domingo, 15 de outubro de 2017

Ética espiritual : o que significa ‘amar o próximo como a si mesmo’ ?



1. Que sentido pode receber a palavra ‘espiritual’ na fenomenologia aqui praticada? Não é ‘religioso’, como foi argumentado num texto deste blogue (26/9/2013), nem sequer necessita de nenhuma divindade. Opõe-se a ‘material’ no sentido corrente do ‘materialismo’? também não, em rigor, se verificarmos que tudo é material, por certo, mas não há nada de ‘espiritual’ que não tenha algo a ver com algo de ‘material’. Além dos fenómenos? Na minha maneira de seguir, tanto quanto sei e sou capaz, a gramatologia de Derrida, o que estrutura cada humano são os usos que vai aprendendo, entre os quais os costumes, tal como as regras morais, desde o interdito do incesto até às ‘finalidades’ que levem a romper com elas e com o próprio paradigma tribal (familiar e escolar: estrutura de base), romper para a aventura: ora, são tudo coisas que implicam a linguagem. Esta foi analisada por Derrida a partir da redução fenomenológica (de Husserl) sobreposta à diferença linguística entre os sons e os significantes, estes sendo diferenças entre aqueles. Se já o som pode dificilmente ser dito ‘material’, já que se trata de oscilações atmosféricas com frequências repetidas, ainda mais a diferença entre sons, que não é um som (como a diferença ente duas cores não é uma cor) nem é nada de substancial (que o som como fenómeno ainda seja), nem é sequer ‘um sentido’ (uma ideia, no exemplo europeu) mas uma rede indefinida de sentidos: não é nada que possa ser dito ‘material’ mas também não pode ser ‘oposto’ a ‘material’ (como querem os espiritualismos e os materialismos que se opõem àqueles). Aliás, a palavra latina ‘spiritus’, tal como a grega ‘pneuma’ e a hebraica ‘ruah’, que se costumam traduzir por ‘espírito’, significam sopro, como se, ao falar-se, se soprasse sobre o outro, se soprassem sons com sentido de coisas que ele entende na mesma língua, coisas relativas ao mundo de ambos, aos fenómenos, este ‘entender’ tanto podendo ser aceitar como rejeitar após o tempo da fala, a qual deixou um rasto estruturante do que se ouviu e aprendeu (ainda que esquecido rapidamente a maior parte das vezes). Este rasto (diferença não substancial entre substanciais) efectua a aprendizagem, tanto das palavras como das coisas e gentes do mundo que elas dizem.
2. Levinas contrapôs a este rasto da aprendizagem, que se pode dizer ‘sincrónico’, simultâneo ao que fala e ao que ouve, ao que ensina e ao que aprende, um rasto diacrónico que lhe permite pensar a santidade, sendo no santo (o que ama o próximo como a si mesmos) o rasto dum Deus “sem existência nem essência” que o envia ao Pobre como ‘refém’ dele, para que o ‘substitua’ naquilo em que ele seja impotente. Com todo o respeito pela figura de Levinas e pela sua própria santidade, que quem o conheceu atesta, nem ‘refém’ nem ‘substituição’ – hipérbole levinassiana – me parecem palavras éticas. Guardo dele, chamando-lhe ‘espiritual’, este motivo de rasto diacrónico, ética não aprendida, além da moral tribal, à maneira dos talentos tão precoces que parecem inatos em muitos artistas ou outros grandes apaixonados. O espiritual terá algo de arranque ao paradigma da tribo, de aventura além das finalidades de vida que ela promove educando.
3. A injunção “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, no livro bíblico do Levítico (19, 18), recomenda uma relação de amor pelas famílias vizinhas, é uma injunção ética de ordem social, que pretende criar um clima de paz social dentro duma aldeia ou dum bairro. Mas que não se trate apenas duma relação como a que se tem com os membros da sua própria família, porventura lembrando que a primeira parelha familiar de irmãos foi a de Caím e Abel, ciente pois que adentro da família amor e rivalidade vão a par com frequência, mas “como a ti mesmo”, introduz uma espécie de introspecção ética – como é que te amas a ti mesmo? – e um correlativo ‘sai de ti mesmo’ que deve vir de dentro de ti mesmo, tal como os teus pensamentos vêm de ti: uma injunção ética muito intrigante nos seus dois itens, o amor do próximo e o amor de si mesmo, este dado como termo de comparação ou de avaliação do primeiro. O que é ‘amar’ em cada caso? Comecemos pelo amor do próximo e vejamos primeiro o que ele não é. Não é um amor de paixão, como quando se diz que se está apaixonado, pois aí trata-se duma relação exclusiva, ligada ao sistema sexual como erotismo.  Também não é uma relação de ocasião igualmente erótica, muito menos se envolvendo prostituição e excluindo o amor. O que parece ficar assim excluído é que este ‘amor do próximo’ tenha incidências com a química hormonal da ordem do erotismo, que é a acepção mais corrente da nossa palavra ‘amor’. Uma segunda hipótese será a da ‘amizade’, enquanto relação de preferência por um ‘tu’ singular, cultivada por um convívio partilhado, recíproco, que tanto vale para mim como para ti, que joga no desinteresse mútuo além dessa partilha afectiva. Fruto de circunstâncias que suscitaram a amizade, parece que lhe é estranha qualquer forma de injunção: não se decide unilateralmente ser amigo de alguém, é algo que acontece a ambos e por ambos é reconhecido como gratificante. Não tem sentido dizer a alguém que deve ser amigo do seu próximo.
4. Sobra então, parece, uma terceira possibilidade de amor, o que se chama habitualmente compaixão, que implica um desnível entre o que ama e o que é amado, supõe neste uma carência de qualquer ordem que pesa sobre a sua autonomia de vida e naquele uma atitude de querer ajudar a colmatar tal carência. Neste sentido, a injunção afasta-se da relação de boa vizinhança que o Levítico sugeria, embora outros textos da Bíblia hebraica multipliquem o apelo a cuidar dos sem casa, do órfão, da viúva, do emigrante, desde o primeiro grande texto, o do Deuteronómio (15, 4), com a sua injunção a todo o Israel: “não haja pobre no meio de ti”. A Bíblia cristã retomou a injunção do Levítico claramente entendida agora como compaixão ou misericórdia pelo que tem fome ou sede, pelo estrangeiro ou pelo nu, pelo doente ou pelo preso (Mateus 25, 35-45), a injunção da compaixão operante sendo proposta como critério decisivo de avaliação do que foram os destinos de cada um em relação ao Reino dos Céus. Há uma modificação decisiva, passou-se de uma moral de toda a sociedade de Israel para uma ética individualizada e responsabilizadora, para uma injunção ética além de toda a moral tribal, correlativa da maldição que é lançada sobre os ricos em Lucas 6, 24-6. Este mesmo autor (10, 29-37) reinterpreta o motivo levítico, estendendo-o bem além da vizinhança, dos amigos e conhecidos, propondo uma parábola em resposta à questão “quem é o meu próximo?”, na qual um judeu que descia de Jerusalém para Jericó foi vítima de bandidos que o despojaram e feriram, deixando-o meio morto: um sacerdote e depois um levita (duas categorias sociais votadas ao culto religioso) que passaram e seguiram caminho e foi um semi-estrangeiro, da Samaria, uma zona religiosamente mal vista pelos Judeus de então, quem se ocupou dele e o fez tratar. A compaixão não conhece fronteiras políticas ou religiosas, muito mais além das fronteiras da tribo, dos bairrismos e dos nacionalismos.
5. Mas também não é um afecto vazio, é um amor praticante, de obras[1]. O que de si restringe, se dizer se pode, o próximo, como aliás já o faz a noção de proximidade: não se trata de amar os meus conhecidos quando passo por eles, nem de dizer ‘que horror!’ diante das desgraças que a televisão mostra. Trata-se de amar o próximo em suas carências, fome ou sem abrigo, doença ou aflição, trata-se de atender ao que elas implicam de... quê? É a esta questão que o “como a ti mesmo” ajuda a responder. Que amor se tem a si mesmo? Não se tratando de narcisismo ou de egoísmo, que são o contrário de ‘amor’, pode-se pensar que se trata do ‘cuidado’ que tenho dia a dia com o meu viver. Então a questão será: o que é que eu tenho de que o outro carece? A possibilidade de o ajudar nessa carência, a qual possibilidade me é dada pela minha autonomia de viver, que justamente recebi da minha tribo, que me fez doação dela como heteronomia que se retrai para deixar ser a autonomia: o ‘onde’ se nasce, que foge a qualquer escolha, configura aquele que se será, que só escolherá dentro dessa configuração, trate-se mesmo de rebeldia contra ela. A autonomia recebida gratuitamente é a doação que é feita a qualquer um que nasce em tal tribo. É do que carece o que merece compaixão: que se o ajude a recuperar a autonomia que lhe falta, que se substitua, não a ele, carente, pois que isso significaria permanecer sem autonomia, mas aos da sua tribo que lhe faltam. A esta interpretação heideggeriana corresponde uma outra injunção evangélica de Mateus 10,8: “recebeste gratuitamente, dai gratuitamente”. Diante do que tem fome ou não tem abrigo, quem come em sua casa atesta dum privilégio gratuito: antes de todos os esforços feitos para garantir casa e refeição, nasceu aonde recebeu por aprendizagem de doação tribal as possibilidades desses esforços. ‘Nascer aonde’ é gratuito, ajudar o carente releva da mais elementar solidariedade humana, gratuita igualmente como o amor. É por isso que é dito ‘ama’. ‘Como a ti mesmo’, alarga sem fim os limites desse amor, se se trata de ajudar o outro a aceder à sua autonomia ‘como’ a minha.
6. ‘Nascer aonde’ é gratuito: ninguém pode perscrutar-se suficientemente para poder vir a aceder conscientemente a essa gratuidade. Mas cada filho ou filha que se tenha e de que se acompanhe um pouco o percurso testemunha dela. Como dizia a minha sogra dos filhos: “podemos criá-los, não podemos fadá-los”. A diversidade de destinos parte da gratuidade dos nascimentos antes de todo outro factor de percurso. Faz parte do segredo da fecundidade, quer dos nascimentos, quer das aprendizagens doadas com retiro dos doadores: este retiro da heteronomia é justamente a não substituição que torna possível a autonomia. Amar o próximo efectivamente como a si mesmo é participar no grande segredo da vida, o da fecundidade das suas doações gratuitas, contribuir para melhorar as autonomias diminuídas em vista do que chamamos a humanidade: autónoma, solidária, pacífica.
7. Mas quem sou eu para falar de amor ao próximo?


[1] A tradição eclesiástica elencou sete obras de misericórdia corporais”, as seis de Mateus 25 mais “enterrar os mortos”, e sete “obras de misericórdia espirituais”: dar bons conselhos, ensinar os ignorantes,
corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, rogar a Deus por vivos e defuntos. 

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