimulado, das regras autonómicas, a evidência da sua interioridade como ponto de partida do conhecimento, evidência que o cogito cartesiano reforçou: donde o primado do ‘interior’ (substancial) sobre o que o gera como ‘ambiente’, do corpo vivo, do sujeito, da população, do falante ou escrevente em suas intenções.
6. Na biologia molecular, são os genes que ganharam a primazia, como é claro na afirmação do biólogo chileno Francisco Varela, que esteve em voga nos anos 80 e 90, que defende o primado do indivíduo sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que decorrem delas, aparecem como fenómenos secundários, subordinados à existência e ao funcionamento autopoiéticos destes sistemas”[2]. É a noção de autopoiesis que é esclarecedora, um sistema vivo auto-reproduz-se sem sequer a alimentação ser tida em conta: a reprodução e a evolução são secundárias, como se a determinação genética viesse substituir o criador de outrora pelo acaso das mutações! Em termos de lógica, é tanto mais inacreditável quando há o espantoso livro de Darwin, que mostra como as anatomias foram sendo ‘inventadas’ pela evolução seleccionadora das anatomias que conseguem subsistir à cruel “guerra da natureza”, à lei da selva. Entre a galinha e o ovo, não há escolha possível, ambos são estritamente necessários ao longo das gerações e das suas evoluções, isto é provieram da cena ecológica que dá galinhas que põem ovos donde nascem galinhas que põem ovos porque também dá outros vivos como alimentação possível. A cena é prioritária, já lá está sempre já com a sua lei resultante do ciclo do carbono a partir da fotossíntese, mas ela não existe sem galinhas e ovos, tal com o campo do sistema planetário não existe sem planetas: a prioridade é epistemológica, não cronológica. Ou seja, não se trata de inverter a relação dentro / fora : se a lei da selva determina a imensa variedade das espécies zoológicas e botânicas, só o faz através da coordenação genética da anatomia de cada indivíduo na sua luta pela sobrevivência que Darwin tão bem compreendeu.
7. Na neurologia, regozijo-me com a evolução de Damásio cujo novo livro A estranha ordem das coisas estou ansioso por ler, já que anuncia que, após ter vinculado a mente aos neurónios em O livro da consciência (2010), virou biólogo que se interessa especialmente pelo sistema cerebral e põe este na dependência da homeostasia do sangue. Mas parece continuar a ignorar o papel da aprendizagem dos usos da tribo, incluindo a linguagem, sem a qual nenhum cérebro escapa ao pior dos autismos: também aqui a tribo já lá é condição estrutural, como se depreende facilmente ao ver como somos indígenas tão diferentes, consoantes as vozes com as nossas tribos. Mas voltarei a Damásio, à maneira como ele define ‘sentimentos’, com grande esperança de compreender bastante melhor toda esta espantosa economia anatómica.
8. No que diz respeito às ciências da linguagem, a linguística saussuriana deu o grande volte face sem o qual Derrida teria sido impossível, ele que permitiu que a minha tese de doutoramento tivesse resolvido a contradição estruturalista entre língua e fala, que não vão uma sem a outra, esta multiplicada pelos inúmeros indivíduos falantes, aquela sendo a mesma em todos eles sem ser nada sem eles, dando-lhes as suas falas vindas de fora, de outros falantes, sendo o sistema paradigmático das regras que permitem o entendimento entre os falantes dessa língua. Esta linguística respeita a diferença entre as línguas, enquanto que a gramática gerativa de Noam Chonsky (excelente intelectual!) coloca uma semântica lógica no inatismo dos cérebros cartesianos e dela faz decorrer árvores sintácticas prévias às diferenças fonológicas e morfológicas de maneira a serem idênticas para todas as línguas, que obviamente ‘desaparecem’ na ausência da fonologia e da morfologia, sem lugar que não seja secundário para as tribos e para as aprendizagens, essas coisas vindas de fora que nenhum cartesiano pode admitir. Contra esta maneira de ignorar as tribos e o seu papel na aprendizagem da língua, basta reparar nos sotaques regionais alentejanos, minhotos, alfacinhas ou açorianos. Não se trata duma Linguística, duma ciência das línguas em seus usos específicos, mas duma gramática geral, que segue uma das duas grandes tradições greco-europeias, a duma lógica sobrepondo-se à linguagem, uma técnica de tradução para diferentes línguas a partir do inglês e da sua morfologia quase zero. Como é que as traduções automáticas da Google se fazem será um ponto em seu favor, mas por certo que supõem trabalhos linguísticox empíricos infindos de adaptação de detalhes.
9. Ferdinand de Saussure, Louis Hjelmslev, Émile Benveniste, André Martinet, Maurice Gros e outros fizeram o trabalho necessário em Linguística, que não acompanhei nas últimas décadas, creio que é no campo das semióticas textuais e das exegeses literárias que há questões interessantes, embora também aí não possa falar senão da exegese bíblica. De qualquer forma, limitar-me-ei ao aspecto que aqui interessa, que tem a ver com a definição de texto e de leitura, lembrando o papel nesta dos dicionários, fundamentais nomeadamente quando se trata de textos antigos e de línguas estranhas, bem como da necessidade do conhecimento de antropologias de usos e costumes bem diferentes dos nossos, coisas em que todas as cautelas são poucas. Há que ganhar antes de mais conhecimentos de historiador sobre a época da escrita e de gramática da língua do texto em questão, um bom dicionário sempre à mão. O que sendo necessário não é suficiente, justamente por causa das nossas evidências em relação à leitura, em que pensamos o texto como vindo das ‘intenções’ de alguém e ambicionamos como meta máxima poder chegar a tais intenções preciosas, reveladoras da interioridade do escritor ou pensador. É frequente dar uma importância desmedida a cartas ou diários íntimos, ou inéditos desdenhados pelo próprio, como podendo ajudar a decifrar a ‘verdade’ dos textos publicados, o verdadeiro pensamento ou mensagem do seu autor. Depois há questão das palavras difíceis ou raras, um hapax[3] a desvendar sagazmente, a discutir com outros exegetas. Os dicionários não propõem um único significado, multiplicam as polissemias possíveis, consoante os contextos. Ora, a regra de ouro aqui é que é o próprio texto o primeiro contexto a privilegiar, devendo-se construir, à maneira de Barthes ou de Lévi-Strauss, este para corpus de mitos vizinhos, aquele para esse mesmo texto que se lê, construir os códigos de significações. Curiosamente, nos dois textos escritos em grego que analisei à maneira do S/Z de Barthes, o evangelho de Marcos e a Poética de Aristóteles, dei-me conta de que as versões modernas traduziam as várias ocorrências do termo logos por termos diferentes e que foi o cuidado de as correlacionar entre elas e respectivos contextos próximos uma das traves mestras das minhas duas leituras desconstrutivas, se posso dizer, a mais de dez anos de distância uma da outra. Seja o caso de Marcos: o logos é a própria narrativa da prática de Jesus, do que ele faz e lhe acontece, o que por exemplo permite interpretar as parábolas da semente e do semeador (cap. 4) como dizendo respeito a ele e não à ‘palavra de Deus’ em geral, como seria o caso em João 1,1[4]. O que está em jogo nesta questão é que nós, leitores modernos, crentes ou não, sobrevalorizamos o pensamento (do sujeito, da alma em Descartes) sobre a linguagem, que varia com os povos e suas línguas. Os códigos são tecidos da língua que o texto – o têxtil – teceu para si, podendo o autor dar-se conta disso ou não. Não é preciso que Freud nos tenha ensinado que não sabemos coisas importantes de nós, que por vezes surpreendem o sujeito em psicanálise, com o que ele é levado a dizer sem querer e sem saber; basta pensarmos na rapidez com que falamos ou escrevemos para perceber que uma boa parte da escrita faz-se automaticamente – tudo o que são elementos de ligação sintáctica, os sincategoremas da escolástica, preposições, conjunções, artigos, possessivos, e a morfologia dos verbos e nomes, a fonologia – mas mesmo termos significantes verbos e advérbios, substantivos e adjectivos, vêem muitas vezes como que já ligados entre si sem quase atenção nossa, mais virada para o que virá a seguir e – sucede como boa ventura! – este ‘que vem a seguir’ surpreende-nos, não estávamos à espera, não tínhamos pensado assim. Ora bem, é este tecer-se do texto em sua quase autonomia (as regras jogam sem darmos por elas) que escapa às ‘intenções’ do que o escreve e o leva por vezes inadvertidamente a alusões, confissões ou contradições que não se quereriam escrever. Ou quando falamos e a língua nos foge para a verdade, como se diz do que se não queria dizer. O texto pensa mais do que o próprio pensador, sem que haja que opor os dois, é claro: nesse pensar mais do texto quem pensa é a língua e a cultura da tribo, doutros textos lidos ou ouvidos. Em sociedades que nos são culturalmente estranhas, este tipo de leitura de fenomenologia textual permite aceder a conexões que não são nossas. Os textos bíblicos foram cobertos pela filosofia grega pelo menos a partir de Orígenes nos inícios do século III, filosofia essa que reduziu deliberadamente toda a antropologia hebraica, considerada “bárbara” por um platónico como Orígenes teorizando sentidos morais e espirituais porque os literais, históricos, não eram dignos de Deus (ou de Platão)[5]. Foi esta tendência da teologia platónica de Alexandria que dominou a época helenística do cristianismo, nomeadamente se lhe opondo a escola de Antioquia (na Síria) de Teodoro de Mapsuéstia, mais perto do mundo bíblico e das suas categorias históricas literais[6].
10. O cap. 4 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, consagrado às ciências das sociedades (antropologia, história e sociologia), definia sociedade como “a assemblagem de unidades locais de habitação, o sistema de usos que uma população transmite de antepassados em descendentes na ‘terra’ que os deu”. Esta definição pretende-se válida para toda e qualquer sociedade, que se diferencia das outras pelos respectivos sistemas de usos e pelo território, contando com a confissão de dois sociólogos franceses que admitiam não haver definições gerais que abarcassem todas as sociedades humanas, sem que eu possa aqui garantir como é que nos inumeráveis textos de especialistas, incluindo as ciências ‘sociais’ (que só abarcam uma zona de estruturas, o que aliás significa que ‘sociologia’ como ciência geral das sociedades contemporâneas não existe), é hoje tratada a questão da definição implícita de sociedade. Vou assim supor alegremente que ela inclui população, em geral vista como conjunto de indivíduos, e território[7]. Este é um conceito geográfico ou topográfico, dele mesmo despido de população, o que contrasta com o nosso termo ‘terra’ que inclui uma dimensão ecológica essencial: há que haver espécies zoológicas e botânicas que dêem possibilidades de alimentação, assim como fontes de água e qualidade respirável de ar, donde que seja a terra (como nós dizemos ‘a minha terra é...’) que dê a cena ecológica de qualquer sociedade, de que a população faz parte. Isso inclui algumas condições biológicas: a) a de ter que se alimentar quotidianamente, b) a de ter de garantir segurança diurna e nocturna de todos, mormente crianças e mães, c) a que é correlativa da descoberta essencial de Lévi-Strauss (interdito de incesto e consequente exogamia na lógica do parentesco), a necessidade de controlar o excesso de energia e desejo sexual numa espécie que não conhece a restrição deste a períodos de cio das suas fêmeas. Ora bem, e só ao escrever desta o percebi, o motivo de ‘unidade local de habitação’ como ‘sistema de usos’, que faz da população gente organizada e não uma mera ‘multidão’, surge como resposta a estas condições ecológico-biológicas, tanto os usos como as unidades locais. Mas esses usos excedem também tais condições, já que incluem a linguagem, mitos e rituais sobre as origens ancestrais, bem como ornamentações e festas, além de dispositivos, digamos políticos, de contenção de rivalidades.
11. O motivo de usos que se aprendem, a que todas as sociedades dão importância crucial, joga pelo conservantismo estrutural (como as células e as espécies em biologia): o movimento social consiste na reprodução das estruturas recebidas dos antepassados. Desde o início tribal se pode encontrar o que perdurará: Freud tendo mostrado como somos estruturados a partir desse interdito e Elias como as relações entre homens e mulheres de casais diferentes nas cortes monárquicas jogaram para afinar as etiquetas dos costumes entre ambos os sexos quando não casados, todas as unidades locais que vão além do familiar – escolas e empresas – terão que interditar as relações sexuais entre homens e mulheres no seu seio (como as questões do assédio hoje ilustram), a libertação sexual dos anos 60 e 70 sendo enfim como que o ‘acabamento’ desse processo. Por outro lado, a diferença de tamanho e de estrutura muscular entre machos e fêmeas herdadas da evolução e os cuidados maternos continuados em partos sucessivos, tanto justificam a guerra entre machos que herdaram agressividade e astúcia, como o machismo que exclui as mulheres das funções ‘dominantes’.
12. Mas o motivo de usos pede um motivo complementar que dê conta das transformações históricas (“a história é a ciência das mudanças sociais”, disse algures Marc Bloch), o de ‘invenção’ de usos ou costumes: serão sobretudo invenções técnicas e escrita diferentes que resultam de novas gerações. A invenção da agricultura foi decisiva para os humanos se subtraírem à lei da selva a que estavam sujeitos como as outras espécies, tendo tornado possível a libertação de gente para invenções técnicas que deram trabalhos especializados em cidades e um mercado de trocas correlativo. Entre outros produtos de luxo, o fabrico de armas tornou possível a estrutura de castas sociais que ilustra a interpretação dos mitos indo-europeus de Dumézil: os camponeses, os guerreiros e os dedicados à soberania e aos mitos da fecundidade, com uma nova abrangência da lei da guerra que tornou possível grandes impérios. Da terceira casta resultou uma outra invenção, a das técnicas de escrita que, além da Índia que ignoro, resultou em duas grandes correntes de dois milénios e meio de história: por um lado, a escrita chinesa dos mandarins garantiu um império inédito que durou mais de 2000 anos, por outro, a escrita alfabética permitiu, com a escola, a invenção da definição filosófica, da physica aristotélica enquanto filosofia com ciências, da lógica e da teoria geométrica de Euclides, assim como do direito romano, o que veio a fecundar a futura Europa com a sua conjunção com técnicas de medida em laboratórios, depois as máquinas e a electricidade, modernidade que ora se globalizou na aliança do mercado com a escola após dois milénios de marginalidade de ambos. Se o § 10 introduziu a ecologia na definição de sociedade, vale agora lembrar que é a aliança entre técnica e conhecimento no seio do laboratório físico e químico que explica o terrível problema da poluição actual, que consiste no que os limites do laboratório (a sua positividade) não permitem saber: por exemplo que os automóveis eléctricos vão resolver, a respiração humana dos gases dum carro não fazer parte dos testes deste.
13. Merece perceber o papel do cristianismo neste processo ocidental. A primeira consideração a fazer é que o cristianismo grego e depois eslavo, chamado ortodoxo, não teve influência nele, portanto o ‘motor’ do processo não foi somente o cristianismo. Em seguida, ele veio dum processo hebraico – ‘bárbaro’ para os Gregos – que implicou uma endogamia, como aliás estes também: ou seja, nem a escrita profética nem a filosófica se destinavam a sair para fora das respectivas sociedades de preferência endogâmica, que hoje diríamos ‘racista’ a maneira como repudiavam os gentios e os bárbaros respectivamente; o que significa que é no império romano, expansivo e integrador de bárbaros, que se deve procurar o segredo desse processo. Mas o cristianismo como movimento espiritual tinha na sua origem judaica endogâmica uma limitação interna: ele visava o fim dos tempos e como isso não sucedeu, a sua fonte judaica secou (e que mal tratada foi ao longo desta história!), tudo teria terminado aí se um tal Paulo de Tarso não tivesse dado a volta para os gentios detestados, o que levou o movimento para o helenismo, agora já com uma população de não judeus. Ora, a vitória da Macedónia de Alexandre sobre as cidades gregas teve um efeito parecido de expulsão da cultura ateniense para o seio do mundo que os Romanos estavam a conquistar, como ilustra a construção da cidade de Alexandria, onde os cristãos de Paulo se encontraram com os filósofos platónicos, os quais tomaram conta do respectivo discurso, duma maneira que a Bíblia deles era incapaz[8] e que os imperadores do século IV, na peugada de Constantino, apadrinharam para dar um ‘suplemento de alma’ ao império que começava a agonizar, nas suas fronteiras militares como nos costumes das principais cidades. O que aconteceu então foi que esse lento processo de dois séculos de apagamento do império e de entrada de ‘bárbaros’ que foram ‘cristianizados’ (expansão tipo ‘imperial romana’ do que com Paulo fora ‘espiritual’) permitiu que, de movimento espiritual o cristianismo se transformasse fortemente em religião da Cristandade de muitos costumes e línguas diferentes durante longos séculos de sociedades praticamente rurais, em que os seus mosteiros guardaram os textos da civilização que se apagara. Ora bem, quando novas cidades e mercados começaram a desenvolver-se nos séculos XII e XIII, este cristianismo gerou uma escola inédita, as universidades, que ofereceram às invenções que estavam para vir – a impressão de livros, as viagens oceânicas e a cartografia, um humanismo de perspectiva e maquinarias variadas – uma cultura livresca como nenhuma sociedade histórica, que se saiba, tivera até então no seu berço. A sequência do processo, a partir do século XVIII e das suas Luzes enciclopédicas, veio a deitar fora como ‘casca’ a religião cristã que lhe trouxera justamente o tal ‘suplemento de alma’ como ‘suplemento de cultura’. Nas margens deste processo, os sopros espirituais dos inúmeros movimentos que foram reformulando a leitura do evangelho no contexto dos anseios e reclamações das suas épocas, inquietando as estruturas eclesiásticas e os poderes instalados até que, com Lutero, Calvino e outros, o contexto de ruptura humanista e a expansão de bíblias impressas em línguas vernáculas colocadas nas mãos de burgueses letrados favoreceram o desencadeamento da Reforma: assim se criaram dinâmicas de mudanças variadas, éticas mas também de ordem civil, donde se desenvolveu a modernidade capitalista e industrial.
14. O cristianismo foi o que, do seu próprio lavrar entre filosofia, platónica primeiro e aristotélica depois, e narrativas bíblicas lidas com olhos gregos primeiro e latinos depois, ofereceu à Europa por vir o material de que ela se fez. Deslindar essa mistura, a que se acrescente o direito romano, é tarefa quase impossível, tender-se-á sempre a puxar para as suas especialidades e preferências. Mas há um motivo forte no seu seio, o da alma imortal que Platão herdou e tematizou no Fédon como convindo a Sócrates e aos sábios virtuosos que são os filósofos, que o cristianismo acolheu por sua vez – “platonismo dos pobres”, chamou-lhe Nietzsche – e generalizou a toda a minha gente, como motor dinâmico de alcance celeste que transfigurava muita vida de quotidiano muito duro. Foi esse dom à Europa que se manifestou na modernidade como individualismo e desejo de liberdade que não parece ter comparação nas outras grandes civilizações. Ora bem, é justamente esta tradição da alma latina, que depois virou sujeito e consciência, o que nos fornece as nossas evidências – de dentro [e-] [-vidência] – sobre nós e sobre os outros, é ela que dá as intuições aos cientistas que têm a ver com vivos (e mesmo com movimentos físicos em seus campos). Quando se pretende que os problemas actuais são da ordem das ‘mentalidades’, que se resolvem com ‘educação’, pensa-se na prioridade do ‘dentro’, mas em vão. Só que pensar estas coisas tão importantes é tremendamente difícil. “Estranha ordem das coisas”, espanta-se Damásio. A ele vamos de seguida.


[1] Tem um texto neste blogue que conta como foi.
[2] Autonomie et connaissance. Essai sur le vivant, 1989, Seuil, p. 71, sublinhados meus.
[3] Palavra que só se encontra uma vez no corpus dum autor.
[4] Mas mesmo nesse caso, não é impossível que haja uma correlação quando se trata de dizer que “o Logos se fez carne”, sabendo-se que esse texto inicial foi um acrescento e que o termo não volta a aparecer.
[5] Excepto num ponto em que, contra si mesmo, interpretou em sentido literal uma estranhíssima palavra do texto de Mateus, em que Jesus diz que há trtês tipos de eunucos, uns de nascença, outros por acção dos homens “e existem eunucos que se castraram a si próprios por causa do reino dos céus” (19,12, trad. F. Lourenço): literalmente, o jovem Orígenes castrou-se.
[6] Bastará este apontamento para perceber como o projecto da tradução duma Bíblia dita grega de F. Lourenço tem riscos enormes, por justamente ignorar os alçapões antropológicos do mundo bíblico criados pela língua grega! Talvez mais do que nas traduções das narrativas, sobretudo nas notas que interpretam o que traduziu
[7] J. L. Vullierme, Le concept de système politique, P. U. F., 1988, um livro aconselhado vivamente por Edgar Morin, recusa, com M. Mauss e contra M. Weber, que o território faça parte essencial da sociedade, argumentando com as sociedades fundamentalmente dispersas e os nómadas (p. 134).
[8] Ficou a dinamizar espiritualmente o culto das assembleias, enquanto o latim foi compreendido pelo povo.

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