domingo, 18 de setembro de 2016

A origem da vida, na teoria de Marcello Barbieri




1. A propósito do texto colocado no último dia de agosto, merece revisitar a questão da origem da vida terrestre, tal como Marcello Barbieri – biólogo italiano que trabalhou longamente na Alemanha antes de regressar a Itália, para liderar um laboratório de biologia teórica – a tornou possível, como deu conta no livro de biologia mais bonito que alguma vez li, Teoria semântica da evolução (Fragmentos, 1987): lê-se como um romance, escreveu René Thom no prefácio à versão francesa, infelizmente esgotado, mas sei de quem conseguiu um exemplar pela Net em livros de ocasião. Seria urgente reeditá-lo, nestes tempos de censura ortodoxa dos pensamentos únicos, com as suas revistas oficiais e o sistema de leitura prévia pelos ‘pares’ (que detestam ímpares), já que 30 anos depois ele parece ignorado como na véspera de ser publicado.
2. Voltei a ler os §§ 2-13 do capítulo 11 do meu Le Jeu des Sciences em que tratei desta questão e, sabendo já que era um texto que não teria quase nenhum leitor capaz de o ler, de tal forma é variada e relativamente complexa a bibliografia utilizada, entre fenomenologia e as cinco ciências analisadas, percebi agora que eu próprio já tenho alguma dificuldade, passados os anos de leitura próxima que me permitiu ir escrevendo. Fica pois um texto sem leitores se o seu próprio autor, embora ainda vivo, deixa de o ser com o tempo. De qualquer forma, a hipótese de traduzir aqui esse extracto revelou-se sem jeito, terei apenas que resumir alguns aspectos. Em relação ao texto anterior, o que afasta o criador é o facto de não ter havido uma ‘criação’ duma célula a partir da qual outras viriam, as células demoraram muitos milhões de anos a serem ‘inventadas’ no início do que chamamos evolução da vida. Aliás, o mesmo se poderá dizer de muitas outras invenções humanas, das cadeiras e das mesas, das camas ou das rodas, ou da agricultura, que levaram séculos de invenções transformações.
3. A primeira consideração a fazer no que aos unicelulares diz respeito implica uma comparação com os ninhos das aves, que utilizam pedaços de vários tipos de materiais de vegetais, pedrinhas, lamas, que já têm de antemão as propriedades que são necessárias para as suas funções no ninho. Igualmente, as moléculas de que as células são compostas têm já de antemão as propriedades de que elas precisam, as células não tiveram que as inventar: elas encontraram-se e depois de muitos encontros e desencontros encaixaram. F. Gros (Les secrets du gène, Odile Jacob, 19912) conta como S. Miller em 1953 mostrou “que descarregando ultravioletas numa mistura de gases cuja composição é próxima da que deveria prevalecer no início da existência do nosso planeta [...] são essencialmente bases nucleicas e ácidos aminados que se formam (p. 184), moléculas à base de carbono que são a matriz estrutural de todas as células, das bactérias aos organismos vegetais e animais. Houve assim nos mares primitivos condições para o que se chama uma sopa de moléculas, para uma “bricolagem molecular incessante” de “jogos selectivos sabedores” (Gros, p. 207), ao sabor das forças electromagnéticas dessas moléculas, atraindo-se ou repelindo-se, criando ligações entre micro-moléculas de carbono (metabolitos) em macro-moléculas que podem desfazer-se ou atrair outros metabolitos.
4. A estrutura química duma molécula é a sua função na célula: uma, é uma fibra capaz de funções estruturais de sustento e protecção, outra um lípido capaz de tornar-se elemento de membrana, outra um ATP reservatório de energia, outra uma molécula de ácido ribonucleico que sabe auto-replicar-se, ou sintetizar metabolitos para fazer tal proteína, ou uma enzima que cataliza tal proteína, e por aí fora. As moléculas que se fazem e desfazem têm funções celulares possíveis, como o ferro e o granito cujos átomos tornam possíveis materiais de construção ou os restos com que as aves fazem os ninhos devido às propriedades deles. Barbieri propõe uma teoria ribotípica ou semântica da evolução. Chama ribosoïdes “os sistemas moleculares contendo o açúcsr ribos: ATP, nucléotidos, transferts, mensageiros e ri­bosomas, por exemplo, são todos ribosoïdes. Além disso chamei ribotipo ao sistema formado por todos os ribo­soïdes da célula e propus a ‘teorie ribotípica’, a partir de dois conceitos: a célu­la não é uma dualidade de genótipo e fenótipo, mas uma trindade de genótipo, ribótipo e fe­nótipo, e a vida, na superfície da Terre, tem origem nos antepassados dos ribótipos” (p. 113). Os ribótipos sendo o mecanismo específico da célula, o que ‘fabrica’ as protéinas; ele propõe a an­teriori­dade filogenética numa primeira fase da evo­lução dos proto-ribosomas (entre há 4.6 e 3.6 bil­iões de an­os da Terra): tratava-se de moléculas-mecanismos polimorfos, compostas de ARNs diversos, capazes de se auto-agregarem e de polimerisarem aminoácidos ao acaso, que produziram portanto durante um bilião de anos proteínas muito diversas (feitas e desfeitas a seguir) no que ele chama quase-replicação (quase porque sem regularidade, sem cópias).
5. Em vez de se pensar que as macro-moléculas celulares se formaram algures e depois juntaram-se, esta teoria em que há ribótipos com a propriedade de sintetizarem, o jogo entre moléculas dos proto-ribosomas durante um bilião de anos de evolução précelular, antes de surgirem os primeiros procarioatas e eurocariotas, é concebido como um verdadeiro jogo de acaso jogando a fabricar todas as macromoléculas possíveis até um certo grau de complexidade mas sem replicação garantida, feitas e desfeitas, refeitas talvez depois, até que algumas encaixem e a selecção natural tenha algo para seleccionar. Na “bricolagem molecular incessante” de Gros há um mecanismo pré-celular decisivo, uma ‘máquina’ que fabrica peças inutilmente, há já um trabalho antes da invenção da replicação e do retiro do ADN. A este imenso bilião de anos até se formarem unicelulares, muitos sem dúvida, acrescentaram-se mais três biliões de anos para estes se desenvolverem o suficiente para poderem aparecer os primeiros organismos, pluricelulares, cuja evolução no sentido da complexidade – pode dizer-se que foi então que começou a haver verdadeira evolução – ‘só’ precisou de 600 milhões de anos para chegar aonde chegou, um quinto do tempo dos unicelulares, pouco mais de metade do tempo do jogo primordial.
6. Neste jogo de acaso e estruturação de biliões de anos, não se vê maneira de colocar uma Causa demiúrgica, não há pura e simplesmente lugar para um tal antropomorfismo, mais compreensível quando se tratava de ‘criar’ árvores e galinhas, ‘entes’, sobretudo almas humanas.
7. A primazia temporal dos ARN ribótipos sobre os ADN desoxy-ribótipos põe a questão de saber porquê e como foram eles necessários; a terminologia bioquímica sugere ao leigo que houve uma perca de moléculas de oxigénio (desoxy) a partir de ribosomas, o que confirma Barbieri, mas este, se não põe a questão, permite responder-lhe. Parece que haverá necessidade de ‘guardar’ o que se tornará o ADN para pôr cobro ao desperdício de moléculas de carbono fabricadas pelos proto-ribosomas para nada (o que explicará as ‘mutações’ dos genéticos?), isto é, o ARN não poderá continuar a sintetizar ao acaso das moléculas que encontra, ele tem que ser regulado no sentido dos interesses da célula e do seu metabolismo, tornando-se o ‘mensageiro’ do gene do ADN que é expressado (por mecanismos variados). A perca de molécula(s) de oxigénio deste implicaria uma inibição do potencial de variação de sínteses de proteínas, cada gene se especializando na sua e inibindo o seu ‘mensageiro’ de fazer quaisquer outras, e portanto a degradar-se quimicamente após a sua ‘mensagem’ cumprida. Obviamente que me arrisquei, sapateiro a pretender falar do joelho, mas este enigma deslumbrante dum ninho auto-construído foi mais forte do que a contenção que incombe ao fenomenólogo.
8. Peguemos na tríade proposta por Barbieri (não sabendo do meu exemplar do livro, não posso verificar se a frase que segue releva dele, como creio). Os genes (o genótipo) especificam a espécie e as protéi­nas (o fe­nó­tipo) os diversos tecidos, os ribótipos sendo o mecanismo específico da célula, o que ‘fabrica’ as protéinas. O ADN dum organismo só abre uma parte dele para cada tipo de células especializadas, segundo os diversos tecidos da sua fisiologia e as proteínas que eles requerem, que definem a especialização do tecido, o que será do nível do fenótipo de cada tecido; enquanto que o total do ADN, compreendendo todos os tecidos e órgãos, será o seu genótipo, igual globalmente em todos os indivíduos da espécie. Se bem entendi a vantagem de Barbieri propondo os ribótipos, que eles têm a ver com o metabolismo que reproduzem na célula, o metabolismo que é a célula, a tríade permite jogar com os três níveis de análise molecular da anatomia do organismo: o do metabolismo de cada célula, pelos ARNm após transcrição do respectivo gene do ADN, nível ribotípico ; o dos tecidos especializados, o fenotípico; o do conjunto da anatomia, o genotípico. Enquanto que a díade genótipo e fenótipo, este entendido como o indivíduo, presta-se ao dualismo determinista que pretende(u) que os genes determinam o indivíduo, ignorando justamente que eles trabalham só na célula, mediante o ribótipo, e que são os diversos fenótipos especializados que colaboram entre si para o funcionamento anatómico do organismo individual na cena ecológica, em que busca a sua reprodução (caça) e da espécie (cópula) e evitar ser presa de outrem. 

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