1. Trata-se duma breve adenda ao
último texto sobre a des-substancialização e talvez aos três sobre a questão do
conhecimento de janeiro e fevereiro 2017. O conhecimento segundo a minha
leitura do “não há fora do texto” de Derrida ficou mal explicado: trata-se duma
posição que integra as duas posições da tradição filosófica sobre o conhecimento,
entre as quais quase sempre oscilou. Dum lado, a tradição dita ‘idealista’, iniciada
com Platão, herdeiro de Parménides, em que o conhecimento é algo que releva da alma e visa as essências eternas definidas de que as
coisas terrenas são cópias frustres. No Crátilo, após uma longa dissertação sobre etimologias
gregas das palavras mais importantes para o filósofo, Platão exclui as palavras
como incapazes do conhecimento, condição para poder colocar as suas Formas
ideais. O outro lado, o dito ‘realismo’, foi o resultado da critica desta
posição por Aristóteles (anunciada já no Parménides) que colocou o conhecimento na sequência das
sensações corporais e efectuou o primeiro ‘retorno às coisas’, trazendo-lhes as
Formas ideais como ousia
segunda, categoria do discurso que coincide em cada coisa com a ousia primeira que ela é sob os seus acidentes
particulares. As coisas são pois realmente conhecidas pelas respectivas
definições, mas apenas no plano inteligível da argumentação gnosiológica,
enquanto que as sensações só conhecem os seus acidentes, nas narrativas e discursos
quotidianos.
2. No que diz respeito à tradição
europeia a partir de Galileu e Descartes, antes da separação kantiana entre
filosofia e ciências, pode-se dizer que o problema do conhecimento foi sempre
colocado entre a inteligência no interior da alma e depois do sujeito, e as coisas sensíveis, exteriores, os empiristas partindo destas para aquela ao
invés dos idealistas que ligavam as ideias a Deus. Foi o que, depois de Kant e
Hegel, quebrou o passo da intencionalidade de Husserl e depois o do Dasein, ser no mundo, de Heidegger, passos esses
decisivos na ultra-passagem da separação inteligência / coisas, nomeadamente
com a importância que o II Heidegger dedicou ao peso histórico das palavras, na
sua interrogação das etimologias gregas e alemãs, ficando apenas eventualmente
a questão do ‘pensamento’ a impedi-lo de chegar às ‘coisas’. Era a lacuna das
palavras na problemática europeia do conhecimento que tornava este insolúvel,
oscilando os pensadores entre um subjectivismo solipsista (devido às manifestas
diferenças individuais) ou um realismo objectivista e nos cientistas
determinista.
3. Uma excepção importante foi a do conceito de ideologia do marxismo, todavia não suficientemente
trabalhado por Marx, os seus problemas assentando na contradição económica e
histórica essencial da infra-estrutura, como se deu como sintoma o debate soviético
em torno da linguística, que Estaline decidiu com a famosa tese de que “a língua
não pertence à super-estrutura”, tese essa que. dando a importância devida à
linguagem, permite uma elaboração do conhecimento mais adequada ao materialismo
histórico, julgo eu (formulei esta hipótese numa tentativa de elaboração duma
“teoria formal do conceito de modo de produção”, primeira parte da minha leitura
materialista do evangelho de Marcos, em 1974).
4. Voltando à corrente
fenomenológica, formulando em termos clássicos a solução de Derrida “não há
fora do texto”, ela consistiu justamente em chegar ao conhecimento das coisas
na sua singularidade jogando com as palavras que as nomeiam: por um lado, o seu
lado ‘realista’, o qual, não separando sensações corporais e inteligência subjectiva
sem voz, permite, por exemplo maior, conhecer as coisas que se utilizam rotineiramente,
fazendo a unidade com elas dum ciclista com a sua bicicleta, unidade do dizer
com as mesmas palavras que são de todos com o fazer os mesmos usos com as
mesmas coisas (argumento contra todo e qualquer cepticismo solipsista); por
outro lado, o seu lado ‘diferencialista’ dos sujeitos, palavras e usos sendo
aprendidos de forma sempre singular, os textos que são ditos ou pensados por
cada qual têm sempre essa singularidade enigmática, até para o próprio em
certas vertigens da vida, a singularidade do jogo de diferenças entre as
palavras, como entre os jeitos de fazer. Com efeito, as diferenças que tecem os
textos – fios dos têxteis – permitem matizar indefinidamente o que se pensa e
sente, desde a musicalidade das entoações às figuras literárias que enxameiam
os próprios dizeres quotidianos. Derrida ‘realiza’ assim o ‘idealismo’, se se
pode dizer, assumindo o antagonismo estrutural do pensamento greco-europeu.
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