sábado, 1 de outubro de 2016

O nascimento, a sorte e a morte




1. A segunda questão de A. Guerreiro -- Curiosamente, os domínios e os autores da filosofia contemporânea que mais presentes estão na seu trabalho filosófico são aqueles que mais solicitam a "suspeita" e a "crítica" (por exemplo, Derrida). Como lê hoje a Bíblia, olhando-a por trás dos ombros desses filósofos? -- era vasta demais e reenviei-o para o argumentário em francês dum manuscrito intitulado Que devient le Christianisme quand on ne peut croire à un créateur, no meu blogue Questions au Christianisme.
2. A dificuldade duma resposta curta implica saber que, retomando o que disse Lacoue-Labarthe uma vez em debate já não sei aonde, “eu não sou Derrida”; sou absolutamente incapaz de trabalhar como ele os textos, as frases, as palavras. Mas pretendo ‘inspirar-me’ no seu trabalho gramatológico e quereria ter conseguido que o que faço seja compatível com essa gramatologia, nomeadamente no que ao duplo laço diz respeito (que é originalidade minha e não sei que alguém o tenha descoberto independentemente de mim). Ora, sucede que propus numa abordagem de há mais de 20 anos da Bíblia hebraica (inédita) o motivo de béné(malé)dictionben(mal)dição (há um texto meu sobre esse motivo neste blogue) que pode ter colocado o dedo num ponto desconstrutivo nevrálgico desse texto venerável. Dito muito rapidamente: os três castigos que o livro da Génese atribui a Adão e Eva na terceira redacção desse texto (Gn 2-3), a saber a mortalidade, as dores do parto e as do trabalho dos campos, correspondem a ‘maldições’ inerentes às bênçãos maiores dos humanos: a fecundidade das casas, a vida, o nascimento, a agricultura. E logo na altura dei pelo facto de as traduções francesas que eu tinha encalharam na restituição do hebreu barak, que significa ‘bênção’: em três ocasiões diferentes, substituíram a palavra que liam pelo seu contrário nas nossas línguas.

1 Rs 21,9 tu as maudit Dieu et le roi BJ « o hebreu substituiu ‘maldito’ por ‘bendito’ », TOB « ‘bendito’, por eufemismo » BB ignora
Job 1,5 peut-être mes fils ont-ils péché et maudit Dieu dans leur cœur BJ « o hebreu tem ‘bendito’, tal como em 1,11 e 2,5,9. O verbo original, ‘maldizer, blasfemar’, foi assim substituído para evitar a presença dum termo pejorativo ao pé do nome de Deus », TOB « ‘bendito’, por eufemismo » BB « a palavra ‘barak’ é empregada como um eufemismo ou com uma nuance de ironia »
Ps 10,3 l’homme avide blasphème, l’impie méprise Yahvé BJ « bendito é um eufemismo » TOB « outros compreendem por antifrase ‘ele abençoa no sentido de ele amaldiçoa » BB ignora
BJ Bíble de Jérusalem  TOB Traduction Œcuménique de la Bible BB  Bible Bayard

3. O meu problema é não saber hebreu, não posso passar duma hipótese. Parece claro que os tradutores, ao fazerem estas substituições e ao assinalarem-nas, conhecem um termo hebraico para ‘maldição’, ‘maldizer’, que já encontram nos textos bíblicos. Raciocinando por analogia com as nossas línguas, encontramos os equivalentes sorte e fortuna, que significam em geral coisa boa que sucedeu, mas podem ter um sentido adverso, ‘antes a morte que tal sorte’, ‘erros meus, má fortuna, amor ardente’. Provavelmente, o hebraico barak teve a mesma sorte, a mesma fortuna, a mesma polissemia que só o contexto desfaz, e já não a terá, quiçá a própria Bíblia tendo pesado nesse sentido: o dum corte entre Bem e Mal, como Platão terá feito de outra maneira, a Forma ideal do Bem, em contraste com as tragédias que o precederam e que acabaram por isso, como Nietzsche teorizou. Ou seja, quando nos textos mais antigos da Bíblia hebraica, Deus tanto dava bênçãos como maldições (Deuteronómio 28), veio-se porventura por influência persa (Zaratustra, oh Nietzsche!) a opor-se a Deus uma quase divindade má, Satã, o Adversário, que enche a Bíblia cristã de lés a lés, gerou o Céu e o Inferno.
4. O que aprendemos com este motivo de ben(mal)dição? Que nos ensina ele sobre a divindade? Dando atenção aos castigos do Gn 3 e às bênçãos e maldições de Dt 28, vê-se que o que está em questão é a fecundidade, o nervo sem dúvida da phusis aristotélica, o que fascina como espanto do Ser mas também aterroriza, o fabuloso de do menos vir o mais e o medonho desse mais vir a ser reabsorvido na morte; tanto mais que é de se alimentarem doutros vivos que os animais vivem (e em geral morrem, caçados), assim como é de nascerem filhos que têm que aprender tudo que as sociedades sobrevivem, e entretanto também os humanos se guerreiam incessantemente, a todos os níveis, de vizinhos a impérios. Foi deste este espanto e deste medo que os Deuses foram feitos, e é o que nos fica quando eles ficaram desfeitos e nós devolvidos à sorte ou fortuna, ao espanto de tudo isto ser assim há milhares de anos de humanos e ao medo do futuro que as crises, os erros e a má fortuna, nos trazem. Se nos sobrar amor ardente...

Sem comentários: