quinta-feira, 6 de julho de 2017

Questões de Fenomenologia geral (2)



1. Tudo veio devagarinho, sem eu ir dando por isso, pelas consequências, pela amplidão do campo de fenómenos que se ia abrindo. Percebi desde o início que não se tratava de filosofia das ciências, mas antes de filosofia com ciências, expressão esta que veio a tornar-se o emblema do que estava a fazer e que surgiu inopinadamente ao acabar a frase dum subtítulo do 1º capítulo do Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida. Muito mais tarde, no 2º volume, 13º capítulo, com citações desses dois pensadores reclamando como necessária a sua travessia da fenomenologia, o alvo de Husserl – retorno às próprias coisas, aos fenómenos – impôs-me que o que estava fazendo relevava desse alvo, ‘reformulava’ a fenomenologia com o contributo das ciências especializadas em grandes domínios dos fenómenos terrestres. Mas claro que havia aqui uma ambiguidade, a da ‘reformulação’: não era já a fenomenologia de Husserl, em torno da consciência e da sua intencionalidade na coisa’, mas de recuperar esta de maneira mais global, com o motivo de aprendizagem a corroborá-la, indo bem mais além do que o mestre dos meus mestres. Todavia o lugar crucial do aprender, que já lá estava, só se me deu nestas tentativas de escritas de blogue.
2. Com efeito, à medida que vou escrevendo para ele, alguns pequenos ensaios foram exibindo variações fenomenológicas consoante os fenómenos analisados. E então as cinco ciências retidas na sua dimensão filosófica apareceram a adjectivar a comum fenomenologia. O texto do congresso de Fenomenologia de Évora, em 2012[1], pode ser dito’ensaio de fenomenologia biológica’, a sua 2ª parte, se isolada da 1ª que ela vem completar e sem a qual fica coxa, ‘fenomenologia neurológica’. Também o texto sobre energia e forças pode ser dito ‘fenomenologia física’[2], enquanto que o recente sobre a psicologia como ciência de seres no mundo, será ‘fenomenologia neuro-psicológica’. A um ensaio inédito sobre o cristianismo ao longo da sua história apreendido em leituras de tipo textual (à R. Barthes), chamo “ensaio de fenomenologia histórico-textual”. São estas variações, indissociavelmente filosóficas e científicas, que justificam o adjectivo ‘geral’.
3. O que se manifesta nestas variações é algo de perturbador no seu alcance. Porque não sou praticante de nenhuma destas ciências, com competências variáveis consoante (tendo no entanto como formação de base, há 60 anos, a de engenharia civil, antes de vir às letras por ínvios caminhos em termos académicos), mas quase todas elas foram pertinentes para esclarecer questões relativas à linguagem cuja filosofia ensinei durante mais de 20 anos na Faculdade de Letras de Lisboa. Mas o que a fenomenologia heideggerridiana aplicada às ciências me forneceu não foram ‘comentários’ sobre os fenómenos que essas ciências revelaram no século XX, foi a possibilidade de verdadeiros ensaios de filosofia com ciências, isto é, críticas filosóficas das posições que os cientistas exibem nos seus textos de divulgação, posições que são as de todos os intelectuais ocidentais – vindas com a ‘alma’ da filosofia grega e do cristianismo, depois com a ‘ideia’ de Descartes –, a saber, o privilégio do substancial dos entes sobre o mundo que os deu (ontoteologia, em termos heideggerianos), o privilégio do interior sobre o exterior que o inscreveu, o gerou (logocentrismo, em termos derridianos).
4. É certo que há inevitavelmente uma parte de amador em tal crítica vinda da fenomenologia geral, já que nesta não há especialistas, tão entricheirados entre si são os campos científicos atravessados, nem sequer de filosofia, que os filósofos, especializados ou não, também não são imunes à ontoteologia e ao logocentrismo. Ora, esta parte de amadorismo não pode deixar de chocar com os especialistas das várias ciências, já que são os paradigmas laboratoriais que os estruturam com o êxito que revelam as grandes descobertas científicas em que esta fenomenologia se desvelou, e que justamente esses paradigmas na sua minúcia operatória são impenetráveis pelos que lhes ficam de fora, paradigmas esses que muito provavelmente resistem à crítica por razões que lhes são intrínsecas, pelo menos nas ciências mais técnicas em termos de aparelhagem. O diálogo de surdos será óbvio, a surdez nem sequer deixará que haja diálogo a esse nível intra-laboratorial. Sem laboratório não há ciência, apenas filosofia, mas eles variam consoante os domínios das respectivas ciências e são irredutíveis entre si, já entre fases diferentes duma dada ciência, Kuhn sublinhou-o bem, com muito mais razão entre diferentes ciências. É com efeito fora do laboratório que a questão duma fenomenologia geral se põe: não é habitual colocar esta questão da diferença entre a prática laboratorial necessariamente fragmentária das ciências e a conjugação teórica desses fragmentos na dita ‘realidade’ extra-laboratorial, como se não houvesse problema nenhum, como se não se pusesse a questão pós-experimental de saber porque é que foi necessária a redução operada pelo laboratório, que reconstituição dela há que operar, tendo em conta o que se descobriu. Que a bioquímica, que tornou possível conhecer o metabolismo das células e o papel nele dos ácidos ribonucleicos e dos ‘desoxi’, não reveja a incidência destas  suas descobertas na relação entre a fotossíntese e a existência de herbívoros e de carnívoros como supondo uma lei da selva que determina as anatomias dos animais, vertebrados como invertebrados, explicando biologicamente o que Darwin chamou “a luta pela existência”, que os biólogos não se dêem conta disso (uma contestou-me a análise), é um exemplo deste fora do laboratório à mercê de qualquer biólogo.
5. Não é pois expectável que esta proposta tenha algum sucesso, tão exigentes competências pede, mas que ela se dê como um pensamento sistemático nestes tempos de relativismo, susceptível de compreender todas as dimensões da ‘realidade’ da terra, do micro molecular e celular ao global inter-regional e inter-continental, mantendo no coração de cada fenómeno uma indeterminação em que ele se liga duplamente a outros fenómenos vizinhos e longínquos, deveria ser um apelo. Infelizmente, quem gizou esta Fenomenologia geral não é dotado de pensamento estratégico (ou será defeito da proposta?), não é capaz de exibir ‘sucessos de análise’ que respondessem a alguns dos problemas desta época de transição não se sabe para onde.


[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.html
[2] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/10/questao-prigoginiana-sobre-energia.html

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