1. No Público de 28 de abril, Nicolau Ferreira apresenta um
trabalho publicado na revista Nature que se me afigura notável. Analisando os cérebros de voluntários a ouvirem
uma narrativa de 2 horas, vão marcando as zonas dos cérebros que se ‘activam’
para tal e tal palavra, substantivos e verbos, da narrativa e verificam uma
razoável correspondência nos vários testes, com algumas diferenças. O exemplo
fornecido é o da palavra ‘carro’, verificando-se que há três zonas activadas, a
cada uma delas correspondendo o que se pode chamar um ‘campo semântico’
diferente. Mas o que há de mais notável, um desenho mostra-o, é que o
cérebro todo se mostra preenchido de palavras, contrariando aparentemente a noção corrente de que a linguagem se joga,
com poucas excepções, no hemisfério esquerdo dos humanos. Digamos que este
enchimento do cortex com palavras tem que ser articulado com as áreas de
Brodmann[1],
que não deixam certamente de ter valor, por exemplo que os nervos ópticos
entram no cérebro por uma área occipital, na nuca, como os auditivos por outras
vizinhas desta. Ora, se bem entendi leituras antigas, o que faz esta
cartografia, com um terceiro tipo de áreas recebendo nervos da pele e doutras
regiões do corpo (somestesia), é permitir entender a temporalidade do trabalho
cerebral, dos grafos de Changeux,
que se encaminham para as chamadas áreas comuns a estes três tipos de acesso do mundo ao cérebro
(visão, audição e tacto, o gosto e o odor tendo outras vias que vão directamente
ao paleo-cortex).
2. Senti-me como alguém a quem
operaram cataratas que lhe toldavam a visão. O cérebro aparecia-me como campos
separados com funções diferentes especializadas, uma série de gavetas por onde
transitariam os fluxos neuronais; tornou-se agora uma grande sala ocupada por
palavras que não se encolhem em tal ou tal canto mas se reconhecem em vários
espaços, de acordo com o que os linguistas chamam polissemia. Assim, a palavra ‘carro’, consoante a sequência
da narrativa escutada, activa-se no campo semântico ‘condução na estrada’ ou no
‘vigilância policial’ ou no ‘destino da viagem’, os dois primeiros pressupondo
que os voluntários conduzem habitualmente e o segundo inclusive que são
relativamente indisciplinados ao conduzirem. O que significa que, mais do que
‘campos semânticos da língua’ (americana), se tratará de códigos narrativos, à maneira de Lévi-Strauss ou de Barthes, os
quais variam justamente com os usos dos voluntários (será o que o investigador J. Gallant chama “diferentes
tipos de memória”), o que se pode testar facilmente com pessoas que não tenham
carta de condução ou andem raramente de carro, ou então, por exemplo, com
narrativas abundando em códigos culinários e voluntários que cozinhem e outros
não.
3. Mas que os investigadores ponham a
questão em termos de querer saber “como o cérebro associa o som ‘caneca’ ao
conceito de um recipiente cilíndrico, mais alto do que baixo, com uma asa e que
se enche de líquidos para se beber” – e não é por acaso que N F comece o seu
texto por aí, onde espreita a filosofia espontânea dos neurologistas, a que
Damásio chamou no título do seu primeiro livro “o erro de Descartes”, que é
aqui o dualismo entre pensamento e sons. Ora ‘caneca’ não é um “som” (nem uma
‘grafia’, que é o que a gente lê no jornal), é uma palavra com sentido, polissémico consoante a frase em que joga. Não há nenhuma razão aparente
para se pensar que o cérebro tenha uma cartografia de ‘sons’, outra das mesmas
palavras em letras e uma terceira de significados, é provável pelo contrário
que economize essas ‘três coisas’ numa só: é isso uma palavra que se aprende
com o que ela diz, coisa em que
se mexe, se vê (ou lê, se são abstractas). ‘Recipiente’, ‘cilíndrico’, ‘asa’,
também são palavras no cérebro. É como saber o que é o significado duma palavra
num dicionário: este só dá outras palavras, que por sua vez têm a sua entrada
no dicionário com outras palavras por significado. O cérebro neste aspecto é
como o dicionário, redes que
se esclarecem por reenvios entre os seus elementos (os americanos têm uma
tradição linguística inadequada, a da gramática gerativa de Chomsky, que
justamente se reclama de Descartes e é mau guia num laboratório neurologista).
Muito provavelmente, o que se activa no cérebro dos voluntários que escutam são
apenas ‘palavras’, sons e sentidos indissociáveis. O que me parece significar
que (além das áreas de Brodmann percorridas em sequências temporais das frases do texto que
se vão sucedendo) o conjunto do neo-cortex alberga as palavras conhecidas em
códigos aprendidos com os respectivos usos quotidianos de cada um (sabe-se o
que é ‘caneca’ bebendo cerveja, por exemplo, ‘cilíndrico’ na aula de
geometria). Não haverá a ‘língua portuguesa’ no cérebro de todos os nativos
portugueses, mas os códigos tribais de cada um nessa mesma língua, que
convergem nos mesmos paradigmas culturais. E para esta imensa complexidade e
suas variações, maiores ou menores, todo o cérebro funciona, não algumas
gavetas apenas: palavras e coisas, saberes e fazeres com palavras por todo o
lado, como mostra o desenho do
texto. Foi esta iluminação que me comoveu.
O atlas pode
ser consultado na página virtual
P. S.
4. A minha primeira intervenção em coisas destas,
no Público (14/03/2008), foi contra a noção de “imagens mentais” (já na
altura tratava-se de Jack Gallant), dizendo que os neurologistas nos ensinaram
que no cérebro só há química e electricidade (é o primeiro texto deste blogue).
As palavras que agora detectam são ouvidas não apenas pelos voluntários mas
também pelos investigadores que sabem fazer incidir tal palavra com a química
eléctrica do cérebro voluntário. A dificuldade que temos em perceber o
funcionamento cerebral, a palavra ‘caneca’ e imagens visíveis e palpáveis de
canecas de cerveja ou de galões, como é que a palavra, sons com sentidos, se
ajusta a tal imagem, releva do tal “erro de Descartes”, separando pensamento de
tudo o que é corporal, não apenas as “emoções” a que Damásio se referiu. Os
sons chegam aos ouvidos e as imagens aos olhos e desencadeiam um processo
neuronal, feito de electricidade química (de iões, não de electrões como a
electricidade industrial), através de grafos, circuitos de sinapses já lá, que
não repetem os sons e as imagens a que continuam ligados, se dizer se pode,
como ‘memória’, como processo desencadeado dali.
5. Há um slogan de marketing que diz que “uma
imagem vale mais do que mil palavras”: o erro cartesiano deste slogan é não
perceber que não há imagens sem palavras, ainda que mentais, não ditas, como
condição de ser imagem de
qualquer coisa, sem esta (e são sempre muitas, se for uma pessoa tem o que
veste, por exemplo, além das expressões) serão apenas ‘riscos e cores’, como N
F julga que ‘caneca’ é um “som”. Quando vemos fotos ou filmes do que chamamos
países exóticos, este adjectivo significa que nos faltam palavras para os
‘ver’, não apenas para os comentar, ou se se quiser não sabemos comentar porque
não sabemos ver, não nos são familiares, escapam às nossas palavras, aquelas
com que vemos e mexemos no nosso mundo.
[1] Como diz J.
Gallant, as áreas de Broca e Wernicke do hemisfério esquerdo relevam da “produção
da linguagem”, da fala, não da escuta. Ver em Filosofia mais ciências
2 :
“Conjugar Broca e Wernicke, como é que é possível falar ?”
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