quinta-feira, 26 de maio de 2016

Heidegger, os Judeus e a Bíblia hebraica



Quando o banal anti-semitismo do início do sec. XX banalizou Heidegger
É do estrume que se extraem as plantas, do perigo que vem o que salva
Paradoxo do narcisismo que preconizava ‘abertura’
Etapas da escrita bíblica
A bifurcação do sentido
Pensar o ser que faz doação das coisas contingentes
Uma ben(mal)dição


Jean-Luc Nancy, Banalité de Heidegger, Galilée, 2015
Daniel Sibony, Question d’être entre Bible et Heidegger, Odile Jacob, 2015


Quando o banal anti-semitismo do início do sec. XX banalizou Heidegger
1. Heidegger foi escrevendo uns cadernos privados de capa negra, desde 1931 até 1969. A publicação dos primeiros dez anos desses Cadernos negros gerou um mal-estar generalizado entre os que estimam o seu pensamento e desencadeou um novo ataque dos que o contestam, como já o suscitara o seu nazismo há uns 30 anos em torno dum livro de Vítor Farias, mas agora em torno do anti-semitismo que esses textos revelam claramente. A leitura conjunta de dois livros de filósofos franceses lança uma luz estranha, obscura e esclarecedora, sobre a relação do pensamento heideggeriano com o judaísmo e com a sua Bíblia.
2. O que faz o curto texto de Nancy, uma conferência pronunciada num colóquio em Wuppertal (Heidegger e os Judeus) no Outono de 2014, é mostrar que não se trata de racismo[1], da dimensão biológica desse movimento politico, mas de algo muito mais grave, duma posição filosófica na compreensão que Heidegger tem da situação contemporânea de “declínio do Ocidente”, em que buscou um novo “começo da história” com o povo alemão e que em 1941 já percebeu que falhara,; para isso que precisava (sabe-se lá porquê) dum povo que destruísse o primeiro começo, o do povo grego, o que seria o papel do povo judeu, a “Judiaria mundial” capaz de “empreender a título de ‘tarefa’ historial o desenraizamento de todo o ente fora do ser” (cit. p. 21), já que se trata dum povo sem solo nem capacidade de decisão (p. 42). “Anti-semitismo historial” (p. 26), escreveu Tawney, o editor dos Cadernos negros: libertado, entregue a si mesmo, portanto adequado à tarefa do desenraizamento – em que se conjugam vários factores, “o americanismo, o bolchevismo, a democracia, a técnica, a racionalidade e a objectalidade” (p. 26-7) – que é a de “anular a distinção das raças” (p. 28). “Heidegger não foi apenas anti-semita: ele quis pensar até à sua última extremidade uma necessidade funda e histórico-destinal do anti-semitismo” (p. 76).
3. O texto de Nancy, anunciando um ensaio de maior fôlego, procura compreender este tão estranho encadeamento de motivos com as questões heideggerianas. “Sabia-se que ele era, como tantos outros, anti-semita. Não se tinham lido as notas destes Cadernos negros que arrastam para a infâmia uma parte do seu pensamento. Não o pensamento ‘do ser’, mas o duma história-destino e do desejo feroz dum ‘novo começo’. Inaugurar, fundar, estar no inicial, velho prurido metafísico...” (contra-capa). “Não há aqui nenhuma intenção de refutar Heidegger, diz Nancy. Pelo contrário, ao designar claramente a maneira em que ele se deixou levar e estupidificar na pior das banalidades odientas, até ao insustentável, pode-se trazer maior clareza ao que deveria ter ele próprio visto e que em todo o caso nos deixa como discernimento a fazer” (p. 65).
4. A importância que eu lhe dou no meu trabalho não fica contaminada, terei que me auto-criticar? Digamos que estas congeminações de Heidegger – que ele buscava nos últimos anos sob o motivo do Ereignis enquanto Acontecimento ontológico que recomeçaria a história da humanidade (Grécia, Europa, Alemanha...), uma espécie de novo paradigma civilizacional, se estes termos não lhe fossem estranhos  –, nunca me interessaram (nem sequer as compreendi, o que Nancy contou foi novidade para mim), como se a sua adesão ao nazismo m’o tivesse desqualificado a esse nível. Mas foi sobretudo a minha leitura de Tempo e Ser (1962), do Ereignis enquanto o que dá ser e tempo aos entes e esconde a doação para os deixar ser, que me orientou para “as coisas mesmas” da fenomenologia com as ciências, para o que diria (ironicamente) ‘um novo começo’ em relação à Physica de Aristóteles que ele lera em 1940 (mas Heidegger veio ter com Derrida, por cujo duplo laço estas minhas coisas tinham começado já uns anos antes). Daí que a questão do nazismo não me perturbasse a reflexão. Mas é a questão do silêncio do pós-guerra sobre a Shoah que recebe com estes textos, que Heidegger deixou para publicação póstuma, uma luz dolorosíssima: como se a exterminação de Judeus conviesse à sua conjectura filosófica. É certo que só se conhecem por agora os cadernos até 1941, não ainda os do tempo em que ele soube da Shoah, mas já se deixa compreender o seu silêncio sobre ela! É insuportável!

É do estrume que se nutrem as plantas, do perigo que vem o que salva
5. Felizmente veio Daniel Sibony – o improvável filho duma família judia de Marrakeche, cuja língua materna foi o árabe, e que aprendeu também o hebraico[2], emigrando para França onde obteve um diploma de matemática antes de se tornar psicanalista com Lacan e de se doutorar em filosofia com Desanti, tendo Levinas e de Certeau no júri – Sibony, um filósofo que lê hebraico e transforma completamente a relação entre pensamento filosófico e pensamento bíblico: descobre que, aquém da divindade, há um pensamento da Bíblia, que foi esse pensamento que fecundou o Dasein heideggeriano mas igualmente que sem Heidegger não teria sido possível descobrir o pensamento profético. Ponto de ordem para dizer que, encantado com esta espantosa iluminação recíproca dos pensamentos, do hebraico e do que vem do grego, sou todavia insuspeito, se posso dizer assim: não me reconheço nem na leitura que Sibony faz de Heidegger nem na que faz da Bíblia: em ambos os casos adopto uma postura histórica e textual que ele ignora metodologicamente. “Qualquer exegese bíblica séria segue a órbita de cada palavra através do corpus e encontra-se, junto de outras constelações, abertas às interpretações”, explicita uma nota na p. 196: esta exegese de palavras que as solta do contexto textual, que é também a maneira como trabalha sobre Heidegger e recobre aliás boa parte da maneira de trabalhar do próprio pensador alemão, dispensa qualquer consideração de ordem cronológica ou de problemática do texto em que as citações ocorrem[3]. A sua abordagem é, por assim dizer, uma reflexão filosófica sobre a semântica da língua hebraica encontrada nos textos bíblicos[4], portanto sem oposição entre língua e texto, tal como Heidegger interpreta longamente termos gregos nos textos dos filósofos que lê. E sendo óbvio que me falha a competência para discutir a argumentação a esse nível (não sei nem hebraico nem alemão), a minha maneira diferente de ler esses textos incapacitou-me de formular um discurso coerente sobre as leituras, de conjunto e de confronto, que ele faz de ambos os corpus. Quem quiser saber mais, terá que o ler.
6. A operação inicial e decisiva de Sibony é efectuada sobre o tetragrama divino YHVH (lido como Yahvé), que é um “anagrama do ser (literalmente HVYH), o ser conjugado nos três tempos” (p. 8), “anagrama de ‘ser, será, foi’, que inscreve também o presente” (p. 10); “o Deus bíblico, que é a verdadeira invenção deste Livro, chama-se o ser” (p. 11). “Por detrás do Deus da religião – o vulcão do ser estrondeia sempre, no silêncio ou na violência – é o ser que fala e se inscreve no tempo. O Yahvé bíblico (YHVH) significa literalmente esta presença do ser captada no tempo: YHVH é um espaço de quatro letras que conjugam esta captura e as suas retomadas no tempo, cuja presença é também presença do ser, do tempo do ser; é o ser como tempo e o ser do tempo, e é a forma sob a qual o ser se oferece aos humanos” (p. 13). Diferença para Heidegger: “ele tenta falar do ser, ou melhor, do do ser (Da-sein), a Bíblia tenta fazer falar o ser, com o risco de que essa Palavra vire feitiço – como palavra absoluta de Deus –, risco atenuado pelo facto de que ela coloca-se como infinitamente interpretável” (p. 11-2). Trata-se pois dum “anagrama”: YHVH não é o verbo ‘ser’ (o que seria semanticamente impossível), apenas uma aproximação, o que implica, parece-me, que Sibony procede a uma hipótese de leitura que a sua fecundidade confirmará. Poder-se-ia chamar a esta operação prévia da leitura filosófica a desdeificação do texto hebraico, que abre um mundo imenso de leitura fecunda: nada mais nada menos do que uma articulação possível – com pontos de fricção e critica, é claro, tudo isto releva de filosofia – entre dois dos meus principais campos de interesse intelectual, senão espiritual. Inesperado e sumamente gratificante, no outono da vida.
7. “O Livro desdobra uma linguagem, os seus autores, os escribas hebreus [os Profetas], descobrem o ser como falante e levam a sério a ideia que ‘Deus’ é uma linguagem, identificaram-no ao ser. É esta a grande descoberta do Livro: não ter inventado  Deus como Ente supremo, mas de ter inscrito que, se é preciso fazer falar o horizonte do ente humano, há que buscar numa linguagem que se pusesse a falar o ser. O ser, como presença falante e retiro falante da linguagem, é uma ideia que trama inteiramente o Texto deles e é, obviamente, a ideia principal de Heidegger” (p. 122). “Se o ser se retira, o ente poderia ser um-pouquinho-mais, mas o ser não diminui, mantém a função de ser sob outras formas. Pense-se no ser-desconhecido que atrai a ciência: quanto mais ela aumenta – mais se é sábio – mais o desconhecido parece diminuir, e no entanto quanto mais sábio, melhor se que o desconhecido ‘aumentou’. Quando o ser se retira, aumenta de intensidade e deixa um resto mais intenso do lado do ente humano. O traço e o retiro de ser são metamorfoses do ser que continua, que se revela ainda no limite do seu retiro: há ser-ainda, idêntico e diferente. Não é a simples presença constante dos pensadores gregos. [...] A sua estética e a sua matemática testemunham-no: elas excluem a falta, o buraco, as quebras, as formas ‘feias’, irregulares ou caóticas. E se o ser é constante, em que é que se torna o acontecimento de ser senão na imagem dum modelo? A réplica dum ídolo ou duma ideia? [o eidos definido!] Há que visar a inconstância do ser. O ente, ‘os filósofos gregos experimentaram-no como ente presente, porque o ser vinha-lhes falar como a própria presença’, diz Heidegger. É um eco preciso de centenas de frases do Livro do tipo: a palavra do ser veio falar com (segue o nome do personagem). Estes alvos são acuidades [agudezas, finuras] da presença falante, incluindo a acuidade da sua ausência. Deste ponto de vista, o ser-tempo erra até se falar em tal corpo, erra num batimento de presença-ausência que ritma os tempos cruciais da existência, como nascer, transmitir, receber, desaparecer, com ‘resto’ que existe” (p. 96). Isto é, o ser vai errando pelos humanos até encontrar quem o ouça e se lhe abra, se abra para transmitir a sua palavra, dizendo “eis-me aqui”, expressão bíblica de vocações proféticas que no capítulo 1 Sibony faz equivaler ao heideggeriano Dasein, o humano aberto ao ser.

Paradoxo do narcisismo que preconiza ‘abertura’
8. “Não é pequeno paradoxo que seja um Heidegger que toca no núcleo do ser que fala na Bíblia hebraica, e não os numerosos pensadores judeus – como Husserl, Levinas, Buber, ou Rosenweig... [...] A ideia dum laço entre [pensamento filosófico grego e pensamento judeu] não foi retida, nem o facto de que os Gregos puderam colocar em conceitos abstractos ideias que os Hebreus dramatizavam nas suas narrativas e na sua Lei, retomando eles próprios, em parte, fundos espirituais do Oriente, médio ou próximo. Percebi este paradoxo desde há muito tempo nas minhas leituras de Heidegger: uma sensação de estranhamento em que reconhecia o seu pensamento como vindo de outro lado: era para mim hebreu (claro, transparente), algo de já visto ou ouvido sob outras formas. Encontrava-me diante dum pensamento da origem que escondia-se a sua própria origem. E tinha-o conhecido sob forma não de conceitos mas de acontecimentos, reais ou míticos (por vezes reais porque míticos quando o mito está bem ancorado na vida). É assim que a Bíblia hebraica desenvolve a sua abordagem do ser. Ela comporta uma experimentação da falha fundadora, em vez duma linguagem sobre a questão do ser. Um dos seus primeiros actos é retirar os seus leitores do lugar narcísico de serem os seus primeiros destinatários: colocando-os de imediato como infiéis, impõe-lhes uma décalage (diferença de níveis) que não é senão o desvio ontológico entre o ser e aquilo-que-é” (p. 12). Em vez do Ente imutável grego, o ser-scontecimento (Ereignis, de 1962, a que Sibony alude na p.158): uma diferença ontológica em que a temporalidade se joga nos dois níveis, em vez da oposição grega eternidade / temporal. O próprio Heidegger só lá chegou no final da sua vida, aos 73 anos.
9. “O retiro do ser é duplo: retirar-se [o ente humano], ele [o ser] retira-se. Também o apelo de ser é duplo: apelo do ser, apelo ao ser. Isto pode aclarar a oposição entre os que fazem apelo ao ser (que sentem portanto o seu afastamento) e os que não fazem apelo porque são como entes, seu único horizonte de ser. É a mesma oposição entre idolatria e tomada em conta do ser, que habita todo o Livro. Num sentido, a única falta radical que este denuncia é a idolatria, em que o ente [humano] se coloca como absorvendo o ser, tornando-se assim aquilo que o faz ser ele mesmo” (p. 31). Ou seja, ignorar o ser e os outros, fechar-se no que se é, no que se quer: narcisismo, dirá mais adiante o psicanalista. Ou seja, uma ‘autonomia’ que ignora a heteronomia que a dá e, retirada, a sustenta, que se afirma arrogantemente como única senhora de si, moderna.
10. Permita-se-me uma digressão sobre o que seria o horizonte da laicidade diante da proliferação de ídolos desta modernidade – o dinheiro enquanto riqueza (e não como meio de liberdade de comprar com o seu salário ou pensão) ou os lugares de poder, politico ou mediático –: uma espécie de ecologia radical, fruidora e frugal, epicurista. Espiritual é o/a que não sacrifica ao Dinheiro, ao César, ao Deus dos mortos e outros pensamentos únicos. Livres e solidário/as, já que recebendo-se criticamente dos antepassados e reinventando-se-os.
11. Voltando ao narcisismo, é dele que padece o pensamento heideggeriano: o pensamento do ser era inédito havia quase 20 séculos, vem-lhe como o seu ‘próprio’ pensamento, “uma experiência fundamental do ser que se apropria a origem” (p. 151). Ora, este motivo do ‘próprio’, do ‘autêntico’, corre, segundo Sibony, “um risco, o de que o sujeito ‘autêntico’, seguro de estar acima da maralha [‘Man’, ‘on’] e dos seus partidos, longe do inautêntico do lugar ‘comum’, se corte do ser, que o rebata sobre si próprio. O que é que garante esta ‘propriedade’ ou esta ‘autenticidade’? o seu carácter originário? E se justamente a origem fosse partilhada, em pedaços? [partilhada] entre o Dasein, o ser e o outro [...], a ideia de ser autêntico como o que há que ser posto à prova. [se bem entendi, foi este retomar do pensamento dos antigos Gregos (§ 16) que ‘encheu de ser’ – idolatria, o que hoje se diz ‘arrogância’[5] – o que se quis ‘aberto’ para ele, mas dele se encerrou narcisicamente] Do ponto de vista do ser, continua Sibony, a esfera do politico oferece os mesmos problemas, os mesmos riscos e impasses do que a esfera do pensamento” (p. 149-50). Longe de ser “um professor ‘que não sabia nada de politica’, a política deslumbrou-o. Não foi ‘em politica’ que ele foi ingénuo, foi na ideia de que o seu pensamento próprio do ser podia assim realizar-se. [...] Não programado para se realizar, estava a pontos de o ser, ali aos seus olhos. A cegueira narcísica levada ao seu cume pela sua ‘realização’” (p. 151). Atrás escrevera: “Heidegger, à sua maneira, assume a palavra do ser apenas por sua conta, a sua lei ou a sua necessidade não provindo senão do seu pensamento dessa necessidade. E compreende-se que quando ele vê na realidade cruzar-se o seu pensamento da assumpção originária do ser e a assumpção pelo seu povo do seu destino, o traumatismo – sem dúvida cheio de gozo – foi de tal maneira que não olhou mais longe, nem questionou o que ele via. [...] Ainda menos perscrutou o projecto de apagar o outro cuja existência contestaria essa assumpção. A sua adesão ao nazismo foi de alguma maneira o seu momento idolátrico, como o povo judeu teve um, pouco depois de ter recebido a Lei do ser” (p. 74). Paradoxo recalcado dum pensamento que preconiza a ‘abertura’ ao ser e se revela idólatra quando o pensador se declara nazi, incapaz de diagnosticar uma equivalente cegueira politica. “O nazismo, identidade pura por excelência, não apenas no sentido radical, biológico, mas no sentido em que exige a transmissão idêntica, do idêntico” (p. 152), do próprio e do autêntico: as raízes e a origem, a exclusão do outro. A autenticidade em politica e no pensamento como cegueira assinala-se assim na exclusão do elemento judaico, ao primeiro nível manifesta e barbaramente, no outro silenciado, o silêncio de Heidegger sobre a Shoah sendo talvez sintoma de que Heidegger ‘sabia’ da fonte hebraica do seu pensamento ‘sem o saber’. Talvez os futuros Cadernos negros tragam alguma luz que agora nos falta sobre esta obscuridade.

Etapas da escrita bíblica
12. Terá havido duas etapas bíblicas, uma ‘filosófica’ e outra ‘religiosa’, como Sibony pode parecer dar a entender? É difícil de aceitar uma diferença cronológica de escrita, sem dúvida que desde que esta se fez, o tetragrama divino YHVH já lhe pertencia e o respectivo anagrama; houve uma longa etapa de escrita, desde os textos proféticos de Amós, Oseias e Isaías no século VIII até ao Pentateuco com o qual Esdras no século V restaura o Templo de Jerusalém e é codificada em redor dele a religião, o judaísmo. Podem-se pois distinguir as interpretações de leitores espirituais, digamos, e as ortodoxias que o culto e a jurisprudência implicam consigo. Nesse texto da Torah, a doutrina profética é expressa no cap. 28 do Deteronómio, com as suas bênçãos para os justos que seguem a aliança de Moisés e as suas maldições para os que não as seguem. Mas o livro de Job, atribuído aliás a um edomita (não judeu), recebido após Esdras, critica esta relação entre a fecundidade das casas, campos e rebanhos e a ética dos respectivos pais; sem que Sibony dê por ela, poder-se-á reconhecer com G. Steiner (Gramáticas da criação, p. 55-61) que os cap. 38-41 de Job lhe oferecem uma bela ilustração: a força do universo terrestre e celeste fala como criação pelo Criador, cujo nome aliás tende a ser silenciado por essa época. Uma terceira etapa, se dizer se pode, é a da literatura apocalíptica, a que os evangelhos cristãos pertencem, que acrescentam uma ‘vida eterna’ após a vida terrestre, como quem aceita a critica de Job e lhe responde. Sem que eu conheça a história da tradição judaica de leitura bíblica, o que Sibony propõe é que Heidegger, sem se dar conta explicitamente, enceta uma nova etapa ao descobrir (parcialmente) o pensamento hebraico, sendo condição para que, por sua vez, Sibony o explicitasse.
13. Heidegger ‘soube’ e ‘não soube’ que tinha descoberto a questão do ser na Bíblia: ‘não soube’ já que não fez a operação de desdeificação de Sibony, como parece ser óbvio, mas a sua virulência anti-judaica, não racista na banalidade do anti-semitismo da época, só se explica por ele ‘saber’: algures no que ele sabia sem saber (todos nós temos disso, Freud ensinou-nos), ele sabia e não suportava.

A bifurcação do sentido
14. Uma maneira de entender o Dasein é atender a uma das maiores possibilidades da linguagem dos humanos, a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’ um acontecimento de palavra trazendo o seu contexto com ele: por exemplo, contar uma história do passado ou uma ficção, ou pensar, sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional da palavra. O discursivo de Benveniste (1966, p. 225-66) permite dois modos dos verbos: o indicativo presente que, com os outros índices do locução, reenvia para o seu contexto, e o conjuntivo que reenvia para esta capacidade de pensar outra coisa, guardando no entanto o suporte do ‘eu’ da enunciação (e a relação ao ‘tu’). Igualmente, o narrativo pode guardar esse suporte (numa história a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a essa possibilidade das nossas falas de ‘suspender’ o nosso contexto situacional e nos raptar algures, absorvidos, por exemplo, na leitura dum romance apaixonante? Bifurcação? Jogando sobre os dois sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido: o que nos orienta na espaço, direito, esquerdo, diante, atrás, acima, abaixo, o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de ser também noutro ‘aí’. Bifurcação: presente aqui e algures. É o que diz o exemplo que deu uma vez Heidegger, o de estando em Darmstadt pensar (junto d)a velha ponte de Heidelberg.
15. Esta bifurcação far-se-ia entre o contexto situacional de locução, o seu ‘aqui e agora’, e o contexto trazido pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[6]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para haver este envio da bifurcação, qualquer coisa, um acontecimento mínimo que interrompe, que faz associação entre um elemento do contexto e o que se joga na fala, dita ou silenciosa: um encontro com alguém, ou tal coisa que venha à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias. Esta é tão corrente que temos que admitir – complicando um pouco o Dasein – que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido entre o da situação do contexto e o do discurso da chamada consciência. Prevenção dum acidente, a palavra ‘atenção!’ chama com insistência para o contexto quando se está algures nas nuvens. É esta bifurcação que suporta o ser-o-aí, o abre além do ‘aqui e agora’.

Pensar o Ser que faz doação das coisas contingentes
16. O que é que levou filósofos gregos e profetas hebreus a pensarem o ser? Foi a compreensão da contingência de cada ente, de que cada um, em seu contexto particular de movimento, provinha, era dado, a partir do seu contexto, aberto por sua vez sobre o conjunto de todos os contextos, Céu e Terra, a que chamaram ser. Uns pensaram-no como constância intemporal, donde as essências (imutáveis, eternas) de cada coisa – mormente viva, em seu movimento de crescimento e não só – repetindo-se em ciclos e oscilações; os outros, ao invés, pensaram a não constância temporal, isto é, o narrativo ou histórico, além dos ciclos e oscilações, já que acontecimentos sempre surgem e surpreendem, abrem possibilidades ou fecham-nas. Paradoxo da teologia cristã, grega sobre dado hebraico, fazer do Deus que intervém na história dos humanos um Ente imutável e eterno, ainda que trino, fechando de vez o dogma que se impôs aos filósofos, ainda que não crentes, contra o qual Nietzsche se rebelou: foi retomar esta questão primacial, a da doação dos contingentes fora da perspectiva dum metafísico Ente supremo, que foi o gesto radical e intempestivo de Heidegger.
17. O que é o ser em Heidegger, doação que se dissimula, retira? É a phusis (Como se determina a phusis na Physica de Aristóteles), a Terra (Origem da obra de arte), isto é, a totalidade integrada dos entes em que eles foram / são / serão dados. O que implica este motivo de ‘totalidade’ é que não se trata de ‘entes’ definidos segundo as suas essências, estas não são ‘entes’, não são ‘coisas’: trata-se de algo como uma essência geral fecunda de acontecimentos (é isso a phusis dos Gregos). A essência dum cavalo só em cavalos e éguas, mas há nela a potência deles que os doou/doa/doará, os faz reproduzirem-se na cena ecológica: o ser está do lado desta cena ecológica e portanto da multiplicidade de essências de vivos, como phusis, que engloba quer a solidez, a liquidez, o gasoso da terra e o fogo, quer as habitações humanas. Ou seja, o ser é mesmo a phusis total, a Terra ontológica que deu/dá a terra ôntica dos vivos e humanos: o retiro é o deste nível total ontológico, da doação, mas é também o retiro fenomenológico que as ciências permitem perceber (da mãe mamífera no parto, por exemplo), a ‘regra’ da doação da phusis; sem oposição entre ‘dois’ níveis, ‘dois’ retiros (a diferença ontológica é ‘una’). Ora, o que é que falta aqui? O tempo. É o que o Ereignis introduz, como phusiss-acontecimento que dá ser e tempo a cada ente. E então há aproximação ao ser bíblico que fala, perde-se a constância ou imutabilidade grega das essências para que os acontecimentos ônticos sejam doação do Ereignis como phusis-acontecimento. Então, e a fala? Ora bem, o Da-sein desde Ser e Tempo que é ‘ser’, o ‘aí’ do ser, isto é, que no seu ‘ser’ é questão do ser, na medida em que esteja aberto a ele, à questão que a linguagem lhe permite colocar, no sentido em que ela lhe dá a possibilidade de ser aonde se situa e de ser em simultâneo aonde fala ou ouve, além do que vê e daquilo em que mexe. Ora, entre falar e ouvir há uma clara prioridade do ouvir que chega primeiro: as falas que chegam aos ouvidos fazem bifurcação do sentido, falam do que há além do que se vê, é onde radica o ser que fala!
18. O ser bíblico foi encontrado por Heidegger no Ereignis de 1962, como mais adequado ao mundo dos entes do que o sereno ser grego: o Ereignis dá acontecimentos, e dá-os em resposta, se dizer se pode, às situações dos entes que acontecem, por via da relação dessas situações-acontecimentos com a ‘totalidade’ de situações-acontecimentos dados pela Terra à terra. O que significa que não haja oposição entre os dois ‘níveis’, ontológico e ôntico, que a doação, que justamente se retira, não é determinante dos acontecimentos que doa, que os deixa ser como imotivados, definição de ‘acontecimento’. O retiro da doação é a grande descoberta do pensamento heideggeriano, ela permite que a oposição metafísica transcendência / imanência não tenha cabimento, tão pouco a diferença ontológica Ereignis / acontecimentos é uma ‘oposição’. Talvez a ciência meteorológica possa servir de ilustração: que os meteorologistas consigam prever razoavelmente o tempo da semana que vem através de medições de ‘entes atmosféricos’ (pressões dos ventos, nuvens, temperaturas, pluviosidade, sei lá) mostra que o tempo depende da totalidade das condições da atmosfera da terra, sendo esta ‘totalidade’ o que faz doação dos tempos a cada região; que eles falhem por vezes mostrará que não há determinação nessa doação.

Uma ben(mal)dição
19. Mas eis que o que assim me deslumbra, eu que já não esperava novidades de monta no meu caminho, eis que esta iluminação do pensamento traz consigo as trevas do anti-semitismo. Com uma imensa denegação, que torna Heidegger um caso psicanalítico-filosófico extraordinário, porventura um caso de psiquiatria do pensamento. Onde se dá a ver como o ser dá o luminoso e o sombrio misturados, o mal no coração do bem. Ben(mal)dição: todos os que nascem, plantas e animais, nascemos mortais, o que nos doa é também o que nos dói.






[1] “Saber racial,, saber pré-histórico, saber do povo constituem o fundamento ‘científico’ da visão do mundo pópulo-política” (Nancy, p. 25), escreveu ele criticamente em 1941.
[2] São duas línguas da mesma família semítica, o árabe e o hebreu, próximas como as línguas latinas, sendo fácil a quem fala uma aprender a outra. Sendo o hebreu ensinado em criança na tradição judaica, neste caso pode-se dizer que Sibony tinha o hebreu como língua quase materna. As considerações biográficas colhi-as na Web.
[3] Ele não privilegia, por exemplo, os Profetas como escritores da Bíblia hebraica, como eu faço; não sei se tem sequer alguma noção da reformulação da exegese do Pentateuco no mundo exegético cristão dos últimos 40 anos.
[4] No final dos anos 60, o exegeta inglês James Barr publicou um livro Semantique biblique que criticava fortemente os exegetas cristãos que forneciam a certos termos hebraicos, inclusive na respectiva tradução em línguas modernas, significados ‘teológicos’, propondo ele que, pelo contrário, esses termos eram equivalentes semanticamente aos de qualquer língua. Tendo lido o livro há mais de 40 anos, creio que Sibony retoma o desafio de forma filosófica, mas sem nunca largar o texto para a língua só.
[5] Que manifesta claramente a quase ausência de citações de autores contemporâneos nos seus textos, em contraste com a maneira como Derrida praticamente só escreve lendo textos doutros e desconstruindo-os afim de poder pensar, pensando pois sistematicamente com outros.
[6] É conde se situa, me parece, a ‘verdade’ do que se chama dualismo, ou mesmo idealismo, cujo erro consistirá em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio e cogito, objecto e sujeito. 

sexta-feira, 6 de maio de 2016

A relação entre as duas Bíblias, a hebraica e a cristã



1. Não vale a pena repetir o que escrevi há 3 anos, para o qual remeto o leitor sobre aquilo em que consiste o coração da Bíblia hebraica, a narrativa ficcionada duma aliança entre o Deus dos Hebreus (depois Judeus) e o seu Povo, uma aliança ético-política que inspira o direito religioso e comum que o livro do Deuteronómio desenvolve em sequência da Lei em 10 mandamentos, o Decálogo, que os pais de cada casa hebraica devem seguir fielmente, o Deus comprometendo-se a fecundar-lhes as culturas e os rebanhos, a garantir-lhes as vitórias nas guerras.
2. A Bíblia cristã foi escrita na sequência dos acontecimentos relativos a Jesus pelos seus discípulos, considerando-o o Messias que esperavam enquanto judeus, os diversos textos estando compilados na segunda metade do século II da nossa era e acrescentando-se aos da Bíblia hebraica, traduzida em grego, e crismada com o termo de “Antigo Testamento”, em contraste com os textos cristãos, o “Novo Testamento”. O termo ‘testamento’ é latino, parceiro de ‘testemunho’, e traduz o grego ‘diathèkè’, que significa ‘aliança’; a aliança é testemunhada pelos textos proféticos, a figura de Moisés testando tanto o Deus que lhe deu o Decálogo como o povo que o aceitou por representação dele. A figura da aliança existia entre dois reinos que estiveram em guerra, o vencedor mais forte comprometendo-se a garantir a segurança do vencido, que lhe prestará vassalagem, contributos. A Bíblia hebraica conta como o povo hebraico se revelou infiel à aliança: primeiro o reino do Norte, Israel, vencido pela Assíria no final do século VIII, depois o de Judá pelos Babilónios no início do século VI, sendo certo que a exigência ética que os Profetas propuseram, nunca povo nenhum em alguma parte do mundo com algum desenvolvimento agrícola e técnico foi capaz dessa quase santidade colectiva. Daí em diante, com a excepção dos dois séculos de vassalagem aos Persas que lhes garantiu uma paz que deu azo ao acabamento da escrita da Bíblia e à sua colocação no centro da religião judaica (ironia da história, ó Israel de hoje, foi o Irão que te salvou nesses dois séculos em que foste vassalo dele!), a partir da vitória de Alexandre sobre o que os Gregos chamavam ‘Pérsia’ (que era o nome da região do Irão por onde eles o invadiram), nunca mais os Judeus escaparam a vassalagens pesadas, primeiro dos Selêucidas (capital Antioquia) e depois de Roma, contra quem se rebelaram em 66 da nossa era, a derrota de 70 foi o fim do Templo e da nação, com a Diáspora que se iniciara na Babilónia quase sete séculos antes a consumar-se por todo o império.
3. Foi no contexto desta ameaça que se desenvolveu nos dois últimos séculos antes de Cristo uma literatura apocalíptica que tirava as consequências da ocupação estrangeira e da incapacidade das classes dirigentes (a revolta da família Macabeu deu origem a uma dinastia que veio a vergar-se à cultura do ocupante) para anunciar que o Deus da aliança enviaria um Messias que os libertasse, onde eles não podiam. Assim creram João Baptista, Jesus, Paulo e Marcos, o autor do primeiro evangelho, escrito logo a seguir à derrota do ano 70 e anunciando o fim dos tempos para muito breve pelo próprio Jesus de que ele narrava a acção e a crucifixão e anunciava a ressurreição e o retorno iminente, agora que Israel acabara e a aliança deixara de ter outro sentido do que o dessa vinda. Digamos que para estes Judeus essa vinda era mais do que uma ‘prova da existência de Deus’, como nós diríamos, era a ‘certeza’ de que Ele era fiel à sua aliança. Eles não se viam como ‘cristãos’, mas como judeus que estão a chegar ao termo, a Bíblia para eles é a Bíblia hebraica; o próprio evangelho de Marcos é uma espécie de texto suicida, já que destinado a deixar de existir quando o fim dos tempos se concretizar.
4. Deste ponto de vista, a dos próprios textos quando começam a ser escritos – as cartas de Paulo já o tinham sido, ele fora morto em Roma na década de 60 –, a relação entre as duas Bíblias é mais complicada do que parece. Assim como no texto “A Bíblia hebraica revisitada” falei na operação de pensamento que é a redução dos usos económicos e políticos da monarquia israelita pela ficção do deserto do livro do Deuteronómio que conta a aliança na montanha com Moisés, esta operação do pensamento bíblico[1] foi retomada pelos textos apocalípticos cristãos, os de Paulo, Marcos e Mateus: agora, não é o deserto que serve de contexto à redução, mas o próprio tempo, como diz a primeira palavra de Jesus, “os tempos estão cumpridos, o Reino de Deus está próximo”, este ‘reino’ sendo, como outrora no livro do Êxodo, o Deus da aliança que recupera o seu povo da escravidão a que Roma o submete. É o que se entende bem na perspectiva da Bíblia hebraica, o evangelho de Lucas di-lo claramente na primeira metade do hino que ele põe na boca de Zacarias, o pai  de João Baptista (Lucas cap. 1, 68-75), tanto mais significativo quanto Lucas é o evangelho que rompe com este carácter apocalíptico, após o desmentido da história: o Reino de Deus anunciado não veio como se acreditou, espectacular, cósmico. Em que é que consiste esta redução escatológica? Pode-se dizer que é ela que, implicitamente, Agamben desenha no seu belo comentário da carta de Paulo aos Romanos (Le temps qui reste), em torno do comentário do verbo grego katargeô (inverso do aristotélico enêrgeô, activar, obrar), que traduz por ‘desactivar’ (os “poderes deste Mundo”). Paulo preconiza que se usem os usos do tempo quotidiano como se não se usassem, já que o mundo vai acabar, esses usos também acabarão, não merecem que se lhes dêem uma preocupação especial, não valem senão transitoriamente. “Os que usam deste mundo [façam] como se não usassem” (1ª carta aos Coríntios cap. 7, 29-31), porque “o tempo faz-se curto”, contracta-se diz Agamben, “a figura deste mundo está a passar”. Ter mulher, comprar, chorar ou alegrar-se, são exemplos de desejos que não valem já, há que os deslocar para os desejos do messiânico que vem: em paralelo, acrescente-se, com a maneira como no Fédon de Platão os desejos deste mundo se devem deslocar para os da virtude e do pensamento, como os espirituais de várias civilizações entenderam as suas vias como rupturas com os ‘valores dominantes’ nas suas sociedades.
5. Houve dois grandes fracassos nos acontecimentos históricos do século I em que o cristianismo apareceu. O primeiro foi a condenação de Jesus seguida da sua morte, ele que anunciara o Reino de Deus próximo e cuja última palavra, ainda segundo Marcos, foi “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, dita primeiro em aramaico e só depois traduzida para grego, como um selo a atestar a historicidade desse clamor final da narrativa, totalmente inesperado. A resposta dos textos a este fracasso foi a crença na ressurreição de Jesus e a dedução, a partir daí e a começar por Paulo, cujas cartas são os primeiros textos cristãos, de que ele era o Messias que havia de vir, invertendo-se assim o carácter ‘triunfante’ da perspectiva escatológica: para os Judeus, era difícil de entender que um condenado à morte pudesse ser o Messias. Paulo passou aos pagãos de língua grega, vieram-lhe discípulos, multiplicou as assembleias convocadas (ecclesia em grego), acabou morto em Roma, como aliás também Pedro, um dos principais discípulos de Jesus em vida. A geração destes primeiros dirigentes está a acabar, há uma palavra de Jesus que anunciava que a escatologia se consumaria havendo ainda vivos alguns dos que estavam com ele (Marcos cap. 9, 1), o texto escreve-se após a derrota de 70 e o incêndio do Templo, o seu autor em Roma recebe a notícia e compreende que a palavra de Jesus se vai cumprir e para isso escreve o seu texto: “leitor, compreende” (cap. 13, 14). Mas todos morrerão e não houve o final cósmico anunciado, foi este o segundo grande fracasso, o crucificado ressuscitado não voltou, não poderia haver convertidos duma terceira geração de Judeus[2]. Este duplo fracasso cortou a relação entre as duas Bíblias.
6. Mas a Bíblia cristã ainda não existia, Paulo era um judeu que se referia à Bíblia hebraica e nunca lhe passaria pela cabeça que as cartas que escreveu às suas comunidades viessem a equiparar-se à Bíblia de Moisés e dos Profetas, que ele cita com frequência. Todavia ele escreve entre duas narrativas, a da ressurreição de Jesus e a da sua vinda gloriosa em breve, cita a Bíblia na época dos “tempos cumpridos”, tempos em que essa Lei moisaica chegou ao fim do seu papel pedagógico, como ele foi levado a compreender com o acesso dos gentios gregos à fé no Messias e com a inutilidade de muitos dos usos preconizados por essa Lei em fim de rota. Para ele, como para os outros judeus crentes em Jesus Messias, os escritos, ainda que inspirados, chegaram ao fim, deixarão de ter algum papel quando da consumação dos tempos, face ao próprio Deus. Não haverá logicamente mais bíblias! E como, após os dois fracassos, não haverá mais judeus para se converterem a um Messias crucificado e que não se revelou cosmicamente como Messias, o que chamamos cristianismo como acontecimento originalmente judaico deveria historicamente ter-se extinguido, ou pelo menos reduzir-se a algumas assembleias de que temos indícios históricos até ao século IV. Mas tinha havido um truque da parte de Paulo que se revelou decisivo para impedir essa extinção precoce por falta de crentes judeus, um truque eficaz para os gentios messiânicos (ou cristãos, ‘cristo’ é a palavra grega que traduz ‘messias’): ele descobriu uma maneira de designar o que, judeu, ele chamava Messias, um ser celeste que se manifestaria no final dos tempos, uma maneira conveniente para os crentes em Jesus de origem grega, o Filho de Deus. Deus nunca é dito na Bíblia hebraica ‘Pai’ nem o povo de Israel ou alguém mais justo ou santo é dito ‘filho de Deus’. De maneira que, quando, em todas as suas cartas desde a primeira, Jesus, dito Messias, é também dito Filho de Deus, trata-se duma expressão inédita que se pode atribuir à própria invenção de Paulo, o qual aliás na última, aos Romanos, explicita esta designação grega assim: “[...] nascido da semente de David segundo a carne, definido (horisthenos) filho de Deus em dinamismo segundo o sopro de santidade pela (ex) ressurreição dos mortos de Jesus Messias o Senhor nosso” (cap. 1, 3-4). O verbo horizô é aquele com que Platão diz a definição que Sócrates inventou e que ele utilizou para dizer as Formas ideais celestes[3], ou seja Paulo utiliza este verbo para dizer o Jesus ressuscitado como ser celeste no pensamento grego, sem que as principais versões francesas do texto o assinalem, creio que ninguém tinha dado por isso; mesmo os filósofos não estão habituados a dar um lugar decisivo à definição como operação de escrita gnosiológica (que reduz os contextos particulares dos definidos para conhecer as suas ‘essências’) nem para ligar definição e Formas ideais, como as citações da nota 3 fazem. E com mais forte razão os exegetas bíblicos ignorarão o alcance do verbo utilizado por Paulo (nem Agamben deu por ela!), pelas consequências que resultarão daqui: é que deduz-se deste texto, aliás mesmo sem ter em conta o verbo, que foi a partir da (ex) ressurreição que, segundo Paulo, Jesus foi feito Filho de Deus! O que significa que ele não supõe a chamada ‘incarnação’, como o evangelho de João parece supor e algumas cartas pós-paulinas (Colossenses e Efésios), bem como a inserção dum hino gnóstico em Filipenses (cap. 2, 6-7), que nem sequer menciona a ressurreição, fulcro da teoria paulina. Acresce que os textos do século II dos chamados Apologistas gregos, Carta a Diogneto, Aristides, Quadratus, Hermas, Taciano e Atenágoras, que se dirigem a intelectuais e autoridades do mundo greco-romano, não falam de Jesus nem de Messias ou Cristo, apenas de “Filho de Deus”, confirmando que se trata dum título celeste grego, da divindade de um dos vários cultos de origem no Próximo Oriente que proliferavam na época no império romano, que foi como o cristianismo foi então recebido.
7. Se o cristianismo vingou após os seus dois fracassos iniciais em mundo judaico, isso só foi possível pela sua grecização acentuada e pelo afastamento do mundo judaico de origem. Na segunda metade do século II, coligem-se os textos do que será dito o Novo Testamento que se acrescentam ao que se torna o Antigo Testamento, cuja problemática ético-politica em torno da aliança já sofrera a redução escatológica e se tornou o anúncio profético da vinda de Jesus como Messias, que estabeleceu uma Nova Aliança (ou Testamento) de que as assembleias cristãs e a sua união como Igreja são os novos crentes, em vez dos Judeus (culpados de terem morto o Messias!). Mas é o predomínio do discurso platónico com o filósofo cristão Orígenes de Alexandria (185-254) que se vai exercer sobre o conjunto dos textos bíblicos, com redução platónica da corporalidade e do narrativo: este vingará, sem dúvida, na liturgia, em que a festa da Páscoa, da ressurreição de Jesus, será o momento forte do ano, mas o corpo e a sua ressurreição cedem o lugar principal na teologia cristã à alma imortal de Platão. E aqui são as duas Bíblias que se estragam, porque as suas narrativas e discursos vão ser lidos como se tivessem como ‘objectivo’ ajudar a salvar as almas a irem para o céu! Mas o Novo Testamento leva a melhor, porque é ele que tem a ‘chave’ dessa ‘salvação, o que se tornou Antigo Testamento deixa de ter qualquer conteúdo narrativo por ele mesmo, só valerá pelo que não tem e apenas anuncia, mas de maneira pouco clara, se for verdade que esses ‘anúncios proféticos’ são fortemente rebuscados, desde Paulo, dos Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos; mas com a continuação platónica, far-se-á a teoria dos ‘sentidos bíblicos’, dos quais o mais desprezado é o ‘literal’, sendo-lhe preferido o ‘alegórico’ e o ‘espiritual’. Exemplo do século V (Wikipédia, “les quatre sens de l’Écriture”): “a mesma Jerusalém poderá revestir quatro acepções diferentes: no sentido histórico [literal], será a cidade dos Hebreus; no sentido alegórico, a Igreja de Cristo; no sentido anagógico [diz respeito ao futuro escatológico], a cidade celeste, ‘que é a mãe de todos nós’; no sentido tropológico [moral, virtudes], a alma humana”. Assim, pelo exemplo, se vê como os sentidos literais da Bíblia hebraica[4] se esvaziam ao serem interpretados como alegorias cristãs. É por isso que não há confusão possível entre ela, a Bíblia hebraica, e o Antigo Testamento da Bíblia cristã.
8. E no entanto, perdida a perspectiva escatológica e crescendo o número de crentes, a necessidade de organização estável e o devir do cristianismo como religião do império durante o século IV, deixando o estatuto anterior de ‘culto oriental’ como os outros, com perseguições até por vezes, teve como consequência inesperada o recurso ao chamado Antigo Testamento para a adopção de formas que o tinham tornado ‘antigo’ e o rejuvenesceram parcialmente. Duas me parecem dignas de nota: a recuperação do templo e da moral moisaica. Nos evangelhos sinópticos, o Templo de Jerusalém funciona como o ‘adversário simbólico’ do Messias Jesus, que lhe expulsou o comércio e anunciou a sua derrocada futura, tendo-se rasgado o véu que fechava o Santo dos Santos quando Jesus morreu. Ora bem, a Igreja de tal modo multiplicou os templos onde se instalou como religião, que estes são conhecidos em todas as povoações como ‘igrejas’, com o nome das assembleias primitivas; é certo que há uma diferença importante que torna plausível esta metonímia religiosa: ao contrário dos templos pagãos e do de Jerusalém, nos quais os fieis ficavam de fora, só os sacerdotes entravam neles para fazerem os sacrifícios, estes templos abrigavam a assembleia dos crentes. Não impede que a liturgia que neles se fazia e faz, herdando dois rituais judeus, o da sinagoga na “liturgia da palavra” (1ª parte da Missa) e o da ceia pascal (2ª parte), será concebido teologicamente como sacrifício com altar e celebrantes em vez da mesa de todos os participantes que partilham o pão e o vinho. Com os templos, também um clero será instituído inspirado nos levitas bíblicos, desde o final do século II. Quanto à moral, a Lei de Moisés, que o chamado Sermão da Montanha (Mateus, cap. 5 a7) tinha radicalizado numa ética de amor ao próximo e aos próprios inimigos, voltou a ser o centro da pregação para todo o povo, os 10 Mandamentos, a ética evangélica ficando apenas para os que, na lógica da redução escatológica, se consagravam ao celibato e à pobreza em conventos ou comunidades equivalentes: é onde mais claramente o ‘antigo’ jogou em lugar do ‘novo’.
9. Se tenho razão nesta breve reflexão (tenho um manuscrito inédito que desenvolve este e outros pontos), o que fez a chance histórica do cristianismo foi a teologia grega em que a dogmática trinitária e cristológica se definiu. Tanto quanto me parece (há muitos anos que deixei de frequentar estas questões), o recurso de Tomás de Aquino a Aristóteles não tornou a filosofia dessa teologia mais capaz de corresponder às questões que possam ser postas ao cristianismo por intelectuais de hoje: pura e simplesmente, a filosofia grega foi desconstruída pela civilização contemporânea, o que terá como consequência que a dogmática da Trindade e da Incarnação ter-se-á tornado, por assim dizer, caduca filosoficamente, sem que eu saiba da sua eventual reformulação por jovens teólogos. A noção de Filho de Deus, elaborada depois de Paulo como existente em Deus desde o início dos tempos para substituir o Messias cujo retorno foi adiado indefinidamente, teve como consequência o apagamento da Ressurreição de Jesus que está no centro dos textos da Bíblia cristã. Só que esta também se torna de difícil aceitação, eis o problema. Discute-se habitualmente a existência ou não de Deus[5], sendo certo que a noção de um Criador do mundo é hoje muito difícil de entender, sabemos suficientemente das lógicas deste para elas prescindirem dum Relojoeiro cósmico: há demasiados aleatórios nessas lógicas, assim como acasos na sua instalação para que uma ‘intervenção divina’ seja significativa; isto é, que Deus exista não altera nada nas teorias da evolução biológica, é indiferente que um biólogo seja crente ou não, o que se lhe pede é que seja biólogo[6]. Mas  ainda que se pense que Deus não existe, sobra a questão do Cristianismo, para além de muitas objecções que se possam por à sua história, nomeadamente católica (a Inquisição e a anti-modernidade, como uma mãe que repele filhos bastardos do seu seio), já que também sem ele não teria havido nenhuma espécie de modernidade, a filosofia grega que a pariu em grande parte foi dada à Europa pelo predomínio da teologia nas universidades medievais, invenção eclesiástica sem a qual não haveria invenção da Europa.
10. Além da comoção que foi a leitura do texto de Paulo Varela Gomes de há um ano, Morrer é mais difícil do que parece, a sua morte recente, contando-se como numa lenta aproximação se tornara cristão, ajuda a tornar premente e problemática a questão: como um intelectual da sua envergadura a terá encarado, ou não terá dado por ela, a questão da vitalidade da vida para a qual há fortes palavras nos textos bíblicos tendo sido predominante sobre as dimensões teológicas? Só o conheci uma vez, nos anos 80, agora teria gostado de o ouvir. Será possível confessar-se cristão sem se crer na ressurreição? Jean-Luc Nancy, por exemplo dum pensador que escreveu dois livros sobre a desconstrução do cristianismo[7] descartando a ressurreição pura e simplesmente (noutro texto sobre Deus dito a adolescentes, diz não acreditar nele mas considerar importante a maneira como se fala dele), considerar-se-á ‘cristão’ ou simplesmente um pensador do cristianismo? Outro caso notável é o de João Bénard da Costa, que foi militante católico na sua juventude e depois rompeu com a Igreja, mas nunca deixou de ser crente, não ‘apesar’ da sua grande cultura, em cinema, pintura e música nomeadamente, mas manifestando-o em muitos escritos sobre as artes e as vidas. Numa entrevista dada algum tempo antes de morrer e ainda não doente, a última pergunta foi sobre que projectos tinha e a resposta extraordinária foi esta: “conhecer Deus”. Era o último e definitivo projecto da sua vida, que culminaria todos os outros.
11. É possível que, estando perto de acabar, segundo creio, as gerações anticlericais que se sentiram abafadas pelo clericalismo na sua infância e adolescência, os textos cristãos venham a ter um lugar reconhecido nas bibliotecas da cultura, a par de tantos textos de pensamento e literatura, a poderem ser fecundos espiritualmente com muitos outros. A modernidade deve demais ao Cristianismo para que se a possa compreender ignorando este. E o Sermão da Montanha é um texto fabuloso, que deixa o Fédon a léguas, uma gramática de vida para grandes apaixonados.




[1] Não sei se noutros textos doutras sociedades ela foi também inventada ou se é uma exclusividade do pensamento profético.
[2] Há uma discussão sobre isso no texto do filosofo grego cristão Justino de meados do século II, Diálogo com Trifão.
[3] Parménides, 135c, Metafísica, 1078b18-34.
[4] Ainda que o judaísmo também tenha uma prática hermenêutica em que os sentidos literais ou históricos cedam a espiritualidades, platónicas ou não. Mas disso não sei nada.
[5] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2015/08/prova-e-provacao-de-deus.html
[6] Estou a pensar num prémio Nobel de medicina, John Eccles, cristão, que escreveu um livro com um filósofo conceituado, Karl Popper que se diz nele agnóstico, em que o título diz logo a má colocação da questão dum ponto de vista fenomenológico, mas em que provavelmente a crença cristã do biólogo jogou, embora o agnosticismo do filósofo não o tenha ajudado: The self and its brain, há ‘alguém’ que tem um cérebro! Foi o primeiro livro sobre o cérebro que li, há mais de 30 anos, mas quando chega às questões de interpretação do funcionamento cerebral, percebi que era uma lástima, o que a leitura seguinte, de Changeux, me confirmou.
[7] Que confesso não ter entendido grande coisa, sou demasiado adstrito aos textos e à historicidade.