sábado, 1 de julho de 2017

A razão de ser da Fenomenologia geral



1. Não se trata duma invenção, resulta do pensamento fenomenológico enquanto “retorno às coisas”, mas desligado da ‘consciência’ husserliana e do ‘Dasein’ heideggeriano e chegado à gramatologia derridiana e à sua posição aberta às ciências. Ainda que se possa discutir se o percurso destes três grandes pensadores releva da invenção ou da descoberta, parece-me muito claro que a chegada à Fenomenologia geral (‘geral’ designando a diferença em relação ao percursor, a quem ficou ligado o termo ‘fenomenologia’ como capítulo da história da filosofia) releva duma descoberta, em sentido próximo do que o termo tem em ciências, conotando que havia algo na dita realidade que se desvelou à investigação. Com efeito, a Fenomenologia geral estava – na história do pensamento greco-europeu – à espera de ser descoberta, é isso que tentarei escrever brevemente.
2. Digamos que se trata da relação entre Aristóteles e o pós-kantiano Husserl, entre dois gestos de “retorno às coisas”, gesto este cuja história já um dia evoquei neste blogue. A ousia traz a ‘essência’ platónica (o que se conhece) à ‘substância’ (realidade) de cada coisa individual, para explicar o seu movimento, aquém dos respectivos ‘acidentes’: é o que está na génese da Physica como filosofia, o que permitirá desenvolver as diversas ‘ciências’ aristotélicas, à base de definições. Isto durou uns vinte séculos, até Galileu e Newton entre outros, em que essas novas ciências são parte especializada da Filosofia, como hoje a Estética ou a Ética: princípios matemáticos de filosofia natural, o título do primeiro grande tratado de Física faz fé de que o seu autor se considerava um filósofo que fazia filosofia natural, cujos princípios matemáticos por sua vez atestavam que se tratava de uma ciência nova, que arrebanhou aliás o nome da filosofia aristotélica, se chamou Física porque de compreender o ‘movimento’ se tratava (embora apenas do deslocamento local, no chamado ‘espaço’, para que os Gregos não tinham nome, e não já do crescimento e alteração que dizia a palavra phusis). O nome é incerto, na Academia das Ciências de Paris (1666) o conteúdo da nova ciência é incluído com a astronomia nas matemáticas, enquanto o nome ‘física’ engloba química, anatomia e botânica; ainda no meio do século XVIII, na Encyclopédie, a flutuação do termo ‘física/o’ é notável; nas universidades burguesas dos inícios do XIX, os nomes das várias disciplinas já estão repartidos à nossa maneira. A novidade do sec. XVII, matemática (geometria) e laboratório (de mecânica), acrescentada à antiga filosofia (da definição), foi-se sobrepondo à filosofia natural (os ‘naturalistas’ faziam o que chamamos biologia, termo de 1802 (Lamarck), ainda é como Darwin se designa a si e aos seus colegas): a ciência que usurpou o nome da antiga filosofia veio a ganhar, tornando-se claro para Kant que havia que distinguir os dois tipos de conhecimento, o da ciência e as categorias do entendimento dum lado e do outro o da filosofia e as ideias da razão. Ou seja, para que as ciências se pudessem desenvolver fora da matriz filosófica e das suas questões metafísicas (para não falar das teológicas, e dos desaguizados de Galileu com os santos ofícios), foi extremamente útil suspender, ignorar a sua origem filosófica, tal como a criança aprendendo a andar e a falar esquecerá para toda a vida o tempo em que foi ‘parte’ mamífera da sua mãe.
3. Este esquecimento, como diria Heidegger, teve efeitos: ainda hoje os cientistas não sabem olhar as suas descobertas fora do seu laboratório, justamente por efeito da matriz filosófica aristotélica que presidiu à sua invenção, que Heidegger chamou ontoteologia e Derrida logocentrismo, e que relevam do substancialismo essencialista da Physica que o laboratório da Física elimina ao fazer medições e equações com os seus resultados, mas não desconstrói da cabeça interpretativa dos cientistas no que diz respeito ao fora do laboratório. “Na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”, de Saussure, é um aforismo exemplar dum cientista que se espanta, na filosofia que aprendeu como todos nós, da sua inadequação ao seu domínio de investigação (Freud teve espantos parecidos, como antes Darwin), e tão forte foi esse espanto que duas gerações depois veio a gerar uma corrente filosófica aliada às ciências sociais e humanas, dita estruturalismo, que Derrida teve que atravessar para ultrapassar o seu impasse com o tempo, que Heidegger introduzira na Fenomenologia husserliana.
4. O caos ou anarquia dos saberes ultra-especializados das ciências actuais, que tem como efeito que deixou praticamente de haver autoridade científica porque os especialistas só sabem da sua especialidade entre centenas doutras da sua ciência que não podem acompanhar, justifica que se considere que a suspensão kantiana da dimensão filosófica das várias ciências deixou de ser necessária e que, pelo contrário, as grandes descobertas científicas do século XX permitem um “retorno às coisas” inédito e fecundo, já que postas em face a face umas com as outras sob a luz fenomenológica dos duplos laços, permitem uma consideração sistemática de tudo o que existe sob a terra (fora dos laboratórios, feudo exclusivo dos cientistas) em termos de movimento e da respectiva indeterminação (todo o movimento é aleatório).
5. Para dizer a razão histórica desta Fenomenologia geral, poder-se-ia pretender que o nome a que ela teria direito é aquele que foi usurpado pela primeira ciência, o de Física, cuja relação próxima com a Química mostra bem a limitação dessa designação: numa fala-se de átomos, noutra de moléculas, que são indissociáveis entre si, já que os átomos só subsistem em moléculas. Que a Biologia, que é a ‘verdadeira’ ciência correspondente à Physica aristotélica, a que se ocupa dos seres cujo movimento é o de crescerem (phuô, em grego), e não apenas se deslocarem (as árvores não andam), tenha tido que se contentar por designar uma das suas regiões como Fisiologia, a que se ocupa dos seus vários tecidos de células especializadas, é outra amostra da inadequação, ainda no século XIX os médicos eram ditos, aristotelicamente, physicos. Se fosse possível chamar à Fenomenologia geral a Physica moderna enquanto critica (quase kantiana) da Physica antiga, ambas Filosofia com Ciências, daria para perceber que se trata do acabamento de uns vinte e três séculos e meio de história do pensamento greco-europeu, no que ao conhecimento das coisas se refere. Algo que estava à espera de ser descoberto por qualquer um que passasse – com um mínimo conhecimento de ciências, mormente de linguística – e que desse por ela, após os grandes gigantes do pensamento científico e fenomenológico do século que findou. 

6. O percurso foi assim, partindo do movimento dos seres vivos que crescem por si próprios e seus acidentes, passando pela medida do movimento dos seres inertes e suas energias até chegar ao movimento dos seres no mundo, vivos e máquinas, e seus acontecimentos. 

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