quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Que Cristianismo, quando não se pode crer num criador ?



Argumentário dum ensaio de fenomenologia histórica e textual (inédito)

1. Por não se acreditar num criador, o Cristianismo não desaparece da história
Ele pode pelo contrário pôr-nos questões excelentes, a nós que somos seus herdeiros tanto quanto da filosofia grega, que não deixamos de ler com proveito, ainda que os seus argumentos e conceitos já não sejam os nossos. Também o Cristianismo pede para ser lido de uma nova maneira.

2. Três pressupostos desta abordagem do Cristianismo
a) seguindo a nova exegese do Pentateuco (A. Pury), segundo a qual o livro do Deuteronómio foi o primeiro desses cinco a ser escrito, três séculos e meio depois dos inícios da monarquia israelita, os Profetas são escritores pensadores da Bíblia hebraica (como os Filósofos o são da Filosofia grega);
b) a historicidade destes fenómenos é antes demais a dos textos que os contam, donde que a abordagem tenha que ser textual, seguindo as suas problemáticas e cronologias: as suas transformações, se se souber lê-las, serão também históricas;
c) religião e politica são indissociáveis na sociedade judaica, a Bíblia é um texto ao mesmo tempo espiritual e  politico. Há que evitar um postulado implícito da sua abordagem exegética (de que se trata dum livro apenas religioso), o anacronismo espontâneo de se pensar que os evangelhos foram escritos para serem lidos vinte séculos mais tarde, por exemplo que eles adoptam a separação moderna Estado / Igrejas.

3. O argumento politico: a aliança e o apocalipse
Idade do Bronze recente, séculos 15 a 13 antes de Cristo, a região do Egipto, Grécia e Próximo Oriente conhece uma civilização que tem relações comerciais, diplomáticas e guerreiras entre as suas potências, Egipto, Grécia de Micenas, Hititas [Turquia], Assírios [Afeganistão], Babilónia, diz o historiador americano Eric Cline (1177 av. J.-C. Le jour où la civilisation s’est effondrée). A Idade do Ferro levou alguns séculos para relançar os impérios, a monarquia de David (conquista de Jerusalém cerca do ano 1000) aproveitou este vazio para se afirmar em Canaã com alguma autonomia, mas depois foi tornada vassala das diversas potências, primeiro os Assírios, depois Babilónia, Pérsia [Irão], sucessores de Alexandre, até aos Romanos. O Deuteronómio foi escrito durante uma retomada de autonomia entre os Assírios e Babilónia, propondo o motivo da aliança em que o seu Deus é o soberano e Israel o vassalo (na história das 10 pragas do Egipto, é Yahvé contra o Faraó, não contra os Deuses dele), o primeiro assegurando bênção e protecção face às nações estrangeiras, se ele for fiel à ética do Decálogo e ao direito em torno do Templo de Salomão. Colocado no deserto muito tempo antes da monarquias, esta – com todos os seus usos agrícolas e costumes – é reduzida para que a relação de soberania seja claramente manifesta. Deuteronómio 28 e Levítico 26, as bênçãos e as maldições da aliança, dizem esta doutrina profética que o livro de Job, alguns séculos mais tarde, criticará no que diz respeito ao destino do justo abandonado por Deus. Após a derrota dos Iranianos, os mais tolerantes dos seus suzeranos (foram eles que tornaram possível que a Torah seja a lei em Israel), o domínio dos sucessores de Alexandre e depois dos Romanos tornou-se de tal forma poderoso, excluindo qualquer revolta militar, que gerou uma literatura apocalíptica que espera a intervenção escatológica do Deus soberano da aliança como única saída para esta opressão. João Baptista e Jesus de Nazaré inscrevem-se imediatamente nesta concepção apocalíptica, anunciando o Reino de Deus, isto é a vinda do Criador tomar posse do seu vassalo aliado e fazer o Juízo final dos humanos: “os tempos cumpriram-se, o Reino de Deus está muito próximo”. Além da figura do Messias, uma outra figura escatológica dos evangelhos é a do Filho do Humano, citada de Daniel (7,13-14, 27) como uma ascensão colectiva dos justos para o Céu e evocada no primeiro de todos os textos cristãos: “nós, os vivos, que estaremos ainda à espera da Vinda do Senhor […] seremos reunidos […] e levados sobre nuvens para  encontrar o Senhor Jesus nos ares” (1a carta aos Tessalonicenses 4, 15-17). Muito estranha aos nossos olhos de descendentes dos Gregos, trata-se da figuração da saída eterna dos justos da Terra para o Céu numa cultura que ignora a oposição platónica entre o corpo e a alma imortal. É este o contexto politico dos textos relativos às origens do cristianismo.

4. A utopia evangélica
Pode-se dizer assim a lógica destas duas figuras, do Filho do Humano colectivo subindo da Terra para o Céu para cumprir o Reino de Deus. a) ela é própria duma sociedade de economia agrícola e criação de gado que depende portanto essencialmente das fecundidades das suas sementeiras e dos seus rebanhos, das bênçãos que o duro trabalho dos campos não garante por si só. A aliança segundo os Profetas ligou a abundância das colheitas e do gado à justiça do pai da casa. É a mesa que resulta desse trabalho abençoado que faz das gentes da casa uma comunidade que partilha o que alimenta os seus corpos: em vez da individualidade da alma grega que deve ser virtuosa, aqui é o biológico trabalhado e comido para fazer biológico nos que comem, natureza depois cultura depois natureza indissociavelmente, é a mesa assim que está no coração do pensamento profético. b) o amor do vizinho, do próximo, ou até do estrangeiro vítima de ladrões, do que tem fome, sede, está nu, sem tecto, doente, preso, em suma do que não tem casa, esse amor é a mesa abençoada que dá do que ela recebeu com fecundidade aos que lhes falta, é ela que vai além das paredes das casas e das fronteiras étnicas e da segregação racial, para saciar a cem por um. c) a mesa do pão e do vinho partilhados por esses justos em memória da ceia de Jesus é o núcleo do paradigma dos textos do novo Testamento, da nova Aliança: pode-se dizer que é esta a utopia evangélica cuja figura é o Filho do Humano colectivo em ascensão para o Reino messiânico (mais fácil de desmitologizar depois da ascensão dos Americanos à Lua). O que é difícil de pensar nesta figura, é que ela resiste às nossas capacidades de especialistas: trata-se de biológico ou de económico, de religioso ou de politico, que relação tem com a ‘dignidade humana’ e os seus direitos? Sem separação entre pensamento e acção, teoria e prática, também não se trata de metáforas (vegetais ou de pastores), de imagens pedagógicas, trata-se da ‘realidade’ da vida, se se pode falar assim da fome. É um desafio ao nosso pensamento greco-romano-cristão. A utopia actual: a fecundidade global dos vivos a alimentar e a curar, a justiça da partilha em redor de si do que se recebeu, o amor do próximo. Eu não consigo, é muito difícil.

5. Paulo: o Messias, da ressurreição ao retorno em glória
As sete cartas escritas por Paulo em vida situam-se entre duas narrativas decisivas, a da morte de Jesus na cruz e sua ressurreição no passado recente e a do seu próximo retorno em glória. Escritas a fieis vindos do paganismo, elas acrescentam ao motivo escatológico de Jesus Messias, título celeste judaico, o título de Filho de Deus, mais adequado ao seu auditório. No início da carta aos Romanos (1,4), ‘ele foi definido como Filho de Deus pela ressurreição dos mortos’ assinala este título como ‘platónico’, ao utilizar o verbo definir (horizô) de Platão relativo às Formas ideias celestes imutáveis (o belo, o bem, o justo, a virtude): trata-se pois dum título celeste grego que é justaposto ao título judeu de Messias que virá em breve. Acrescente-se que, escritas antes dos evangelhos, estas cartas ignoram praticamente tudo das narrativas deles e das palavras de Jesus, reclamando-se de não conhecer o Messias segundo a carne (2a carta aos Coríntios 5,16), consequência lógica da dimensão escatológica desta figura que ele atribui a Jesus apenas como resultante da sua ressurreição.

6. Os evangelhos: narrativas do Messias antes da ressurreição
Os quatro evangelhos aceitam o desafio de Paulo nesta questão: eles constroem-se estruturalmente em torno da questão do reconhecimento pelos discípulos de que Jesus é o Messias, a confissão de Pedro sendo nos quatro a viragem decisiva, a seguir à ‘multiplicação dos pães’, nos sinópticos esta sendo o critério da compreensão messiânica de Pedro, enquanto que João, mais tardio, depende de uma outra tradição narrativa que tem poucas coisas em comum com os sinópticos e a partir da qual o autor desenvolve uma teologia bastante enigmática. A audácia sinóptica obriga-os a tentar justificar a condenação à morte do Messias, o que eles fazem predizendo-a bem como o seu desenlace pela ressurreição, predição essa que contradiz, muito claramente em Marcos, mostrei-o há 42 anos, a fina narrativa das estratégias de Jesus, desde o princípio provocado por adversários e devendo deixar as cidades, utilizando Getsemani como lugar de clandestinidade de quem não quer morrer de maneira nenhuma; também a surpresa do túmulo vazio demonstra claramente a construção teológica deste discurso de previsão, que em Lucas se tornará um plano divino de salvação.

7. Os dois fracassos e as suas saídas: a ressurreição e a passagem dos Judeus aos Gregos com pré-existência e incarnação
A ressurreição é pois a saída do fracasso de Jesus, condenado pelo poder religioso do Templo. Ela não é contada, como é óbvio já que não é fenomenológica, mas a sua lógica é messiânica: o título escatológico de Filho do Humano será deslocado do colectivo para o indivíduo Jesus, o ressuscitado subiu ao Céu sozinho; em Marcos sendo apenas anunciada, a ressurreição abre imediatamente, como em Paulo, para o retorno escatológico do Messias. É certo que isto desafia a historicidade, mas estes textos atestam historicamente, quer a crença dos discípulos, quer eles terem ultrapassado o medo de serem perseguidos após a crucifixão (Pentecostes nos Actos dos Apóstolos); a sua aventura missionária não se pode compreender sem a fé deles tanto na ressurreição como no retorno a breve prazo, antes de terem desaparecido todas as testemunhas de Jesus, como está a suceder com a perseguição dos cristãos nos anos 60 em Roma. Ora, o Templo sendo nos sinópticos o adversário simbólico do Messias, a sua destruição pelos Romanos no ano 70 é anunciada como prelúdio à grande catástrofe apocalíptica; escrevendo cerca de 71, Marcos vê nessa destruição o sinal claro do retorno messiânico iminente: ‘compreende, leitor!’, diz ele (13, 14); alguns anos mais tarde, este retorno é ainda esperado por Mateus. Que não tenha havido apocalipse, foi o segundo fracasso, que atinge em retorno o primeiro (se não voltou, é porque não ressuscitou): haverá então narrativas de aparições do Ressuscitado, mais de 50 anos após o seu assassinato politico. Para olhos judaicos, acabou a possibilidade de acreditar que um condenado à morte fosse o Messias, um ressuscitado que não voltou na glória de Messias. Algumas palavras de Mateus, segundo as quais Jesus só contava com a salvação dos Judeus, sublinham que foi a corrente aberta por Paulo em direcção aos pagãos que continuará a missão em meio helenístico, apoiando-se portanto mais sobre o título de Filho de Deus, o qual nos sinópticos não ocupa a frente da cena, mas fará fortuna em João, cerca do ano 100. Duas entre as cartas atribuídas (por epigrafia) a Paulo, Colossenses e Efésios, recuarão o Messias do eschaton,  o termo final, o Ómega, para o archê, o começo, o Alfa: os motivos da pré-existência do Messias e da sua incarnação serão desenhados nessas cartas apoiando-se em motivos filosóficos, como também o hino introduzido no século 2 em Filipenses 2, 6-1: eles permitirão desenvolver o ema do Filho de Deus, já em João mais claramente (evangelho de leitura especialmente difícil entre judaico e grego). Sucede que os intelectuais cristãos do 2º século chamados Apologistas gregos fazem a apologia do cristianismo junto de intelectuais pagãos não falando senão de Filho de Deus: neles não aparece nem a palavra Jesus nem Messias, apenas grego, nada de judaico.

8. Orígenes platoniza o discurso teológico: a alma imortal
Sem dúvida que as transformações do discurso cristão entre as dominantes judaica e grega durante mais de um século pedem análises para as quais me falta competência, mas Orígenes de Alexandria (185-253) é mais do que um testemunha, é o operador principal do extraordinário sucesso do grego platónico: com 6 séculos já de existência, ele pega neste discurso ‘oriental’ recém-nascido, como fez sobre muitos outros sem dúvida, e criou uma teologia que durará até ao século 20 pelo menos (após reforma aristotélica de Tomás de Aquino). Nesta teologia filosófica, só a alma, e aquilo que a ela se refere, é “digno de Deus”, tudo o que é corporal, narrativo, histórico, é reduzido através duma teoria dos sentidos da Escritura que busca, no que chama o “sentido literal” dos textos, o seu “sentido espiritual”: os textos bíblicos tornam-se pretexto para o espiritual platónico. A Bíblia hebraica torna-se Antigo Testamento, que apenas anuncia o Novo, espoliado da sua escatologia, e até da ressurreição (na leitura teológica). Estes motivos não são negados, mantêm o seu lugar no Credo e na liturgia onde os dois Testamentos têm o papel principal, mas não têm lugar no discurso teológico que ‘treslê’ a Bíblia: é a alma imortal que aí tem a parte do leão. Dois testes sobre a incompatibilidade entre ela e a ressurreição: em Celso, um platónico espiritual discutido por Orígenes, e no século 4  em Gregório de Niza, Sobre a alma e a ressurreição.

9. Os dogmas do 4º século: sem a ressurreição, João contra Paulo
Se é certo que Paulo não reconhece Jesus como Messias e Filho de Deus senão na sequência da ressurreição, deveremos espantarmo-nos muito ao saber que esta não tem papel nenhum nas definições dogmáticas sobre a Trindade e a Cristologia: colocada no coração das cartas de Paulo e assegurando o desenlace dos quatro evangelhos, a ressurreição de Jesus não conta no discurso dogmático dos concílios gregos, como também não na teologia que se ensinava nos seminários católicos nos meados do século 20. A incarnação da segundo pessoa da Trindade tornou-se obviamente mais importante do que este acontecimento histórico sem testemunhas sucedido ao crucificado. O evangelho de João parece levar a melhor, mas aí há que ter em conta uma dificuldade grande: pode-se ler a sua introdução (o Logos fez-se carne) e a sua palavra o Pai e eu somos um sem que os dogmas do século 4 intervenham, lê-los tendo em conta o monoteísmo judaico, portanto em precisando uma ‘unidade’ semelhante à de Paulo, se eu vivo, não sou eu, é o Messias que vive em mim? Pode-se distinguir entre judaico e grego neste texto enigmático? De forma larga, é como se João tivesse prevalecido nesta dogmática, onde o parentesco humano (a relação pai / filho) definiu metaforicamente a natureza divina. Não se trata de contestar o dogma, deixá-lo nesta filosofia grega em que ele foi formulado (que já não é a nossa), que durante longos séculos caucionou o cristianismo tornado uma ‘instituição divina para a salvaão das almas’, sem grande coisa a ver com as narrativas evangélicas.

10. De movimento espiritual, o cristianismo torna-se religião do conjunto social e assume a moral do Antigo Testamento, o Decálogo, deixando a ética evangélica para os monges e outros espirituais
Um dos maiores obstáculos das leituras correntes dos três primeiros séculos do cristianismo é tomá-lo desde o princípio como a ‘religião’ em que ele se tornou depois de Constantino e Teodósio e que formatou a Europa. Nesta religião, são os bebés que são baptizados! Ora o baptismo apelava à conversão dos adultos, dos crentes que tiveram durante três séculos de sofrer hostilidades sociais mais ou menos fortes, por vezes muito mortíferas, da parte do império que tinha executado aquele que era a referência divina da fé deles. O que era um movimento espiritual minoritário tornou-se o envolvente do conjunto das populações, participando do poder politico de César e do Dinheiro, tornado semelhante à instituição que nos sinópticos era o Templo do “Deus dos mortos”. Além do baptismo das crianças, a adopção do Decálogo do chamado Antigo Testamento como moral social diz muito sobre esta diferença, já que se vê logo no século 4 romperem movimentos espirituais no deserto, depois com são Bento, que se reclamam da ética escatológica abandonada pela instituição religiosa, que nem sequer traduziu os textos latinos da liturgia quando as pessoas deixaram de compreender a língua. Mas há que saber que sem Platão e sem Constantino o cristianismo teria desaparecido da cena histórica, como sucedeu aos outros cultos espirituais de origem asiática que proliferavam como ele no império romano.

11. O duplo laço das Igrejas cristãs: a liturgia de fonte judaica (que se repete) e a teologia grega e o aparelho romano que se reforma consoante as diversas épocas históricas
A diferença entre o que vem do judeu e o que vem do greco-romano permitiu caracterizar a estrutura das igrejas cristãs por uma articulação dupla. Dum lado, a liturgia herdada da sinagoga em torno das leituras da Bíblia e a dos gestos de partilha do pão e do vinho em memória de Jesus morto e ressuscitado tem um carácter que se pode dizer repetitivo, o que se pode chamar o eclesial, relativamente comum às diversas confissões cristãs actuais; do outro lado, as mudanças históricas da civilização ocidental obrigaram frequentemente a reformas do eclesiástico, digamos, dos aparelhos de organização dos clérigos e dos seus discursos face aos outros poderes públicos assim como face às gentes de que os clérigos dizem sem rebuço serem os pastores vigiando as suas ovelhas. Dois capítulos fazem um curto balanço das transformações históricas, por um lado com as universidades medievais, sem dúvida uma das mais importantes invenções eclesiásticas em relação à futura Europa, o teólogo Tomás de Aquino tendo feito de Aristóteles o seu mestre escola, por outro as reformas espirituais incessantes, quer dos movimentos de homens ou mulheres ‘consagrados’ à ética evangélica entre os católicos, quer dos movimentos protestantes e os seus revivals, por regra estas inovações espirituais tornando-se à segunda ou terceira geração mais ou menos ‘religiosa’ ou ‘eclesiástica’, abrindo caminho a futuras inovações espirituais adequadas a mudanças de civilização.

12. Uma ética da fecundidade além do que se pode
Para terminar, o texto de referência propõe uma ética evangélica, comentando o discurso sobre a montanha de Mateus, cap. 5 a 7, que se pode ler por extenso em francês no blogue Questions au christianisme.

13. A politica segundo Jesus é o serviço
A fecundidade desta ética de santos, de grandes apaixonados, não é visível talvez senão a olhos já um tanto abertos ao espiritual. Mas ela também implica uma politica: “vocês sabem que aqueles que são vistos como chefes das nações [os reis] mandam nelas como senhores e que os grandes fazem-lhes sentir o seu poder. Entre vocês não deve ser assim: pelo contrário, quem queira ser grande (megas), far-se-á vosso servidor (diakonos) e o que quiser ser o primeiro, far-se-á o escravo (doulos) de todos” (Marcos 10, 42-44). Megas, grande, em latim magis, donde magister, senhor, oposto a minister, o escravo, de minus, o pequeno. Foram os ‘dirigentes’ eclesiásticos que se chamaram a si próprios ‘ministros’, os pequenos, foi o deslocamento histórico do lugar deles para o da religião entre os grandes que criou a inversão semântica da nossa palavra ‘ministro’. Como é que um ministro cristão, situado num lugar de poder sobre a nação, pode responder a esta injunção evangélica? Três oposições dos sinópticos podem esclarecer estratégias de serviço politico. Primeiro, “não se pode servir Deus e o Dinheiro” (Mateus 6, 24). Ora, o dinheiro é um mecanismo de liberdade elementar, permite a cada família escolher o que, nos limites do seu orçamento, prefere para a sua reprodução. Não é portanto a sua abolição (nem do capital) que os textos evangélicos propõem, mas que não saia do seu papel nas trocas quotidianas e não se torne um feitiço de enriquecimento tornando seu servidor o seu proprietário, incapaz de servir os seus irmãos humanos. Quanto à oposição “Deus / César” (Marcos 12, 13-17), declaradamente politica, pois que a discussão sobre o imposto devido a César é uma armadilha destinada à acusação face a Pilatos, ela corresponde ao serviço politico dos ‘ministros’, sabendo que os que estão nos escalões mais baixos são os que devem ser servidos politicamente em primeiro lugar. Enfim, a oposição entre Deus dos vivos / Deus dos mortos (Marcos 12,27), no contexto o Deus dos ricos ligados ao Templo dos sacerdotes, pode-se pensar que todo o discurso de ‘verdade estabelecida’ (de “pensamento único” sob forma de ortodoxia) e de sedução (as stars) releva desta divindade mortal, enquanto “ópio do povo”, como dizia Marx. O serviço politico buscará aqui a libertação dos olhos, das mãos e dos pés de cada um, à imagem das curas taumatúrgicas de Jesus: tornar as pessoas autónomas e solidárias. Numa palavra, o Cristianismo que aprendemos de Jesus é este sopro do amor do próximo como graça que cura os nossos desejos, os torna ligeiros, fecundos.

14. Sobre o Criador
O texto a que se refere este argumentário consiste numa abordagem histórica e textual dos textos relativos à história do cristianismo, a respeito de gente que acreditava num Criador e esperava na sua ressurreição no final do mundo, mais tarde que a alma deles viesse à presença do Criador após a sua morte. Estas crenças não foram nunca invocadas na argumentação, esta mitologia duma vida eterna no céu após uma vida justa na terra já não é a nossa, de neurologias sem ‘almas’. A criação é um antropomorfismo do obreiro humano para compreender a espantosa fecundidade dos seres vivos: obrou o conjunto do céu e da terra, que já está sempre cá antes dos humanos e de todas as coisas, vivas ou não. Criador de entes, como dizem os filósofos, das coisas que se vêm e se tocam; como pensá-lo enquanto criador de células e das suas moléculas complexas e frágeis, pedindo um metabolismo incessante para se refazerem, ou então dos átomos e das suas partículas fugazes, toda esta população que Bohr chamava “seres de laboratório”? Por outro lado, este deslocamento antropomórfico depende duma concepção da causalidade de tipo substancialista, que encontra o seu efeito específico no que hoje em dia se chama acontecimentos, cuja imotivação pediria uma determinação ‘metafísica’. Ora, segundo Derrida, o que está em jogo em qualquer acontecimento – no limite, tudo é acontecimento, a rotina sendo o seu grau zero – é “a unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim” (Marges. De la Philosophie, p. 7), o que um automóvel pode ilustrar, fabricado em laboratórios físicos e químicos segundo regras rigorosas em vista de fazer percursos aleatórios. Igualmente, qualquer animal na cena ecológica, a sua bioquímica bem regulada pulsiona-o à busca aleatória doutro vivo para comer, devendo fugir por sua vez de ser comido. Não tem importância alguma que um biólogo seja ou não crente, o que ele tem é que fazer biologia: não é necessário nenhuma grande Causa neste jogo de acasos e necessidades indissociáveis (a própria noção de ‘regra’ ou ‘lei’ implica que ela joga em situações aleatórias). Acrescente-se que é difícil de pensar a bondade dum Criador dos vivos que tenha posto como regra da vida animal (ciclo biológico da reprodução do carbono, elemento necessário de qualquer molécula dos vivos: fotossíntese das plantas, herbívoros que as comem e são comidos pelos carnívoros) que a sobrevivência do leão dependa da morte da gazela e esta da fome do leão, em que vence o mais forte ou o mais astuto. Foi desta lei da selva que as sociedades humanas herdaram a sua violência tecida de força muscular e de astúcia, a chamada questão do mal.

              15. Saído duma antiga paixão, no texto de referência tudo é novo, palavra.

Sem comentários: