quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Phusis, escrita e Criador



            1. A Biologia molecular pode ajudar a compreender a ‘morte de Deus’, se for verdade, como creio, que o que deslumbrou os filósofos gregos em torno da phusis foi a fecundidade, como plantas dão origem a plantas e animais a animais e humanos a humanos, como do pequenino, semente e ovo surge o que cresce e se torna grande, e quando se vê como em alguns textos do novo Testamento se diz que os humanos fazem agricultura mas é Deus que dá a planta que cresce (em 1Coríntios, cap. 15, Paulo explica a partir daí a ressurreição).
http://phenomenologiehistorique.blogspot.pt/2016/06/de-la-fecondite-dans-la-bible.html
            2. Nos Gregos socráticos, há duas atitudes diferentes. A de Aristóteles, é a de se admirar com o movimento vindo do próprio vivo que cresce; a de Platão parece nas antípodas, já que a geração e a corrupção são o que ele desdenha, para privilegiar as Formas ideais imutáveis que a alma – não gerada e imortal – contemplou fora do corpo e pôde assim ter nela mesma experiências intelectuais espirituais (ele não distingue) que não foram aprendidas: é pois também a aprendizagem (corporal, com linguagem) que ele desdenha, mas igualmente para privilegiar o movimento fecundo da própria alma. Ontoteologia, segundo Heidegger, a que o cristianismo dará reforço com a noção de criador e de criatura, o par estrutural de relação de ontoteologia, a da criação.
            3. Que a linguagem oral de que o logos é feito seja uma ‘escrita’, imprime-se nos humanos vindo dos falantes em redor, chega para dar conta fenomenologicamente da ‘alma’ platónica, que por sua vez também a biologia molecular e a sua neurologia dispensaram, incluindo a aristotélica, forma não imortal do corpo, ao qual dá o mover-se por si mesmo. Como intervém aqui a descoberta da biologia molecular, o ADN e o ARN, mensageiro daquele no metabolismo da célula? Pensando bem, o ADN gera o ARNm (seja qual for o mecanismo que desencadeia tal geração, há vários) e este, cumprida a sua missão de sintetizar a respectiva proteína, corrompe-se quimicamente. O que significa que ele obedece ao esquema que Platão desdenhou, deixando o ADN vivo, capaz de vir mais tarde a gerar de novo esse ARNm, mas entretanto gerando muitos outros segundo as necessidades do metabolismo; e quando a célula se reproduz, cada uma das novas células recebe um ADN igual, guardião da perenidade do metabolismo enquanto célula houver. Ora, este papel em cada célula especializada repete-se nas outras especializações de tecidos e órgãos, estes constituindo a anatomia do animal: o ADN é assim o que garante o movimento por si próprio do animal, tem o papel que Aristóteles atribuía à alma (o vitalismo na história da biologia é a resistência desse aristotelismo). E como é transmitido nos gâmetas, como uma espécie de ‘quase transcendental’ da espécie, o argumento que Tomás de Aquino desenvolveu, na esteira de Aristóteles, para justificar um Motor primeiro, deixa de servir: em rigor serviria para a primeira célula de todas, mas esta não existiu nunca, quando houve unicelulares, eram já muitos que já se reproduziam uns aos outros, sem nenhuma bactéria Adão nem bactéria Eva.
            4. Que os biólogos falem em programa genético, em que –grama é o termo grego para escrita (como em gramática) – Derrida faz-lhe referência numa nota do 1º capítulo da sua De la Grammatologie – justifica que o ADN, com as suas quatro letras, seja uma escrita, algo de inscrito no núcleo das células vindo das suas progenitoras. Como com a aprendizagem dos usos e da linguagem, de inscrições vindas da tribo, pode-se dizer que foi através de escritas que o mistério da fecundidade ficou esclarecido, o criador dispensado.
            5. Do que não ficamos dispensado é de amar o próximo, mas é a coisa mais difícil do mundo. Tendo em conta o que dizia a minha sogra, a D. Carolina, analfabeta mas uma das pessoas mais inteligentes que conheci: “deus mandou ser bom mas não mandou ser parvo”.

domingo, 14 de agosto de 2016

A Fenomenologia de Derrida



1. Há quem pense, F. Bernardo e J.-L. Nancy por exemplo, que Derrida não é fenomenólogo, e eu aceitei-lhes a opinião, propondo que o que fiz, Filosofia com Ciências, era uma reformulação da Fenomenologia. Na verdade, há aqui um equívoco sobre a palavra: entende-se que Fenomenologia é o que Husserl praticou, a intencionalidade da consciência da coisa, e que continua a ter praticantes como escola filosófica. Estes não conheço, mas do que sei de Husserl, o seu famoso slogan, “retorno às coisas”, entendido como descrição dos fenómenos, isto é, fenomeno-logia, não foi conseguido: faltou-lhe o tempo e portanto o movimento de que ele é a medida. Ora, se Fenomenologia é essa descrição, e como fenómeno nenhum é ‘imóvel’, sem mudança, nem que seja uma rocha sujeita à erosão, a posição husserliana lançou a Fenomenologia mas não a alcançou. Além de não considerar nem o tempo nem o movimento, também Husserl propôs a coisa, como “objecto” de forma ante-predicativa, a percepção sendo pura de linguagem, embora a intenção da consciência para ele fosse dita nas traduções latinas “signitiva” (em alemão é como?), pressupondo pois os signos da linguagem como condição da consciência percepcionar a coisa.
2. Heidegger desfez estas três ‘lacunas’ e acrescentou-lhe o primado do mundo sobre a consciência e o objecto, prescindindo destes dois termos para colocar o humano como ser no mundo, do que faz parte o ser temporal em seus movimentos e ter linguagem. E acrescentou-lhe ainda o Ser como doação dos entes (diferença ontológica) que veio a caracterizar pelo retiro dessa doação. Sendo este nível da doação e do seu retiro que o ocupou sobremaneira, até ao Ereignis de 1962, será mais difícil de pretender que ele se manteve fenomenólogo, mas abriu o caminho de Derrida para a Fenomenologia
3. Eis o ponto. Com o tempo e o movimento, a linguagem e o ser no mundo, o que é que fez Derrida que Heidegger não? Introduziu a redução fenomenológica de Husserl na linguagem, na diferença saussuriana entre os sons e os significantes (estes diferenças daqueles), ou seja na diferença entre fala e língua, diferença indissociável mas que à Linguística, enquanto ciência, serve para reduzir tudo o que releva da fala e restituir os paradigmas da língua. Mas para o fenomenólogo (ou gramatólogo), esta redução tem que ser apagada em seguida a ela ter trazido a diferença para o tempo e o movimento, ter trazido a différance. Ora, o que é esta? É o que é prévio à diferença língua / fala e a dá enquanto fenómeno de fala, que não é inteligível sem os paradigmas da língua, os quais por sua vez não existem ‘no mundo’ senão na inteligibilidade que dão às falas. Ora, as falas, além de terem os seus sons, têm também os seus sentidos que referem os fenómenos do mundo, trazem-nos com elas, é mesmo para isso que elas servem, as palavras e as frases. E só com elas se chega aos tais fenómenos! Como Husserl teria querido sem ter sido capaz, lógico e matemático demais porventura, ou em época ainda não propícia.
4. O aforismo do  De la Grammatologie, “não há fora do texto”, que lhe valeu tanta critica e tanta incompreensão, mais não é do que a tradução gramatológica da intencionalidade da consciência de Husserl, tendo em conta a linguagem e a sua temporalidade, o seu movimento, mas também o mundo que nela se diz e que o próprio mundo (tribal) ensina para dizer... os fenómenos. “Não há fora do texto” significa que os fenómenos do mundo que nós conhecemos nos vêm pela linguagem-pensamento, conectados com o que nos faz ver, ouvir, mexer, sentir, tudo fazendo parte da nossa maneira de falar ou escrever, de ouvir ou de ler, de pensar.
5. A différance é o enigma que une indissociavelmente o mesmo económico (a língua e outros usos sociais, o biológico disso) e o que o excede, como despesa, “resto, excesso ou diferença”, como se dizia na escola primária dos anos 40. É possível que F. Bernardo e J.-L. Nancy excluam um destes indissociáveis, para pretender que Derrida não é fenomenólogo? Que Derrida tenha feito outras coisas, é bem certo, que elas não sejam fenomenológicas não sei que chegue para o garantir. O que a Filosofia com Ciências acrescenta à Gramatologia é a contribuição fenomenológica das principais descobertas científicas do século XX, que só se me deram à luz do duplo laço derridiano, este tornando-se o esteio da fenomenologia que estava a fazer, mas de que só compreendi que se tratava de fenomenologia perto do fim. O que é certo é que aí se descrevem fenómenos nas suas lógicas, no que lhes dá movimento e no que os guia no aleatório das respectivas cenas. Já agora, aqui que ninguém nos ouve, descrevem-se mesmo os fenómenos relevantes das respectivas ciências de maneira que os próprios cientistas não costumam conseguir, por não se saberem desprender suficientemente da sua essencial actividade laboratorial.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A matéria não é bruta, é muito variada



1. Não faças mal, o lindíssimo livro do neurocirurgião inglês Henry Marsh (lua de papel), que conta inúmeras operações que fez, restituindo a sua dimensão humana, os sucessos e os erros, conta também a morte da mãe, que acreditava que havia vida após a morte, o que ele não compartilhava; escreve todavia assim no final desse capítulo: “e agora, todas aquelas células cerebrais estão mortas e a minha mãe – que em certo sentido era a interacção electroquímica daqueles milhões de neurónios – deixou de existir. Nas neurociências chama-se a isto o ‘problema da ligação’ – o facto extraordinário que ninguém consegue sequer começar a explicar de que a mera matéria bruta pode dar origem à consciência e à sensação” (p. 193-4). Que um tão delicadíssimo conhecedor prático da ‘matéria nervosa’ lhe chame “mera matéria bruta”, é a mim que parece extraordinário e mostra como o velhíssimo dualismo matéria / consciência joga de maneira irredutível, brutal: bruta, a matéria!. É o artigo definido que é o erro, há várias matéria, diferentes níveis de matéria de crescente complexidade, afastando-se da brutalidade dum pedregulho que esmague uma cabeça que Marsh tenha que operar.
2. A maior diferença é entre a matéria inerte dos físicos e a matéria viva dos biólogos, mas já na primeira há graus. O nível básico é assegurado pela força nuclear que liga protões e neutrões para fazer o núcleo dos átomos, com os mais de cem patamares da tabela periódica e a variedade cíclica das suas propriedades; o átomo todavia só existe devido à maneira como o seu núcleo cria laços com electrões, mas estes conseguem melhorar de nível material criando laços com electrões de outros átomos, iguais ou diferentes, formando moléculas que se agregam de forma tal que, segundo as condições da temperatura ambiente, podem ser à vista desarmada sólidos como gelo, líquidos como água ou gasosos como vapor. Já pois a este nível há muita diferenciação na matéria, mas a diferença espectacular é a que vence a inércia, com moléculas muito complexas em que o carbono predomina com as suas duplas ligações, as quais conseguiram – num jogo dum bilião de anos segundo Marcello Barbieri (Evolução semântica, Fragmentos, o livro mais bonito de biologia que alguma vez li) – que os laços entre elas de moléculas diferenciadas, as células, se reproduzissem e não se desfizessem de novo como até aí.
3. Esta vitória sobre a inércia, produzindo entropia de estruturas dissipativas (Prigogine, Nobel de Química em 1977), estabilidade instável devendo constantemente refazer as suas moléculas com outras vindas de fora, impede de chamar ‘bruto’ a este nível de matéria, já que dotada de autonomia e crescimento, a phusis que fascinou Aristóteles, o que chamamos natureza, as coisas que nascem (e morrem) como as pedras não. Foi do que Darwin estabeleceu a evolução como o que veio além da inércia até aos mamíferos e aos humanos. E também aqui as anatomias mostram como os vertebrados conhecem cerca de 200 tipos de células especializadas em tecidos de que se fazem os seus órgãos, numa anatomia ligada e coroada pelo cérebro, a rede neuronal que não é senão a instância da sensação e da consciência que Marsh opunha à matéria bruta: ela é a rede de conhecimento do animal, de si e do mundo que o envolve, que o pulsiona a buscar presas que o alimentem e a defender-se de ser presa doutros mais fortes. A rede de sinapses é um grau finíssimo de matéria: jogo de electricidade (de iões) com oscilações químicas entre sódio e potássio! Segredo da memória, os neurónios assim enlaçados em rede formam a mente a que só o próprio tem acesso (Damásio, O livro da consciência). Se Marsh o lesse, compreenderia que ele lhe oferece a solução do tal “problema da ligação”? Ou o dualismo será nele forte demais, que o impeça de compreender que já se explica esse problema tremendo justamente na área que ele pratica de forma tão excelente?
4. Mas a matéria, que não é bruta, não acabou aqui, já que os hominídeos foram aprendendo a jogar com a matéria inerte, com o fogo a transformar a matéria dos cadáveres que comiam, a juntar sons para dizer o que lhes era vital comunicar, depois a fazer instrumentos, a compreender como fazer agricultura, etc. Ora, as falas que dizemos também só são possíveis em ‘matéria’ sonora, assim como as escritas em papel ou equivalente, mas tomam essas matérias de empréstimo, por assim dizer; ora, já os sons são muito pouco ‘materiais’, são vibrações do ar, e as línguas consistem apenas nas diferenças entre esses sons quase materiais (Saussure, o maior linguista do sec.XX), diferenças quase imateriais! São elas que enlaçam as nossas pulsões químicas, os amores e as amizades, as paixões artísticas e intelectuais, e tantas e tão variadas emoções no topo da escala da matéria que vem desde os átomos. Quase imatérias, química das sinapses neuronais, diferenças entre quase matérias: perto do que Marsh quereria, tão longe da pedra. Que a matéria não é bruta, ele sabe-o melhor do que nós (a filosofia dele é que não é boa).
5. É um daqueles livros que se tem pena de chegar ao fim, faz-nos penetrar na intimidade da vida dum neurocirurgião de grande nível.