quarta-feira, 20 de julho de 2016

As duas faces da moeda



1. Todos pasmámos perante esta lição de populismo que o Brexit acaba de nos dar e esperemos que seja mesmo lição para outras bandas, trumpistas ou lepenistas. Não será a ‘doença infantil’ do capitalismo, mas tem algo duma inocência infantil, da ilusão duma coisa muito simpática que se quer muito e só depois, ao se sentir as consequências adversas, que o que se queria como cura agravou a doença, se percebe que era uma ‘ideia louca’. Mas por se tratar de mal-estar de multidões, merece respeito por elas quando se repudiam as ideias, ainda mais quando se sabe que esse mal-estar é de muitas outras multidões por esse mundo fora e que os dirigentes políticos que temem e criticam com razão o populismo, não parecem ter resposta à altura, habituados a desculpar-se com ‘a crise’ que é de todos, portanto, nós...: relativa impotência dos Estados, mesmo unidos, europeus, reinos britânicos, talvez sem teoria de direito financeiro e/ou de economia que se imponha.
2. Quando se trabalha em filosofia e se pede aliança a algumas ciências, pode ter-se tendência a pensar que é pensamento que falta, ainda que não se saiba propô-lo. Olhe-se para a moeda. A tradição da esquerda tem dificuldade em aceitá-la, mas tal como a electricidade na dimensão técnica, é impensável a contemporaneidade na dimensão social sem ela, já que ela dá uma liberdade elementar, a de escolher o que se quer e precisa, dentro dos limites do orçamento familiar. Dos números ela recebe a razão de calcular, de estabelecer preços para as trocas diárias, segundo custos e tempos de trabalho. Esses números permitem uma ciência em que a moeda, a sua face monetarista, reduz tudo o que não é ela: de tudo o que seja mercadoria, só retém quantidades e preços, única maneira de encontrar regras no complexo mundo das trocas; enquanto tal, a economia não sabe nem de biologia nem de antropologia nem de politica, não sabe de fome, de doença, de escola, nem de bem e mal.
3. Mas a moeda tem outra face, que a torna diferente dos números e das letras e das palavras e das músicas, sistemas que se podem comparar com o seu. Estes sistemas não têm donos, embora tenham artistas que jogam melhor do que o comum das gentes, pertencem aos usos de todos, como queiram, são parte também da liberdade de sermos humanos em sociedade. Mas a moeda só pode funcionar como reguladora de trocas, uma das partes de cada troca, a outra sendo uma mercadoria, só o pode fazer por ser propriedade de quem a usa para comprar e tornar-se propriedade de quem cede a mercadoria que vende. Não há dinheiro sem dono, faz parte da lógica da moeda, da sua positividade, senão não serve para trocar, não é moeda. Aqui, os números têm um papel malicioso, que é o de dinamizarem a economia acicatando desejos de ter maiores quantidades, sempre mais, sempre mais do que o vizinho, o colega, o rival, o concorrente. E como ela funciona nos cálculos económicos reduzindo o que não é ela, pode neste acicatar desligar-se de ser preço, de ser meio de troca, tornar-se especulação, com o seu factor narcísico inerente ao desejo de posse.
4. É claro que muito poucos chegam perto de serem o mais rico do mundo, mas os campeonatos de milionários multiplicam-se por países e por especialidades de negócio, em guerras sem quartel que devastam economias, como se viu em 1929 e em 2008, de que padecem os milhões que votaram Brexit e os que querem trampa americana, vítimas dessa ‘ideia louca’ de que ser-se milionário é o melhor que há no mundo, que as lotarias entretêm nos que sacrificam perseverantes à deusa Sorte, boa consciência dada pelas “santas casas da misericórdia”!.
5. O problema desta loucura devastadora não é a falta de solução, esta existe, chama-se regulação, existe certamente no direito financeiro e em teorias económicas minoritárias: trata-se de prever a sua aplicação, uma espécie de ‘código da estrada’ da circulação da moeda para lhe evitar acidentes, as catástrofes que são as crises, as fomes, as epidemias dos pobres. O que falta é a força politica necessária para regular efectivamente: os off-shores são a prova de como se foge às regulações que há, a prova das cumplicidades que tecem a impotência politica: quando se escolhe para alto posto politico da regulação da União Europeia o simpático que fabricou um off-shore mesmo nas barbas dela. Os que governam as economias que a especulação está devastando não são cúmplices dela, ao crerem que o que mais precisam é de investimentos para fazerem crescer os números dos PIBs? Não se vê que o que cresce é o desemprego, é a precariedade, é a juventude que vai vivendo de sandes na incerteza do futuro?
6. É a ideologia do ‘querer ser rico’ que mata os ideais. Dinheiro? nem de menos nem de mais.

Público, 19/07/ 2016

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