domingo, 19 de março de 2017

A criação (Gn 1) : o cosmos como bênção




1. É interessante neste texto da criação do cosmos em seis dias (finais do sec. 6 aC ou inícios do 5) perceber a lógica da época, a apreciação das coisas que são criadas segundo a sequência delas. E para grande espanto nosso, a primeira de todas é a luz e o dia, com separação das trevas e da noite, a segunda a chuva, as águas acima do céu separadas das dos mares. O nosso espanto é o da nossa razão, mas não deve concluir que o texto a não tivesse: basta ver como ele se divide em duas metades com o mesmo número de palavras hebraicas, a primeira metade contando quatro dias e cinco palavras de criação e a segunda também com cinco palavras mas em dois dias de criação apenas (P. Beauchamp, Création et séparation). É pois um texto de razão, como ressalta aliás da sua sobriedade comparada com as cosmogonias das civilizações contemporâneas e até com o Timeu de Platão.
2. O versículo 1 dá o título: “no princípio Deuses (é um plural, Elohim) criou o céu e a terra”, enquanto que o segundo dá a entender o que havia antes: a terra informe e vazia, trevas sobre abismo, vento ou sopro de Deuses sobre águas, apenas o vento parecendo algo de positivo, que contrastará com o refrão que seguirá as criações (excepto a do céu): “Deuses viu que isso era bom”. Ora, a luz é criada no 1º dia, o céu no 2º, a terra, os mares e as ervas com sementes e as árvores de frutos contendo sementes no 3º enquanto que o sol, com a lua, é criado apenas no 4º dia, para dar aclarar a terra, separar a luz e as trevas! Na segunda metade, vêm os animais, no 5º dia, os animais que andam nos mares e as aves que voam nos ares, no 6º os animais terrestres, bichos, rastejantes e selvagens num primeiro tempo, os humanos, homem e mulher à imagem do Criador, enfim, para dominarem sobre os animais dos mares, ares e terrestres.
3. Como compreender (quanto me é possível, não sou nenhum especialista) a lógica desta sequência de criações? A primeira metade dá o quadro do universo, a segunda os seres vivos que o habitam, com a excepção, a nossos olhos, das plantas. Seja a separação tão claramente expressa entre a luz e o sol; no 4º dia o texto esclarece que sabe que é ele que alumia a terra, que separa a luz das trevas, como quem cita o 1º dia e sublinha pois que esta separação é propositada. Há duas razões me parece: por um lado, é a luz que tem o privilégio, como lhe ecoará o prólogo do evangelho de João, falando da “luz que aclara todo o humano que vem a este mundo”, aliança pois da luz e do saber, que os Gregos também perfilharam e a nossa civilização na senda de uns e de outros. Por outro lado, o sol é naquelas civilizações facilmente o personagem por excelência dos mitos, e ser relegado para o 4º dia da criação desaloja-o claramente desse pedestal das religiões.
4. E a questão das plantas virem tão claramente separadas dos outros vivos, apesar das referencias às sementes bem sublinhar que não há nenhuma distracção nesta colocação. É a 10ª palavra que nos esclarece. Das dez palavras, “Deuses disse”, oito são palavras de criação propriamente dita, palavras seguidas da vinda à existência do que elas disseram, enquanto que duas, a 7ª e a 9ª, são palavras de bênção: “Deuses abençoou-os e disse: ‘sede fecundos, multiplicai-vos, enchei [no primeiro caso] a água dos mares’ [e no segundo] a terra’”. a bênção é a palavra que ‘cria’ a fecundidade. Ora, a 10ª palavra explica a colocação das plantas: “Deuses disse: ‘dou-vos todas as ervas com semente e todas as árvores que dão frutos com sementes: será a vossa alimentação’”, palavra dita aos humanos que depois acrescenta para os animais. Assim se explica também o sentido discutido durante muitos séculos da expressão “a terra informe e vazia” (tohu e bohu), era a terra árida de não ter plantas, como a Lua aonde chegaram os astronautas, incapaz de vida, isto é, de bênção, de fecundidade. Tal como a phusis de Aristóteles: que os vivos cresçam e se multipliquem, é uma maravilha, é a maravilha. Aos nossos olhos, que a luz nos dá a ver, ela que é a primeira criatura divina    .

No blogue Questions au christianisme, análise com mais pormenor no cap. 6, §§ 47-50 do texto deste link


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