quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A matéria não é bruta, é muito variada



1. Não faças mal, o lindíssimo livro do neurocirurgião inglês Henry Marsh (lua de papel), que conta inúmeras operações que fez, restituindo a sua dimensão humana, os sucessos e os erros, conta também a morte da mãe, que acreditava que havia vida após a morte, o que ele não compartilhava; escreve todavia assim no final desse capítulo: “e agora, todas aquelas células cerebrais estão mortas e a minha mãe – que em certo sentido era a interacção electroquímica daqueles milhões de neurónios – deixou de existir. Nas neurociências chama-se a isto o ‘problema da ligação’ – o facto extraordinário que ninguém consegue sequer começar a explicar de que a mera matéria bruta pode dar origem à consciência e à sensação” (p. 193-4). Que um tão delicadíssimo conhecedor prático da ‘matéria nervosa’ lhe chame “mera matéria bruta”, é a mim que parece extraordinário e mostra como o velhíssimo dualismo matéria / consciência joga de maneira irredutível, brutal: bruta, a matéria!. É o artigo definido que é o erro, há várias matéria, diferentes níveis de matéria de crescente complexidade, afastando-se da brutalidade dum pedregulho que esmague uma cabeça que Marsh tenha que operar.
2. A maior diferença é entre a matéria inerte dos físicos e a matéria viva dos biólogos, mas já na primeira há graus. O nível básico é assegurado pela força nuclear que liga protões e neutrões para fazer o núcleo dos átomos, com os mais de cem patamares da tabela periódica e a variedade cíclica das suas propriedades; o átomo todavia só existe devido à maneira como o seu núcleo cria laços com electrões, mas estes conseguem melhorar de nível material criando laços com electrões de outros átomos, iguais ou diferentes, formando moléculas que se agregam de forma tal que, segundo as condições da temperatura ambiente, podem ser à vista desarmada sólidos como gelo, líquidos como água ou gasosos como vapor. Já pois a este nível há muita diferenciação na matéria, mas a diferença espectacular é a que vence a inércia, com moléculas muito complexas em que o carbono predomina com as suas duplas ligações, as quais conseguiram – num jogo dum bilião de anos segundo Marcello Barbieri (Evolução semântica, Fragmentos, o livro mais bonito de biologia que alguma vez li) – que os laços entre elas de moléculas diferenciadas, as células, se reproduzissem e não se desfizessem de novo como até aí.
3. Esta vitória sobre a inércia, produzindo entropia de estruturas dissipativas (Prigogine, Nobel de Química em 1977), estabilidade instável devendo constantemente refazer as suas moléculas com outras vindas de fora, impede de chamar ‘bruto’ a este nível de matéria, já que dotada de autonomia e crescimento, a phusis que fascinou Aristóteles, o que chamamos natureza, as coisas que nascem (e morrem) como as pedras não. Foi do que Darwin estabeleceu a evolução como o que veio além da inércia até aos mamíferos e aos humanos. E também aqui as anatomias mostram como os vertebrados conhecem cerca de 200 tipos de células especializadas em tecidos de que se fazem os seus órgãos, numa anatomia ligada e coroada pelo cérebro, a rede neuronal que não é senão a instância da sensação e da consciência que Marsh opunha à matéria bruta: ela é a rede de conhecimento do animal, de si e do mundo que o envolve, que o pulsiona a buscar presas que o alimentem e a defender-se de ser presa doutros mais fortes. A rede de sinapses é um grau finíssimo de matéria: jogo de electricidade (de iões) com oscilações químicas entre sódio e potássio! Segredo da memória, os neurónios assim enlaçados em rede formam a mente a que só o próprio tem acesso (Damásio, O livro da consciência). Se Marsh o lesse, compreenderia que ele lhe oferece a solução do tal “problema da ligação”? Ou o dualismo será nele forte demais, que o impeça de compreender que já se explica esse problema tremendo justamente na área que ele pratica de forma tão excelente?
4. Mas a matéria, que não é bruta, não acabou aqui, já que os hominídeos foram aprendendo a jogar com a matéria inerte, com o fogo a transformar a matéria dos cadáveres que comiam, a juntar sons para dizer o que lhes era vital comunicar, depois a fazer instrumentos, a compreender como fazer agricultura, etc. Ora, as falas que dizemos também só são possíveis em ‘matéria’ sonora, assim como as escritas em papel ou equivalente, mas tomam essas matérias de empréstimo, por assim dizer; ora, já os sons são muito pouco ‘materiais’, são vibrações do ar, e as línguas consistem apenas nas diferenças entre esses sons quase materiais (Saussure, o maior linguista do sec.XX), diferenças quase imateriais! São elas que enlaçam as nossas pulsões químicas, os amores e as amizades, as paixões artísticas e intelectuais, e tantas e tão variadas emoções no topo da escala da matéria que vem desde os átomos. Quase imatérias, química das sinapses neuronais, diferenças entre quase matérias: perto do que Marsh quereria, tão longe da pedra. Que a matéria não é bruta, ele sabe-o melhor do que nós (a filosofia dele é que não é boa).
5. É um daqueles livros que se tem pena de chegar ao fim, faz-nos penetrar na intimidade da vida dum neurocirurgião de grande nível.

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