1. Não faças mal, o lindíssimo livro do neurocirurgião inglês
Henry Marsh (lua de papel), que conta inúmeras operações que fez, restituindo a
sua dimensão humana, os sucessos e os erros, conta também a morte da mãe, que
acreditava que havia vida após a morte, o que ele não compartilhava; escreve
todavia assim no final desse capítulo: “e agora, todas aquelas células
cerebrais estão mortas e a minha mãe – que em certo sentido era a interacção
electroquímica daqueles milhões de neurónios – deixou de existir. Nas
neurociências chama-se a isto o ‘problema da ligação’ – o facto extraordinário
que ninguém consegue sequer começar a explicar de que a mera matéria bruta pode
dar origem à consciência e à sensação” (p. 193-4). Que um tão delicadíssimo
conhecedor prático da ‘matéria nervosa’ lhe chame “mera matéria bruta”, é a mim
que parece extraordinário e mostra como o velhíssimo dualismo matéria /
consciência joga de maneira irredutível, brutal: bruta, a matéria!. É o artigo definido que é o erro, há
várias matéria, diferentes níveis de matéria de crescente complexidade,
afastando-se da brutalidade dum pedregulho que esmague uma cabeça que Marsh
tenha que operar.
2. A maior diferença é entre a matéria
inerte dos físicos e a matéria
viva dos biólogos, mas já na
primeira há graus. O nível básico é assegurado pela força nuclear que liga
protões e neutrões para fazer o núcleo dos átomos, com os mais de cem patamares
da tabela periódica e a variedade cíclica das suas propriedades; o átomo todavia
só existe devido à maneira como o seu núcleo cria laços com electrões, mas
estes conseguem melhorar de nível material criando laços com electrões de
outros átomos, iguais ou diferentes, formando moléculas que se agregam de forma
tal que, segundo as condições da temperatura ambiente, podem ser à vista
desarmada sólidos como gelo, líquidos como água ou gasosos como vapor. Já pois
a este nível há muita diferenciação na matéria, mas a diferença espectacular é
a que vence a inércia, com moléculas muito complexas em que o carbono predomina
com as suas duplas ligações, as quais conseguiram – num jogo dum bilião de anos
segundo Marcello Barbieri (Evolução semântica, Fragmentos, o livro mais bonito de biologia que
alguma vez li) – que os laços entre elas de moléculas diferenciadas, as
células, se reproduzissem e não se desfizessem de novo como até aí.
3. Esta vitória sobre a inércia,
produzindo entropia de estruturas dissipativas (Prigogine, Nobel de Química em
1977), estabilidade instável devendo constantemente refazer as suas moléculas
com outras vindas de fora, impede de chamar ‘bruto’ a este nível de matéria, já
que dotada de autonomia e crescimento, a phusis que fascinou Aristóteles, o que chamamos natureza, as coisas que nascem (e morrem) como as pedras
não. Foi do que Darwin estabeleceu a evolução como o que veio além da inércia
até aos mamíferos e aos humanos. E também aqui as anatomias mostram como os
vertebrados conhecem cerca de 200 tipos de células especializadas em tecidos de
que se fazem os seus órgãos, numa anatomia ligada e coroada pelo cérebro, a rede
neuronal que não é senão a instância da sensação e da consciência que Marsh opunha à matéria bruta: ela é a rede de
conhecimento do animal, de si e do mundo que o envolve, que o pulsiona a buscar
presas que o alimentem e a defender-se de ser presa doutros mais fortes. A rede
de sinapses é um grau finíssimo de matéria: jogo de electricidade (de iões) com
oscilações químicas entre sódio e potássio! Segredo da memória, os neurónios
assim enlaçados em rede formam a mente a que só o próprio tem acesso (Damásio, O livro da consciência). Se Marsh o lesse, compreenderia que ele lhe
oferece a solução do tal “problema da ligação”? Ou o dualismo será nele forte
demais, que o impeça de compreender que já se explica esse problema tremendo
justamente na área que ele pratica de forma tão excelente?
4. Mas a matéria, que não é bruta,
não acabou aqui, já que os hominídeos foram aprendendo a jogar com a matéria
inerte, com o fogo a transformar a matéria dos cadáveres que comiam, a juntar
sons para dizer o que lhes era vital comunicar, depois a fazer instrumentos, a
compreender como fazer agricultura, etc. Ora, as falas que dizemos também só
são possíveis em ‘matéria’ sonora, assim como as escritas em papel ou equivalente,
mas tomam essas matérias de empréstimo, por assim dizer; ora, já os sons são
muito pouco ‘materiais’, são vibrações do ar, e as línguas consistem apenas nas
diferenças entre esses sons
quase materiais (Saussure, o maior linguista do sec.XX), diferenças quase imateriais!
São elas que enlaçam as nossas pulsões químicas, os amores e as amizades, as
paixões artísticas e intelectuais, e tantas e tão variadas emoções no topo da
escala da matéria que vem desde os átomos. Quase imatérias, química das
sinapses neuronais, diferenças entre quase matérias: perto do que Marsh
quereria, tão longe da pedra. Que a matéria não é bruta, ele sabe-o melhor do
que nós (a
filosofia dele é que não é boa).
5. É um daqueles livros que se tem
pena de chegar ao fim, faz-nos penetrar na intimidade da vida dum neurocirurgião
de grande nível.
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