1. Por um lado, o movimento em geral
estava no coração da Physica
de Aristóteles e o movimento local no coração da Física de Newton; por outro, as nossas sociedades
actuais, em contraste com as sociedades agrícolas fortemente estáveis, são
nelas mesmas movimentos permanentes dificilmente controláveis; ora, a filosofia
actual parece ignorar o motivo do movimento, iludida com o tempo, como se este
não fosse a medida daquele. Eis um paradoxo engraçado de pensar. A questão geral
– a dos duplos laços – foi tratada num texto longo de Janeiro de 2016 no outro
blogue, Filosofia com Ciências, aqui tratar-se-á duma abreviação, mas com variações, como se diz em
música.
2. Há muitos tipos de movimentos,
desde o movimento local marcado pela gravitação até aos movimentos dos vivos,
das células aos organismos que crescem e morrem, das sociedades, das tribos às
actuais hiper-complexas, das escritas, das linguagens e músicas aos filmes. De
forma geral, para todos estes tipos de movimento – está aí a ambição
inverosímil desta fenomenologia – qualquer movente, inerte ou alimentado (vivo
ou máquina), implica como sua condição essencial que dois sectores seus ao moverem-se
dependam de duas leis indissociáveis e inconciliáveis: não existem uma sem a outra – indissociáveis – e
a sua diferença impossível –
inconciliáveis – é a razão de ser do movimento, entre o que o ‘causa’ (motor) e o que o ‘dirige para um fim’ (aparelho regulador). Tanto aquele como este são doação (fabrico e alimentação energética) da cena de
circulação respectiva, cujas regras – heteronomia – se inscrevem neles segundo espécies diferentes
(dimensão e complexidade da estrutura dos moventes) como regras da respectiva autonomia.
3. A cena (de reprodução e circulação) não existe
enquanto ‘coisa’, ela é différance (Derrida) que reproduz os moventes: heteronomia da cena e autonomia de
cada movente relevam das duas leis indissociáveis e inconciliáveis. Dito isto,
é necessário acrescentar que há uma hierarquia das cenas, por assim dizer, cada
uma sendo o desenvolvimento por evolução (por movimento histórico da cena terrestre) de outra cena mais geral: primeiro a da gravitação, a única da circulação dos outros astros, em
seguida a da alimentação, dos
vivos, unicelulares, vegetais e animais, depois a da habitação, das sociedades humanas com seus usos e línguas,
onde enfim a da inscrição, dos
textos, se desenvolveu no Ocidente permitindo a invenção de cenas das máquinas
e da electricidade e das complexidades urbanas infindáveis.
4. Estas grandes quatro cenas não são arbitrárias,
a sua generalidade diz-se no tipo de retiro que diz respeito aos ‘motores’ dos seus moventes.
Gravitação: o retiro que é
efectuado pelas forças nucleares no núcleo dos átomos (as partículas que hoje
interessam os físicos não têm cena adequada, são pré-gravitação, creio) está na
base de tudo o que se chama no Ocidente ‘matéria’ ou ‘substância’, sem o quê as
outras cenas não seriam. Alimentação: o retiro que é efectuado do ADN no núcleo das células eucariótidas dos organismos
(os unicelulares têm uma lógica ligeiramente diferente, creio). Habitação: o retiro que é efectuado pela privatização
social (não em sentido jurídico moderno) nas unidades locais de habitação,
distinguindo estas entre si como capazes de alianças e de rivalidades. Inscrição: o retiro do alfabeto nas escritas indo-europeias
que tornou possível a invenção da definição pela escola socrática de filosofia e a teorização
da geometria por Euclides, estas
duas invenções tendo-se aliado na invenção do laboratório científico por Galileu, Newton e seus contemporâneos. As
invenções decisivas para o que se chamou revolução industrial têm dois nomes
sobretudo (que ficaram nas unidades de electricidade wattes e voltes), o do
inglês James Watt, que, em 1776, inventou uma máquina capaz de movimento devido a ser igualmente
governada por duas leis indissociáveis e inconciliáveis, o que lhe dá autonomia
relativa em relação a pilotos e lhes poupa energia muscular, o do italiano
Alessandro Volta que, em 1800, inventou a pilha como armazenamento de
electricidade e em consequência inventou a corrente eléctrica, que veio a revelar-se preciosa quase um século
mais tarde, entre outras coisas, para a alimentação de máquinas. Se lhe
acrescentarmos o nome de Guttenberg que industrializou o fabrico de livros
alfabéticos que permitiram a escola para toda a gente e a invenção anterior do
dinheiro e bancos, teremos os principais elementos das sociedades contemporâneas
ultra-cosmopolitas.
5. A grande dificuldade é que estas cenas dependem
das especializações científicas, física-química, biologia, c. sociais e
linguística, mas nesta nossa actualidade elas imbricam-se na análise dos moventes
de forma desafiadora. Basta evocar os tipos de espécies de cada cena e como são inumeráveis. F-Q: os átomos são pouco mais de uma centena segundo
a Tabela Periódica de Mendeleiev, consoante o número de protões do núcleo, este
assegurando a impenetrabilidade do átomo, que se pode unir a outros átomos
diferentes por via dos electrões (reguladores químicos) de uns e de outros que se combinam em
alianças ou transformações químicas, formando uma infinidade de moléculas
possíveis, minerais e orgânicas, consoante as condições de pressão e
temperatura. Nas condições da nossa força de gravidade, grande lei da heteronomia da Terra, que torna impossível a explosão
espontânea dos átomos, a impenetrabilidade deles diz a sua lei de autonomia enquanto moventes: inertes, serem deslocados pela
gravidade e transformados quimicamente quando o contexto próximo o favorece[1].
Biologia: nas inumeráveis espécies
de organismos animais, o sistema da nutrição e respiração que, pelo sangue, vai
a todas as células, é o motor
de energia e de ‘matéria prima’, o sistema da mobilidade – órgãos perceptivos,
cérebro e hormonas, músculos – é o regulador na cena ecológica, que busca comida e abrigo de
predadores. As duas leis são a da selva, comandada pelo ciclo bioquímico do
carbono que, heteronomia,
comanda os animais a comerem outros vivos para satisfazerem a sua
auto-reprodução ou autonomia.
Como um Banco francês que nos anos 60 dizia que “para ser franco, o seu
dinheiro interessa-me”, também algum tigre dirá a um veado que as suas
moléculas de carbono lhe interessam, para as fazer moléculas dele, que não tem
outra maneira na selva de sobreviver. Linguagem: inumeráveis línguas e muito mais textos e
discursos, cada tribo tendo a sua lei de verdade que qualquer indígena tem que aprender, sendo
corrigido dos erros e castigado das mentiras, o que leva cada um a aprender a
pensar duas vezes antes de falar, a dissimular o que lhe vem autonomamente à cabeça e a elaborar
alianças e estratégias com este ou aquela e afrontamentos rivais com um
terceiro. Neste jogo oral, por exemplo mais acessível, os paradigmas das
palavras e das frases são os mesmos para todos, a língua como heteronomia, a esperteza de cada um será a habilidade em
jogar com essas regras para marcar a sua autonomia face às dos outros, uma reflexão equivalente se
podendo fazer em relação aos usos sociais e à reputação que se ganhe socialmente
com ela. Sociedade: as duas
leis, indissociáveis – de aliança – e inconciliáveis – de rivalidade ou guerra
– explicam o movimento das sociedades, em cada unidade local, desde as tribos ao comércio e guerras
mundiais, interessando-nos aqui o das suas transformações históricas, além
portanto da sua reprodução quotidiana e segundo a sucessão de gerações. O
retiro social das unidades locais, que faz delas o motor do movimento, com laços linguísticos, de troca e
políticos a garantirem o equilíbrio possível face às duas leis, esse retiro
caracteriza o movimento das unidades pelo paradigma dos seus usos (generalizo a descoberta de Khun a qualquer
unidade social), que diz respeito a todos os indígenas dessa unidade que
aprenderam alguns desses usos e os exercem com habilidade maior ou menor,
consoante a sua complexidade. Essa correlação entre paradigma e aprendizagem
tem como consequência o carácter conservador do paradigma, a sua resistência à inovação e
portanto à transformação social. Basta pensar nos nossos computadores,
extraordinárias máquinas de escrever (para quem conheceu as anteriores e o
papel químico para ter cópias), lembrar os incómodos que foram durante meses o
termos que aprender os mecanismos deles até o fazermos espontaneamente,
desconforto que retoma quando mudamos de modelo. Os mitos das tribos selvagens,
sujeitas ainda à lei da selva com os outros mamíferos e árvores, têm como
função opor-se a inovações (Lévi-Strauss), essas sociedades são “contra o
Estado” (P. Clastres). Qualquer inovação sentida como ameaça (revolucionária)
encontra pois resistência dos
usos do paradigma, aparecendo vinda doutros como sendo da lei da guerra
(Galileu e o Vaticano), até que a aliança a integre nos paradigmas. As crises, mais ou menos prolongadas e os
conflitos de gerações, relevam desta oscilação histórica, sendo as
transformações dos costumes do ano mítico de 1968 e da década seguinte um caso
singular, que foi fabuloso de viver.
6. Olhando agora para a história do pensamento
ocidental, começa por ser impressionante que os grandes textos que o lançaram,
os de Platão, tenham sido contra o movimento, a geração e a corrupção, ou seja o nascimento e
a morte, os dois limites dos moventes, sendo vituperados e a imutabilidade das
Formas ideais exaltada, a eternidade (que por sua vez vituperava Levinas, na
outra ponta, judaica e não grega) contra a história que não passou do nível
mais baixo, o do ‘acidente’, do particular não susceptível de ciência, no seu
discípulo Aristóteles, ele que reabilitou o movimento no coração do saber na
sua Physica: a ousia – primária, a substância (particular) e
secundária, a essência (espécie), foi o motivo que permitiu pensar o movimento
como mudança da ‘substância’. Se, como o mestre, deu importância à Geometria, não
pensou todavia o espaço, mas apenas o lugar, pensou o tempo como medida do
movimento mas a tradição platónica cristianizada que nos veio menosprezou um e
outro por privilégio da eternidade, até ao Aquino. A Física de Newton, do movimento herdado da Physica, em
que o crescimento dos vivos era predominante, reteve apenas os movimentos
mensuráveis, recuperou da Geometria o espaço, a medida das distâncias entre lugares (‘metro’:
medida), como poderia ter sido definido, e introduziu nela o tempo e os relógios que o medem, e ainda as forças fora
das ‘substâncias’, inertes estas em suas massas, de que só conhecemos as medidas,
matematizadas em equações que tornarão possível as técnicas que virão. Início
da ‘des-substancialização’ do pensamento que, por via husserliana implícita (a
consciência como não ‘substância’ e a redução do mundo empírico na percepção),
Heidegger herdou e depois, com a linguística estruturalista, a desconstrução de
Derrida. Ora, esta ciência reformulada pelo suiço Ferdinand de Saussure
conseguiu recuperar a linguagem como jogo de diferenças que o pensamento latino, ao traduzir o grego logos duplamente, como ‘ratio’ e como ‘verbum’ ou
‘oratio’, reduzira a instrumento (organon, a lógica aristotélica) da ‘cogitatio’, do próprio pensamento: só no
século XIX a Filologia começou a preocupar-se com os movimentos das cópias dos
textos antigos e a fazer edições criticas, enquanto que a Linguística
comparativa estudava os movimentos de transformação das línguas indo-europeias,
donde virá Saussure e a nossa compreensão de que o pensamento é de palavras e
sintaxe que é feito, em cada língua, que a razão universal tem na tradução um
escolho de monta. A ‘substância’ aristotélica resistiu fortemente, na Biologia,
sob forma de ‘vitalismo’, até que a bioquímica das moléculas trouxe a
fecundidade que se sabe às ciências do movimento dos vivos. As ciências das
sociedades ainda hoje padecerão de não darem o lugar devido às estruturas dos
usos e seus movimentos de reprodução para se libertarem da ‘substância’
populacional com que definem sociedade. Quanto aos físicos modernos, fizeram do
espaço e do tempo, como dizer? O espaço-tempo que se encurva é uma coisa real
ou uma coisa geométrica? Em tudo o que nos deram a conhecer, há uma teoria do
movimento? Quero dizer, que dê para pensar fora dos laboratórios os movimentos
daquilo que vemos e tocamos e sabemos, das coisas e dos carros, dos vivos e das
sociedades humanas, das suas linguagens e de cada humano em seus contextos? É a
lição de Prigogine que lhes creio ainda estrangeira, a do tempo irreversível,
histórico: algo de aristotélico resiste neles, ó físicos?
[1] A lei da
atracção de Newton diz que dois sólidos quaisquer devem atrair-se um ao outro,
como fazem os ímanes, na proporção directa das massas e inversa do quadrado das
distâncias. Aparentemente, a força da gravidade da Terra é forte demais para
que essa atracção se exerça como movimento. Mas sendo verdade o que dizia no
início dos anos 60 Feynman, que não compreendemos ainda a força de atracção da
gravidade, pode-se pensar que esta questão está em aberto, possivelmente sem
que ninguém competente se preocupe com ela. Talvez haja um ‘einstein’ anónimo a
trabalhar nisso...
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