1. É uma curiosidade: são duas
palavras que, uma na Antiguidade helenística, a outra nos inícios do
capitalismo, tiveram um destino equivalente.
2. Heresia, do termo grego hairesis
– que indica “preferência por uma doutrina, escola filosófica, médica,
religiosa, seita politica” (Magnien / Lacroix) –, designava as escolas de
pensamento espiritual no império romano, na vertente grega culturalmente
dominante; assim as escolas de filosofia platónica ou estóica ou epicurista,
bem como outros cultos vindos do Médio Oriente, Síria, Pérsia, incluindo o
novel movimento cristão, que num dos seus textos da viragem do 1º para o 2º
século, chamado Actos dos Apóstolos, várias vezes utiliza o termo, referindo grupos de opinião como fariseus e
saduceus e, inclusive, no cap. 24, vers. 5, a si mesmo se chama ‘heresia’
(traduzido por ‘parti’ na Bíblia de Jerusalém), embora em designação de
adversário. Em meados desse 2º século, já intelectuais cristãos, como Justino e
Ireneu de Lião, em polémica com outros intelectuais cristãos, usam ‘heresia’ e
‘herético’ dando-lhe um sentido de erro doutrinal que, tornado pejorativo, veio
a reforçar-se quando o cristianismo tomou o poder religioso.
3. Ideologia, ciência das ideias, foi um termo inventado por Destutt de Tracy, para
designar a sua escola de filósofos franceses revolucionários e materialistas
(1796), substituindo na palavra psicologia o grego psyché, alma, por
‘ideia’, termo filosófico europeu que Descartes fizera vingar (como se o
pensamento deste e o próprio termo ‘ideia’ fossem materialistas!). Mas os
Ideólogos criticaram Napoleão Bonaparte que proibiu o ensino da cadeira deles
“ciências morais e politicas” no Instituto de França, contribuindo para tornar
na opinião pública pejorativa a designação da escola filosófica sua adversária.
Foi o uso que Marx deu ao termo ‘ideologia’, como sistema de ideias seguindo os
interesses das classes sociais, que lhe deu vida até hoje.
4. Trata-se portanto nos dois casos de um termo
que veicula uma noção de corrente de pensamento ou de opinião e se vê subjugado
no seu sentido anterior por uma corrente adversa que veio a tomar o poder
intelectual: a heresia e a ideologia são as margens de opinião excluídas por
ortodoxias poderosas, não tolerantes da liberdade de expressão.
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