em resposta a
Luísa Borges, que comentou assim:
“1º
comentário: Em que língua pensamos quando escrevemos, Luís de Barreiros Tavares ? Será que
S. Paulo pensou em hebraico enquanto escrevia em grego? E será talvez por essa
razão que Teixeira de Pascoaes escreveu no seu S. Paulo que “o mundo vai ser
judeu”?
2º
comentário: Creio que a tradução é espantosa e o comentário do Fernando Belo
não põe isso em causa, o que ele discute é que se use a expressão bíblia grega,
se bem entendi, e ai pode ter um ponto ... mas é uma discussão em aberto, como
dizes...”
1. Aqui vai um desenvolvimento da
minha crítica da ‘Bíblia grega’, que vale para praticamente todas as traduções
ocidentais. Vale também para o israelita A. Chouraki, tradutor da Bíblia
hebraica, que fez também uma tradução francesa dos 4 evangelhos que pode servir
para compaginar a tradução do Frederico Lourenço (adiante, § 8) – por quem
volto a dizer a minha grande estima pessoal e pelos seus romances –, o que
ainda mais torna as coisas complicadas: toda a minha gente, crentes ou ateus,
lê a Bíblia como um livro religioso, que foi aquilo em que ela se tornou, pelo menos para os cristãos, após a
derrota de Israel por Roma no ano 70; mas antes era um livro tanto politico
como espiritual e religioso (‘pelo menos’, já que o sionismo supõe uma leitura
politica). A entrada no cosmopolitismo romano despolitizou a Bíblia (já o
cosmopolita Paulo em Romanos
13,1-7) tal como a Filosofia grega se despolitizou após a derrota frente a
Filipe e Alexandre da Macedónia.
2. Sem ter lido quase nada da
tradução do F. L., só tenho duas criticas. Ele traduz sempre pneuma por ‘espírito’, sem sequer em nota lembrar que em
grego a palavra significa ‘sopro’, respiração, tal como spiritus em latim e ruah em hebraico, o qual é claramente ‘sopro’ na
Bíblia hebraica (“pela sua palavra os céus foram feitos, pelo sopro da sua
boca todo o seu exército”, Ps 33,6) e só terá ganho o
estatuto ‘cristão’ do nosso “Espírito Santo, terceira pessoa da santíssima
Trindade” com Orígenes, no Peri Archõn, início do século III, que o diz “hipóstase intelectual”, recusando que seja
sopro ou fogo. A questão que eu ponho, sem conhecer bibliografia sobre o
assunto, é: quando é que o “sopro santo” se tornou “espírito santo”? Não posso responder cabalmente, mas presumo que não haja nenhum passo do N.
T. em que agion pneuma não
seja ‘sopro santo’, o sopro
que dá palavra aos apóstolos,
como as línguas de fogo do Pentecostes, que têm obviamente mais a ver com o
‘sopro’, enquanto que a misteriosa pomba do baptismo de Jesus desafia os
exegetas (uma hipótese, salvo em Lucas que lhe dá ‘corpo’, é ser a ‘descida’ do
céu o traço da pomba mitológica, acompanhando a palavra).
3. A outra crítica é ao inenarrável
“Filho da Humanidade” em vez do tradicional “Filho do Homem”; é certo que não
me lembro de nenhum exegeta com certezas sobre a interpretação desta figura.
Com ele, passo à questão que Luísa Borges me pôs entre hebraico e grego, mas
antes cito o P. S. que juntei ao texto (1) do meu blogue. Na revista do Expresso de 17 de Dezembro, Tolentino de Mendonça conta um
episódio contado pelo filósofo judeu alemão Jacob Taubes, autor nomeadamente de
La théologie politique de Paul
[1987], em que declarou no final das
conferências desse livro: ‘sou pauliniano, não cristão’. “Certo dia, durante a
guerra, passeava em Zurique com Emil Staiger, que era óptimo helenista.
Caminhávamos ao longo da Ramistrass, quando Staiger confessa: ‘Sabe, Taubes, li
ontem as cartas do apóstolo Paulo’. Depois acrescentou com profundo desgosto:
‘Aquilo não é grego, é hebraico! [ídiche, em versão inglesa na Web]’. Ao que eu
retorqui: ‘Certamente, Professor, é exactamente por isso que eu o entendo’”.
Ora, que Paulo, com educação helenista além da formação farisaica em Jerusalém,
escreva ‘hebraico’ em grego segundo um grande especialista de grego, é a mais
competente das confirmações que eu poderia esperar para a negação da existência
de uma qualquer ‘bíblia grega’! É um argumento de autoridade que neste caso é
derimente, já que vem duma autoridade que nenhum de nós tem, nem pelos vistos
F. L.
4. Quanto ao “Filho do Humano”, cito um extracto
inicial de outro texto do meu blogue que resume a minha leitura do
cristianismo: “Que Cristianismo, quando não se pode crer num criador ?
Argumentário dum ensaio de fenomenologia histórica e textual (inédito)”.
5. O argumento politico: a aliança e o
apocalipse. Idade do Bronze
recente, séculos 15 a 13 antes de Cristo, a região do Próximo Oriente conhece
uma civilização que tem relações comerciais, diplomáticas e guerreiras entre as
suas potências, Egipto, Grécia de Micenas, Hititas [Turquia], Assírios
[Afeganistão], Babilónia, diz o historiador americano Eric Cline (1177 av.
J.-C. Le jour où la civilisation s’est effondrée). Acrescento eu: a Idade do Ferro levou alguns séculos para relançar os
impérios, a monarquia de David (conquista de Jerusalém cerca do ano 1000)
aproveitou este vazio de imperialismo para se afirmar em Canaã com alguma autonomia, mas depois foi tornada vassala
das diversas potências, primeiro os Assírios no sec. IX, depois Babilónia,
Pérsia [Irão], sucessores de Alexandre, enfim os Romanos no sec I a.C.. O Deuteronómio foi escrito durante uma retomada de autonomia
entre os Assírios e Babilónia, propondo o motivo da aliança em que o seu Deus é o soberano e Israel o vassalo
(por exemplo, na história das 10 pragas do Egipto, é Yahvé contra o Faraó, não
contra os Deuses dele), o primeiro assegurando bênção e protecção face às
nações estrangeiras, se ele for fiel à ética do Decálogo e ao direito em torno
do Templo de Salomão. Ficção colocada no deserto muitos anos antes da monarquia, esta – com todos
os seus usos agrícolas e costumes – é reduzida fenomenologicamente para que a relação de
soberania seja claramente manifesta na aliança politica. Deuteronómio 28 e Levítico 26, as bênçãos e as maldições da aliança, dizem
esta doutrina profética que o livro de Job, alguns séculos mais tarde, criticará no que diz respeito ao destino do
justo abandonado por Deus. Após a derrota dos Persas, os mais tolerantes dos
seus suzeranos (foram eles que tornaram possível que a Torah seja a lei em
Israel), a dominação dos sucessores de Alexandre e depois dos Romanos tornou-se
de tal forma insuportável, excluindo qualquer revolta militar, que gerou uma
literatura apocalíptica que esperava a intervenção escatológica do Deus
soberano da aliança como única saída para esta opressão que, de facto, durou
ainda alguns séculos. João Baptista e Jesus de Nazaré inscrevem-se nesta
concepção apocalíptica anunciando o Reino de Deus, isto é a vinda do Criador tomar posse do seu
vassalo aliado e fazer o Juízo final dos humanos: “os tempos cumpriram-se, o
Reino de Deus está muito próximo”. Além da figura do Messias, uma outra figura escatológica dos evangelhos é a
do Filho do Humano, citada de Daniel (7,13-14, 27) como uma ascensão colectiva dos
justos para o Céu e evocada (sem o nome de F. H.) no primeiro de todos os
textos cristãos: “nós, os vivos, que estaremos ainda à espera da vinda do
Senhor […] seremos
reunidos […] e
levados sobre nuvens para
encontrar o Senhor Jesus nos ares” (1a carta aos Tessalonicenses 4, 15-17). Muito estranha aos nossos olhos de
descendentes dos Gregos, trata-se da figuração da saída eterna dos justos da
Terra para o Céu numa cultura que
ignora a oposição platónica entre o corpo e a alma imortal. É este o
contexto politico dos textos relativos às origens do cristianismo.
6. A utopia evangélica. Pode-se dizer assim a lógica destas duas figuras,
do Filho do Humano colectivo
subindo da Terra para o Céu para cumprir o Reino de Deus. a) ela é própria duma sociedade de economia
agrícola e criação de gado que depende portanto essencialmente das fecundidades
das suas sementeiras e dos seus rebanhos, das bênçãos que o duro trabalho dos campos não garante por si
só. A aliança segundo os
Profetas ligou a abundância das colheitas e do gado em cada casa à justiça do pai dela. É a mesa que resulta desse trabalho
abençoado que faz das gentes da casa uma comunidade que partilha o que alimenta
e constitui os seus corpos: em vez da individualidade da alma grega que deve
ser virtuosa, aqui é o biológico trabalhado e comido para fazer biológico nos
que comem (natureza depois cultura depois natureza indissociavelmente), é a mesa assim que está no coração do pensamento profético.
b) o amor do vizinho, do próximo, ou até do estrangeiro vítima de ladrões, o amor do que tem fome, sede,
está nu, sem tecto, doente, preso (diz o Filho do Humano em Mateus 25, 31ss), em suma do que não tem casa, esse amor
é a mesa abençoada que dá do que ela recebeu com fecundidade aos que lhes
falta, é ela que vai além das paredes das casas e das fronteiras étnicas e da
segregação racial, para saciar a cem por um. c) a mesa do pão e do vinho
partilhados por esses justos em memória da ceia de Jesus é o núcleo do
paradigma dos textos do novo Testamento, da nova Aliança: pode-se dizer que é
esta a utopia evangélica cuja figura é o Filho do Humano colectivo em ascensão
para o Reino messiânico (mais fácil de desmitologizar depois da ascensão dos
Americanos à Lua). O que é difícil de pensar nesta figura, é que ela resiste às
nossas capacidades de especialistas: trata-se de biológico ou de económico, de
religioso ou de político, que relação tem com a ‘dignidade humana’ e os seus
‘direitos’? Sem separação entre pensamento e acção, teoria e prática, também
não se trata de metáforas (vegetais ou de pastores), de imagens pedagógicas,
trata-se de como se via a ‘realidade’ da vida, a fome. É um desafio ao nosso
pensamento greco-romano-cristão. A utopia actual: a fecundidade global dos
vivos a alimentar e a curar, a justiça da partilha em redor de si do que se
recebeu, o amor do próximo. Eu não consigo, é muito difícil.
7. O que se mostra nesta ilustração
da noção de “Filho do Humano” (é igualmente a tradução de Chouraqui) como ascensão
(Enoch e Elias no passado bíblico, depois Jesus[1]),
é que uma língua não é apenas uma gramática e um dicionário (muito menos
bilingue). É a língua duma cultura, duma antropologia, duma mitologia, é ela
que ‘pensa’ nos que a falam desde o berço, em Paulo como em Marcos e nos
outros. Mas justamente não se ‘traduz’ enquanto tal, já que só é possível
traduzir com gramática e dicionário bilingue. É por isso que se pode traduzir razoavelmente bem, como espero
que F. L. faça, mas o “Filho da Humanidade” (que é um abstracto europeu
moderno!) mostra como ele ignora o fundo hebraico. Não creio que se possa dizer
que Paulo ‘pensava’ em hebreu ou em grego, pensava em ambas segundo falava, já
que ninguém pensa fora de uma língua, mas esta nos bilingues cria cumplicidades
ou ocultações que demandam interpretação. Terá sido esta ‘ocultação’ no
escrever que Emil Staiger percebeu vir do ‘tradutor’, como não sabia em que
consistia o hebraico, era-lhe mais fácil saber que não era grego. O que eu
receio em F. L. é o acento na ‘bíblia grega’ juntamente com a convicção de que
vai fazer novidade, sem saber hebraico e ser exegeta, ofício de historiador que
demanda muitos anos de especialização. Claro que desejo que faça o melhor
possível, mas não há nenhuma ‘bíblia grega’, que ele insista nisso confrange-me.
8. O israelita André Chouraqui, Les
quatre annonces, DDB, 1976, traduziu
os quatro evangelhos (e o resto do N. T.) do grego mas tendo em conta a língua
hebraica, como se desconfiasse da língua grega. O que ele fez dá-me um
argumento suplementar: foi exactamente o contrário de F. L., exibir o
hebraísmo também na Bíblia cristã. Só por curiosidade, ao acaso e sem servir para ilustrar a polémica aqui,
eis uns bocadinhos da tradução francesa dele de Marcos e da de F. L., com diferenças e recobrimentos. 1,8
“moi, je vous ai immergés dans l’eau. Lui vous immergera dans le souffle de
sainteté” / “eu baptizei-vos com água, mas ele vos baptizará num espírito santo”;
1,15 “il est accompli, le temps, Il est proche, le royaume de Elohim. Faites
retour, adhérez à l’annonce” / “completou-se o tempo e ficou próximo o reino de
Deus. Mudai de mentalidade e acreditai na boa-nova”; 1,25-6 “Yéshoua’ le
rabroue: ‘sois muselé! Sors de lui!’ Le souffle, l’immonde, le convulse, crie
d’une voix forte et sort de lui” / “E Jesus repreendeu-o dizendo: ‘cala-te e
sai desse homem’. Então, o espírito impuro, depois de o sacudir com força, saíu
dele dando um grande grito”; 3,5 “Et ils se taisent. Il les regarde à la ronde
et iui brûle, blessé par la dureté de leur cœur” / “Eles ficaram calados. Então, olhando com cólera e entristecido
com a dureza dos seus corações”. Ao que chamamos "novo testamenteo" ou "nova aliança", chamou ele "um novo pacto".
[1] E Maria segundo Pio XII em 1950, a definir a Assunção de Nossa Senhora
aos Céus, a vinte anos da ida à lua ! é o feriado de 15 de agosto.
Sem comentários:
Enviar um comentário