1. Há quem pense, F. Bernardo e J.-L.
Nancy por exemplo, que Derrida não é fenomenólogo, e eu aceitei-lhes a opinião,
propondo que o que fiz, Filosofia com Ciências, era uma reformulação da Fenomenologia. Na verdade, há aqui um
equívoco sobre a palavra: entende-se que Fenomenologia é o que Husserl
praticou, a intencionalidade da consciência da coisa, e que continua a ter praticantes como escola filosófica. Estes não conheço,
mas do que sei de Husserl, o seu famoso slogan, “retorno às coisas”, entendido
como descrição dos fenómenos, isto é, fenomeno-logia, não foi conseguido:
faltou-lhe o tempo e portanto o movimento de que ele é a medida. Ora, se
Fenomenologia é essa descrição, e como fenómeno nenhum é ‘imóvel’, sem mudança,
nem que seja uma rocha sujeita à erosão, a posição husserliana lançou a
Fenomenologia mas não a alcançou. Além de não considerar nem o tempo nem o
movimento, também Husserl propôs a coisa, como “objecto” de forma
ante-predicativa, a percepção sendo pura de linguagem, embora a intenção da
consciência para ele fosse dita nas traduções latinas “signitiva” (em alemão é
como?), pressupondo pois os signos da linguagem como condição da consciência
percepcionar a coisa.
2. Heidegger desfez estas três
‘lacunas’ e acrescentou-lhe o primado do mundo sobre a consciência e o objecto,
prescindindo destes dois termos para colocar o humano como ser no mundo, do que faz parte o ser temporal em seus
movimentos e ter linguagem. E acrescentou-lhe ainda o Ser como doação dos entes
(diferença ontológica) que veio a caracterizar pelo retiro dessa doação. Sendo este nível da doação e do seu
retiro que o ocupou sobremaneira, até ao Ereignis de 1962, será mais difícil de pretender que ele
se manteve fenomenólogo, mas abriu o caminho de Derrida para a Fenomenologia
3. Eis o ponto. Com o tempo e o movimento, a
linguagem e o ser no mundo, o que é que fez Derrida que Heidegger não?
Introduziu a redução fenomenológica de Husserl na linguagem, na diferença
saussuriana entre os sons e os significantes (estes diferenças daqueles), ou
seja na diferença entre fala e língua, diferença indissociável mas que à Linguística, enquanto ciência, serve
para reduzir tudo o que releva da fala e restituir os paradigmas da língua. Mas
para o fenomenólogo (ou gramatólogo), esta redução tem que ser apagada em
seguida a ela ter trazido a diferença para o tempo e o movimento, ter trazido a
différance. Ora, o que é esta?
É o que é prévio à diferença língua / fala e a dá enquanto fenómeno de fala, que não é inteligível sem os paradigmas da
língua, os quais por sua vez não existem ‘no mundo’ senão na inteligibilidade
que dão às falas. Ora, as falas, além de terem os seus sons, têm também os seus
sentidos que referem os fenómenos do mundo, trazem-nos com elas, é mesmo para
isso que elas servem, as palavras e as frases. E só com elas se chega aos tais
fenómenos! Como Husserl teria querido sem ter sido capaz, lógico e matemático
demais porventura, ou em época ainda não propícia.
4. O aforismo do De la Grammatologie, “não há fora do texto”, que lhe valeu tanta critica e tanta
incompreensão, mais não é do que a tradução gramatológica da
intencionalidade da consciência de Husserl, tendo em conta a linguagem e a sua temporalidade, o seu movimento, mas
também o mundo que nela se diz e que o próprio mundo (tribal) ensina para
dizer... os fenómenos. “Não há fora do texto” significa que os fenómenos do
mundo que nós conhecemos nos vêm pela linguagem-pensamento, conectados com o
que nos faz ver, ouvir, mexer, sentir, tudo fazendo parte da nossa maneira de
falar ou escrever, de ouvir ou de ler, de pensar.
5. A différance é o enigma que une indissociavelmente o mesmo económico (a língua e outros usos sociais, o
biológico disso) e o que o excede, como despesa, “resto, excesso ou diferença”, como se dizia na escola
primária dos anos 40. É possível que F. Bernardo e J.-L. Nancy excluam um
destes indissociáveis, para pretender que Derrida não é fenomenólogo? Que
Derrida tenha feito outras coisas, é bem certo, que elas não sejam
fenomenológicas não sei que chegue para o garantir. O que a Filosofia com Ciências acrescenta à Gramatologia é a
contribuição fenomenológica das principais descobertas científicas do século
XX, que só se me deram à luz do duplo laço derridiano, este tornando-se o esteio da fenomenologia que estava a fazer,
mas de que só compreendi que se tratava de fenomenologia perto do fim. O que
é certo é que aí se descrevem fenómenos nas suas lógicas, no que lhes dá movimento
e no que os guia no aleatório das respectivas cenas. Já agora, aqui que ninguém nos ouve,
descrevem-se mesmo os fenómenos relevantes das respectivas ciências de maneira
que os próprios cientistas não costumam conseguir, por não se saberem
desprender suficientemente da sua essencial actividade laboratorial.
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