quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Linguagem e conhecimento




1. Trata-se duma breve adenda ao último texto sobre a des-substancialização e talvez aos três sobre a questão do conhecimento de janeiro e fevereiro 2017. O conhecimento segundo a minha leitura do “não há fora do texto” de Derrida ficou mal explicado: trata-se duma posição que integra as duas posições da tradição filosófica sobre o conhecimento, entre as quais quase sempre oscilou. Dum lado, a tradição dita ‘idealista’, iniciada com Platão, herdeiro de Parménides, em que o conhecimento é algo que releva da alma e visa as essências eternas definidas de que as coisas terrenas são cópias frustres. No Crátilo, após uma longa dissertação sobre etimologias gregas das palavras mais importantes para o filósofo, Platão exclui as palavras como incapazes do conhecimento, condição para poder colocar as suas Formas ideais. O outro lado, o dito ‘realismo’, foi o resultado da critica desta posição por Aristóteles (anunciada já no Parménides) que colocou o conhecimento na sequência das sensações corporais e efectuou o primeiro ‘retorno às coisas’, trazendo-lhes as Formas ideais como ousia segunda, categoria do discurso que coincide em cada coisa com a ousia primeira que ela é sob os seus acidentes particulares. As coisas são pois realmente conhecidas pelas respectivas definições, mas apenas no plano inteligível da argumentação gnosiológica, enquanto que as sensações só conhecem os seus acidentes, nas narrativas e discursos quotidianos.
2. No que diz respeito à tradição europeia a partir de Galileu e Descartes, antes da separação kantiana entre filosofia e ciências, pode-se dizer que o problema do conhecimento foi sempre colocado entre a inteligência no interior da alma e depois do sujeito, e as coisas sensíveis, exteriores, os empiristas partindo destas para aquela ao invés dos idealistas que ligavam as ideias a Deus. Foi o que, depois de Kant e Hegel, quebrou o passo da intencionalidade de Husserl e depois o do Dasein, ser no mundo, de Heidegger, passos esses decisivos na ultra-passagem da separação inteligência / coisas, nomeadamente com a importância que o II Heidegger dedicou ao peso histórico das palavras, na sua interrogação das etimologias gregas e alemãs, ficando apenas eventualmente a questão do ‘pensamento’ a impedi-lo de chegar às ‘coisas’. Era a lacuna das palavras na problemática europeia do conhecimento que tornava este insolúvel, oscilando os pensadores entre um subjectivismo solipsista (devido às manifestas diferenças individuais) ou um realismo objectivista e nos cientistas determinista.
3. Uma excepção importante foi a do conceito de ideologia do marxismo, todavia não suficientemente trabalhado por Marx, os seus problemas assentando na contradição económica e histórica essencial da infra-estrutura, como se deu como sintoma o debate soviético em torno da linguística, que Estaline decidiu com a famosa tese de que “a língua não pertence à super-estrutura”, tese essa que. dando a importância devida à linguagem, permite uma elaboração do conhecimento mais adequada ao materialismo histórico, julgo eu (formulei esta hipótese numa tentativa de elaboração duma “teoria formal do conceito de modo de produção”, primeira parte da minha leitura materialista do evangelho de Marcos, em 1974).
4. Voltando à corrente fenomenológica, formulando em termos clássicos a solução de Derrida “não há fora do texto”, ela consistiu justamente em chegar ao conhecimento das coisas na sua singularidade jogando com as palavras que as nomeiam: por um lado, o seu lado ‘realista’, o qual, não separando sensações corporais e inteligência subjectiva sem voz, permite, por exemplo maior, conhecer as coisas que se utilizam rotineiramente, fazendo a unidade com elas dum ciclista com a sua bicicleta, unidade do dizer com as mesmas palavras que são de todos com o fazer os mesmos usos com as mesmas coisas (argumento contra todo e qualquer cepticismo solipsista); por outro lado, o seu lado ‘diferencialista’ dos sujeitos, palavras e usos sendo aprendidos de forma sempre singular, os textos que são ditos ou pensados por cada qual têm sempre essa singularidade enigmática, até para o próprio em certas vertigens da vida, a singularidade do jogo de diferenças entre as palavras, como entre os jeitos de fazer. Com efeito, as diferenças que tecem os textos – fios dos têxteis – permitem matizar indefinidamente o que se pensa e sente, desde a musicalidade das entoações às figuras literárias que enxameiam os próprios dizeres quotidianos. Derrida ‘realiza’ assim o ‘idealismo’, se se pode dizer, assumindo o antagonismo estrutural do pensamento greco-europeu. 

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