segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A. Guerreiro, F. Lourenço e a Bíblia



Em ordem ao texto que publicou no Ipsilon de 30 de setembro, o A. Guerreiro fez-me as seguintes perguntas.


1) Você fez estudos teológicos (já agora, não se importa de especificar esta minha afirmação demasiado vaga e generalista?) e passou para a Filosofia, enquanto professor universitário e investigador. Como se deu essa passagem? Continuou a ler a Bíblia ao longo da sua vida e recorreu a ela com frequência? O seu interesse pela própria história do cristianismo compreende também o estudo da recepção e das leituras da Bíblia?
2) Curiosamente, os domínios e os autores da filosofia contemporânea que mais presentes estão na seu trabalho filosófico são aqueles que mais solicitam a "suspeita" e a "crítica" (por exemplo, Derrida). Como lê hoje a Bíblia, olhando-a por trás dos ombros desses filósofos?
3) O seu particular interesse pela linguística e pela filosofia da linguagem deve-se também, e em que medida, à sua formação teológica?

Respondi-lhe assim:

1) Faz 60 anos que acabei uma licenciatura em engenharia civil e entrei para um seminário, onde tive um extraordinário professor de filosofia, o P. Honorato Rosa (que veio a ser professor na Faculdade de Letras sem nenhum diploma universitário). Fui padre 7 anos (capelão da Base Aérea da Ota, professor de moral do Liceu Camões, corrido no fim do ano, prior da Baixa da Banheira), em 68 acabei teologia em Paris e desliguei-me publicamente da Igreja. Em 74 publiquei Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, idéologie, Cerf, 3ª ed. em 76, trad. espanhola, alemã e americana. Foi o que me deu currículo para Filosofia em Letras, em tempos de revolução. A tese de doutoramento (em Linguística!, não tinha diplomas para ser em Filosofia) foi sobre a epistemologia da semântica saussuriana e já com influência dominante de Derrida (editada pela Gulbenkian).
A minha leitura de Marcos teve duas originalidades. O texto foi lido à maneira do S/Z de R. Barthes, uma leitura dum texto singular, que descobriu uma contradição entre a narrativa sobre Jesus e um discurso teológico que ‘justificava’ o desastre final, a crucifixão, anunciando-a de antemão, mas a narrativa era duma estratégia para evitar tal destino. Jesus não queria morrer, a sua última palavra é dum abandonado por Deus. Ora, a noção teológica posterior, duma redenção como plano de Deus, resulta dessa contradição: toda a teologia ‘explica’ este abandono divino. A outra originalidade foi althusseriana, estudar o modo de produção da Palestina da época, para interpretar politicamente o que estava em jogo na narrativa. A anteceder um ensaio de teoria formal do conceito de modo de produção (donde o ‘materialismo’), com a inclusão de G. Bataille para perceber as questões em torno do parentesco (Lévi-Strauss e Freud), que o marxismo negligenciou.
Esta leitura de Marcos foi retida por exegetas de língua alemã entre as principais 50 obras de leitura bíblica desde o século XIX, poucas aliás não sendo em alemão.
Thomas Staubli, Wer knackt den Code? Meilensteine der Bibelforschung 50 Porträts, Patmos, 2009, Dusseldorf e
01_archive.html http://ppt/2014_11_01_archive.hl
A filosofia e o cristianismo têm uma história comum a partir da obra do filósofo platónico cristão Orígenes de Alexandria (185-254), o criador da teologia cristã. As universidades medievais são o ponto mais alto desse encontro. Ora, a filosofia de Platão é redutora de tudo o que é histórico e corporal, portanto de tudo o que as Bíblias contam, a hebraica e a cristã. O desafio que enfrenta Frederico Lourenço, autor que me é muito simpático, é o de elas serem antropologicamente hebraicas como os seus autores, mas as suas versões gregas terem sido depois relidas teologicamente, mesmo na liturgia, segundo essa redução ignorante das categorias hebraicas: ora, foram estas que suscitaram frequentemente heresias, o que levou a Cristandade a fechá-la em latim, quando as populações deixaram de conhecer a língua. O protestantismo foi o rebentar dessa clausura quando a invenção da imprensa permitiu a divulgação de traduções vernáculas, a primeira sendo a de Lutero. O catecismo que a Igreja católica fez para os leigos era anti-protestante, anti-bíblico por omissão. Foi na 2ª metade do século XX, após a guerra, que ela teve uma renovação bíblica de que fui testemunha na minha juventude.
Um exemplo que o tradutor deve ter presente: no novo Testamento aparece por vezes o termo psuchê (alma) que nunca é oposto a sôma (corpo), o destino após a morte é a ressurreição dos corpos; com Platão vingou a imortalidade das almas e assim se lê comummente a Bíblia muitas vezes ainda hoje. Outro: evitar a noção errada de que a moral sexual do Ocidente foi herdada do judeo-cristianismo, foi do greco-cristianismo platónico (e maniqueu).

2) como já ultrapassei largamente os 2000 caracteres, encontrará um vislumbre de resposta a esta imensa questão num texto do meu blogue Questions au christianisme, “Argumentaire” dum manuscrito sobre o cristianismo, quando não se pode crer num Criador.

3) A Linguística era a ciência farol do estruturalismo em Paris (67-74), ele dominou a minha escrita sobre o texto de Marcos, uma aventura de grande paixão intelectual, solitária, mas tive a sorte de encontrar cúmplices, a certa altura, um deles, M. Clévenot, foi meu editor e orquestrador dum movimento internacional em torno das leituras materialistas da Bíblia, que durou uma dezena de anos.
A Filosofia da Linguagem que eu ensinei tive que a fazer (a que existia, anglo-saxónica em torno de Frege e Wittgenstein, não me interessou) e veio com as leituras de Derrida que me levou a contar também com as novas ciências da linguagem, a linguística, Barthes, Freud, Lévi-Strauss, neurologia. Da Filosofia da Linguagem cheguei à Filosofia com Ciências (Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, 2 vol, 2007, e La Philosophie avec Sciences au XXe siècle, 2009, ambos no L’Harmattan).

Alguns textos do blogue
[mas há que dizer que provavelmente o que o Frederico Lourenço está a fazer é o contrário do que deve ser feito: não há nenhuma Bíblia grega, que ele diz traduzir, o que há é a versão grega duma Bíblia antropologicamente hebraica, com alguns autores da Bíblia cristã judeus helenizados, nomeadamente Paulo de Tarso, mas antropologicamente judeus] 

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