quinta-feira, 26 de maio de 2016

Heidegger, os Judeus e a Bíblia hebraica



Quando o banal anti-semitismo do início do sec. XX banalizou Heidegger
É do estrume que se extraem as plantas, do perigo que vem o que salva
Paradoxo do narcisismo que preconizava ‘abertura’
Etapas da escrita bíblica
A bifurcação do sentido
Pensar o ser que faz doação das coisas contingentes
Uma ben(mal)dição


Jean-Luc Nancy, Banalité de Heidegger, Galilée, 2015
Daniel Sibony, Question d’être entre Bible et Heidegger, Odile Jacob, 2015


Quando o banal anti-semitismo do início do sec. XX banalizou Heidegger
1. Heidegger foi escrevendo uns cadernos privados de capa negra, desde 1931 até 1969. A publicação dos primeiros dez anos desses Cadernos negros gerou um mal-estar generalizado entre os que estimam o seu pensamento e desencadeou um novo ataque dos que o contestam, como já o suscitara o seu nazismo há uns 30 anos em torno dum livro de Vítor Farias, mas agora em torno do anti-semitismo que esses textos revelam claramente. A leitura conjunta de dois livros de filósofos franceses lança uma luz estranha, obscura e esclarecedora, sobre a relação do pensamento heideggeriano com o judaísmo e com a sua Bíblia.
2. O que faz o curto texto de Nancy, uma conferência pronunciada num colóquio em Wuppertal (Heidegger e os Judeus) no Outono de 2014, é mostrar que não se trata de racismo[1], da dimensão biológica desse movimento politico, mas de algo muito mais grave, duma posição filosófica na compreensão que Heidegger tem da situação contemporânea de “declínio do Ocidente”, em que buscou um novo “começo da história” com o povo alemão e que em 1941 já percebeu que falhara,; para isso que precisava (sabe-se lá porquê) dum povo que destruísse o primeiro começo, o do povo grego, o que seria o papel do povo judeu, a “Judiaria mundial” capaz de “empreender a título de ‘tarefa’ historial o desenraizamento de todo o ente fora do ser” (cit. p. 21), já que se trata dum povo sem solo nem capacidade de decisão (p. 42). “Anti-semitismo historial” (p. 26), escreveu Tawney, o editor dos Cadernos negros: libertado, entregue a si mesmo, portanto adequado à tarefa do desenraizamento – em que se conjugam vários factores, “o americanismo, o bolchevismo, a democracia, a técnica, a racionalidade e a objectalidade” (p. 26-7) – que é a de “anular a distinção das raças” (p. 28). “Heidegger não foi apenas anti-semita: ele quis pensar até à sua última extremidade uma necessidade funda e histórico-destinal do anti-semitismo” (p. 76).
3. O texto de Nancy, anunciando um ensaio de maior fôlego, procura compreender este tão estranho encadeamento de motivos com as questões heideggerianas. “Sabia-se que ele era, como tantos outros, anti-semita. Não se tinham lido as notas destes Cadernos negros que arrastam para a infâmia uma parte do seu pensamento. Não o pensamento ‘do ser’, mas o duma história-destino e do desejo feroz dum ‘novo começo’. Inaugurar, fundar, estar no inicial, velho prurido metafísico...” (contra-capa). “Não há aqui nenhuma intenção de refutar Heidegger, diz Nancy. Pelo contrário, ao designar claramente a maneira em que ele se deixou levar e estupidificar na pior das banalidades odientas, até ao insustentável, pode-se trazer maior clareza ao que deveria ter ele próprio visto e que em todo o caso nos deixa como discernimento a fazer” (p. 65).
4. A importância que eu lhe dou no meu trabalho não fica contaminada, terei que me auto-criticar? Digamos que estas congeminações de Heidegger – que ele buscava nos últimos anos sob o motivo do Ereignis enquanto Acontecimento ontológico que recomeçaria a história da humanidade (Grécia, Europa, Alemanha...), uma espécie de novo paradigma civilizacional, se estes termos não lhe fossem estranhos  –, nunca me interessaram (nem sequer as compreendi, o que Nancy contou foi novidade para mim), como se a sua adesão ao nazismo m’o tivesse desqualificado a esse nível. Mas foi sobretudo a minha leitura de Tempo e Ser (1962), do Ereignis enquanto o que dá ser e tempo aos entes e esconde a doação para os deixar ser, que me orientou para “as coisas mesmas” da fenomenologia com as ciências, para o que diria (ironicamente) ‘um novo começo’ em relação à Physica de Aristóteles que ele lera em 1940 (mas Heidegger veio ter com Derrida, por cujo duplo laço estas minhas coisas tinham começado já uns anos antes). Daí que a questão do nazismo não me perturbasse a reflexão. Mas é a questão do silêncio do pós-guerra sobre a Shoah que recebe com estes textos, que Heidegger deixou para publicação póstuma, uma luz dolorosíssima: como se a exterminação de Judeus conviesse à sua conjectura filosófica. É certo que só se conhecem por agora os cadernos até 1941, não ainda os do tempo em que ele soube da Shoah, mas já se deixa compreender o seu silêncio sobre ela! É insuportável!

É do estrume que se nutrem as plantas, do perigo que vem o que salva
5. Felizmente veio Daniel Sibony – o improvável filho duma família judia de Marrakeche, cuja língua materna foi o árabe, e que aprendeu também o hebraico[2], emigrando para França onde obteve um diploma de matemática antes de se tornar psicanalista com Lacan e de se doutorar em filosofia com Desanti, tendo Levinas e de Certeau no júri – Sibony, um filósofo que lê hebraico e transforma completamente a relação entre pensamento filosófico e pensamento bíblico: descobre que, aquém da divindade, há um pensamento da Bíblia, que foi esse pensamento que fecundou o Dasein heideggeriano mas igualmente que sem Heidegger não teria sido possível descobrir o pensamento profético. Ponto de ordem para dizer que, encantado com esta espantosa iluminação recíproca dos pensamentos, do hebraico e do que vem do grego, sou todavia insuspeito, se posso dizer assim: não me reconheço nem na leitura que Sibony faz de Heidegger nem na que faz da Bíblia: em ambos os casos adopto uma postura histórica e textual que ele ignora metodologicamente. “Qualquer exegese bíblica séria segue a órbita de cada palavra através do corpus e encontra-se, junto de outras constelações, abertas às interpretações”, explicita uma nota na p. 196: esta exegese de palavras que as solta do contexto textual, que é também a maneira como trabalha sobre Heidegger e recobre aliás boa parte da maneira de trabalhar do próprio pensador alemão, dispensa qualquer consideração de ordem cronológica ou de problemática do texto em que as citações ocorrem[3]. A sua abordagem é, por assim dizer, uma reflexão filosófica sobre a semântica da língua hebraica encontrada nos textos bíblicos[4], portanto sem oposição entre língua e texto, tal como Heidegger interpreta longamente termos gregos nos textos dos filósofos que lê. E sendo óbvio que me falha a competência para discutir a argumentação a esse nível (não sei nem hebraico nem alemão), a minha maneira diferente de ler esses textos incapacitou-me de formular um discurso coerente sobre as leituras, de conjunto e de confronto, que ele faz de ambos os corpus. Quem quiser saber mais, terá que o ler.
6. A operação inicial e decisiva de Sibony é efectuada sobre o tetragrama divino YHVH (lido como Yahvé), que é um “anagrama do ser (literalmente HVYH), o ser conjugado nos três tempos” (p. 8), “anagrama de ‘ser, será, foi’, que inscreve também o presente” (p. 10); “o Deus bíblico, que é a verdadeira invenção deste Livro, chama-se o ser” (p. 11). “Por detrás do Deus da religião – o vulcão do ser estrondeia sempre, no silêncio ou na violência – é o ser que fala e se inscreve no tempo. O Yahvé bíblico (YHVH) significa literalmente esta presença do ser captada no tempo: YHVH é um espaço de quatro letras que conjugam esta captura e as suas retomadas no tempo, cuja presença é também presença do ser, do tempo do ser; é o ser como tempo e o ser do tempo, e é a forma sob a qual o ser se oferece aos humanos” (p. 13). Diferença para Heidegger: “ele tenta falar do ser, ou melhor, do do ser (Da-sein), a Bíblia tenta fazer falar o ser, com o risco de que essa Palavra vire feitiço – como palavra absoluta de Deus –, risco atenuado pelo facto de que ela coloca-se como infinitamente interpretável” (p. 11-2). Trata-se pois dum “anagrama”: YHVH não é o verbo ‘ser’ (o que seria semanticamente impossível), apenas uma aproximação, o que implica, parece-me, que Sibony procede a uma hipótese de leitura que a sua fecundidade confirmará. Poder-se-ia chamar a esta operação prévia da leitura filosófica a desdeificação do texto hebraico, que abre um mundo imenso de leitura fecunda: nada mais nada menos do que uma articulação possível – com pontos de fricção e critica, é claro, tudo isto releva de filosofia – entre dois dos meus principais campos de interesse intelectual, senão espiritual. Inesperado e sumamente gratificante, no outono da vida.
7. “O Livro desdobra uma linguagem, os seus autores, os escribas hebreus [os Profetas], descobrem o ser como falante e levam a sério a ideia que ‘Deus’ é uma linguagem, identificaram-no ao ser. É esta a grande descoberta do Livro: não ter inventado  Deus como Ente supremo, mas de ter inscrito que, se é preciso fazer falar o horizonte do ente humano, há que buscar numa linguagem que se pusesse a falar o ser. O ser, como presença falante e retiro falante da linguagem, é uma ideia que trama inteiramente o Texto deles e é, obviamente, a ideia principal de Heidegger” (p. 122). “Se o ser se retira, o ente poderia ser um-pouquinho-mais, mas o ser não diminui, mantém a função de ser sob outras formas. Pense-se no ser-desconhecido que atrai a ciência: quanto mais ela aumenta – mais se é sábio – mais o desconhecido parece diminuir, e no entanto quanto mais sábio, melhor se que o desconhecido ‘aumentou’. Quando o ser se retira, aumenta de intensidade e deixa um resto mais intenso do lado do ente humano. O traço e o retiro de ser são metamorfoses do ser que continua, que se revela ainda no limite do seu retiro: há ser-ainda, idêntico e diferente. Não é a simples presença constante dos pensadores gregos. [...] A sua estética e a sua matemática testemunham-no: elas excluem a falta, o buraco, as quebras, as formas ‘feias’, irregulares ou caóticas. E se o ser é constante, em que é que se torna o acontecimento de ser senão na imagem dum modelo? A réplica dum ídolo ou duma ideia? [o eidos definido!] Há que visar a inconstância do ser. O ente, ‘os filósofos gregos experimentaram-no como ente presente, porque o ser vinha-lhes falar como a própria presença’, diz Heidegger. É um eco preciso de centenas de frases do Livro do tipo: a palavra do ser veio falar com (segue o nome do personagem). Estes alvos são acuidades [agudezas, finuras] da presença falante, incluindo a acuidade da sua ausência. Deste ponto de vista, o ser-tempo erra até se falar em tal corpo, erra num batimento de presença-ausência que ritma os tempos cruciais da existência, como nascer, transmitir, receber, desaparecer, com ‘resto’ que existe” (p. 96). Isto é, o ser vai errando pelos humanos até encontrar quem o ouça e se lhe abra, se abra para transmitir a sua palavra, dizendo “eis-me aqui”, expressão bíblica de vocações proféticas que no capítulo 1 Sibony faz equivaler ao heideggeriano Dasein, o humano aberto ao ser.

Paradoxo do narcisismo que preconiza ‘abertura’
8. “Não é pequeno paradoxo que seja um Heidegger que toca no núcleo do ser que fala na Bíblia hebraica, e não os numerosos pensadores judeus – como Husserl, Levinas, Buber, ou Rosenweig... [...] A ideia dum laço entre [pensamento filosófico grego e pensamento judeu] não foi retida, nem o facto de que os Gregos puderam colocar em conceitos abstractos ideias que os Hebreus dramatizavam nas suas narrativas e na sua Lei, retomando eles próprios, em parte, fundos espirituais do Oriente, médio ou próximo. Percebi este paradoxo desde há muito tempo nas minhas leituras de Heidegger: uma sensação de estranhamento em que reconhecia o seu pensamento como vindo de outro lado: era para mim hebreu (claro, transparente), algo de já visto ou ouvido sob outras formas. Encontrava-me diante dum pensamento da origem que escondia-se a sua própria origem. E tinha-o conhecido sob forma não de conceitos mas de acontecimentos, reais ou míticos (por vezes reais porque míticos quando o mito está bem ancorado na vida). É assim que a Bíblia hebraica desenvolve a sua abordagem do ser. Ela comporta uma experimentação da falha fundadora, em vez duma linguagem sobre a questão do ser. Um dos seus primeiros actos é retirar os seus leitores do lugar narcísico de serem os seus primeiros destinatários: colocando-os de imediato como infiéis, impõe-lhes uma décalage (diferença de níveis) que não é senão o desvio ontológico entre o ser e aquilo-que-é” (p. 12). Em vez do Ente imutável grego, o ser-scontecimento (Ereignis, de 1962, a que Sibony alude na p.158): uma diferença ontológica em que a temporalidade se joga nos dois níveis, em vez da oposição grega eternidade / temporal. O próprio Heidegger só lá chegou no final da sua vida, aos 73 anos.
9. “O retiro do ser é duplo: retirar-se [o ente humano], ele [o ser] retira-se. Também o apelo de ser é duplo: apelo do ser, apelo ao ser. Isto pode aclarar a oposição entre os que fazem apelo ao ser (que sentem portanto o seu afastamento) e os que não fazem apelo porque são como entes, seu único horizonte de ser. É a mesma oposição entre idolatria e tomada em conta do ser, que habita todo o Livro. Num sentido, a única falta radical que este denuncia é a idolatria, em que o ente [humano] se coloca como absorvendo o ser, tornando-se assim aquilo que o faz ser ele mesmo” (p. 31). Ou seja, ignorar o ser e os outros, fechar-se no que se é, no que se quer: narcisismo, dirá mais adiante o psicanalista. Ou seja, uma ‘autonomia’ que ignora a heteronomia que a dá e, retirada, a sustenta, que se afirma arrogantemente como única senhora de si, moderna.
10. Permita-se-me uma digressão sobre o que seria o horizonte da laicidade diante da proliferação de ídolos desta modernidade – o dinheiro enquanto riqueza (e não como meio de liberdade de comprar com o seu salário ou pensão) ou os lugares de poder, politico ou mediático –: uma espécie de ecologia radical, fruidora e frugal, epicurista. Espiritual é o/a que não sacrifica ao Dinheiro, ao César, ao Deus dos mortos e outros pensamentos únicos. Livres e solidário/as, já que recebendo-se criticamente dos antepassados e reinventando-se-os.
11. Voltando ao narcisismo, é dele que padece o pensamento heideggeriano: o pensamento do ser era inédito havia quase 20 séculos, vem-lhe como o seu ‘próprio’ pensamento, “uma experiência fundamental do ser que se apropria a origem” (p. 151). Ora, este motivo do ‘próprio’, do ‘autêntico’, corre, segundo Sibony, “um risco, o de que o sujeito ‘autêntico’, seguro de estar acima da maralha [‘Man’, ‘on’] e dos seus partidos, longe do inautêntico do lugar ‘comum’, se corte do ser, que o rebata sobre si próprio. O que é que garante esta ‘propriedade’ ou esta ‘autenticidade’? o seu carácter originário? E se justamente a origem fosse partilhada, em pedaços? [partilhada] entre o Dasein, o ser e o outro [...], a ideia de ser autêntico como o que há que ser posto à prova. [se bem entendi, foi este retomar do pensamento dos antigos Gregos (§ 16) que ‘encheu de ser’ – idolatria, o que hoje se diz ‘arrogância’[5] – o que se quis ‘aberto’ para ele, mas dele se encerrou narcisicamente] Do ponto de vista do ser, continua Sibony, a esfera do politico oferece os mesmos problemas, os mesmos riscos e impasses do que a esfera do pensamento” (p. 149-50). Longe de ser “um professor ‘que não sabia nada de politica’, a política deslumbrou-o. Não foi ‘em politica’ que ele foi ingénuo, foi na ideia de que o seu pensamento próprio do ser podia assim realizar-se. [...] Não programado para se realizar, estava a pontos de o ser, ali aos seus olhos. A cegueira narcísica levada ao seu cume pela sua ‘realização’” (p. 151). Atrás escrevera: “Heidegger, à sua maneira, assume a palavra do ser apenas por sua conta, a sua lei ou a sua necessidade não provindo senão do seu pensamento dessa necessidade. E compreende-se que quando ele vê na realidade cruzar-se o seu pensamento da assumpção originária do ser e a assumpção pelo seu povo do seu destino, o traumatismo – sem dúvida cheio de gozo – foi de tal maneira que não olhou mais longe, nem questionou o que ele via. [...] Ainda menos perscrutou o projecto de apagar o outro cuja existência contestaria essa assumpção. A sua adesão ao nazismo foi de alguma maneira o seu momento idolátrico, como o povo judeu teve um, pouco depois de ter recebido a Lei do ser” (p. 74). Paradoxo recalcado dum pensamento que preconiza a ‘abertura’ ao ser e se revela idólatra quando o pensador se declara nazi, incapaz de diagnosticar uma equivalente cegueira politica. “O nazismo, identidade pura por excelência, não apenas no sentido radical, biológico, mas no sentido em que exige a transmissão idêntica, do idêntico” (p. 152), do próprio e do autêntico: as raízes e a origem, a exclusão do outro. A autenticidade em politica e no pensamento como cegueira assinala-se assim na exclusão do elemento judaico, ao primeiro nível manifesta e barbaramente, no outro silenciado, o silêncio de Heidegger sobre a Shoah sendo talvez sintoma de que Heidegger ‘sabia’ da fonte hebraica do seu pensamento ‘sem o saber’. Talvez os futuros Cadernos negros tragam alguma luz que agora nos falta sobre esta obscuridade.

Etapas da escrita bíblica
12. Terá havido duas etapas bíblicas, uma ‘filosófica’ e outra ‘religiosa’, como Sibony pode parecer dar a entender? É difícil de aceitar uma diferença cronológica de escrita, sem dúvida que desde que esta se fez, o tetragrama divino YHVH já lhe pertencia e o respectivo anagrama; houve uma longa etapa de escrita, desde os textos proféticos de Amós, Oseias e Isaías no século VIII até ao Pentateuco com o qual Esdras no século V restaura o Templo de Jerusalém e é codificada em redor dele a religião, o judaísmo. Podem-se pois distinguir as interpretações de leitores espirituais, digamos, e as ortodoxias que o culto e a jurisprudência implicam consigo. Nesse texto da Torah, a doutrina profética é expressa no cap. 28 do Deteronómio, com as suas bênçãos para os justos que seguem a aliança de Moisés e as suas maldições para os que não as seguem. Mas o livro de Job, atribuído aliás a um edomita (não judeu), recebido após Esdras, critica esta relação entre a fecundidade das casas, campos e rebanhos e a ética dos respectivos pais; sem que Sibony dê por ela, poder-se-á reconhecer com G. Steiner (Gramáticas da criação, p. 55-61) que os cap. 38-41 de Job lhe oferecem uma bela ilustração: a força do universo terrestre e celeste fala como criação pelo Criador, cujo nome aliás tende a ser silenciado por essa época. Uma terceira etapa, se dizer se pode, é a da literatura apocalíptica, a que os evangelhos cristãos pertencem, que acrescentam uma ‘vida eterna’ após a vida terrestre, como quem aceita a critica de Job e lhe responde. Sem que eu conheça a história da tradição judaica de leitura bíblica, o que Sibony propõe é que Heidegger, sem se dar conta explicitamente, enceta uma nova etapa ao descobrir (parcialmente) o pensamento hebraico, sendo condição para que, por sua vez, Sibony o explicitasse.
13. Heidegger ‘soube’ e ‘não soube’ que tinha descoberto a questão do ser na Bíblia: ‘não soube’ já que não fez a operação de desdeificação de Sibony, como parece ser óbvio, mas a sua virulência anti-judaica, não racista na banalidade do anti-semitismo da época, só se explica por ele ‘saber’: algures no que ele sabia sem saber (todos nós temos disso, Freud ensinou-nos), ele sabia e não suportava.

A bifurcação do sentido
14. Uma maneira de entender o Dasein é atender a uma das maiores possibilidades da linguagem dos humanos, a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’ um acontecimento de palavra trazendo o seu contexto com ele: por exemplo, contar uma história do passado ou uma ficção, ou pensar, sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional da palavra. O discursivo de Benveniste (1966, p. 225-66) permite dois modos dos verbos: o indicativo presente que, com os outros índices do locução, reenvia para o seu contexto, e o conjuntivo que reenvia para esta capacidade de pensar outra coisa, guardando no entanto o suporte do ‘eu’ da enunciação (e a relação ao ‘tu’). Igualmente, o narrativo pode guardar esse suporte (numa história a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a essa possibilidade das nossas falas de ‘suspender’ o nosso contexto situacional e nos raptar algures, absorvidos, por exemplo, na leitura dum romance apaixonante? Bifurcação? Jogando sobre os dois sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido: o que nos orienta na espaço, direito, esquerdo, diante, atrás, acima, abaixo, o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de ser também noutro ‘aí’. Bifurcação: presente aqui e algures. É o que diz o exemplo que deu uma vez Heidegger, o de estando em Darmstadt pensar (junto d)a velha ponte de Heidelberg.
15. Esta bifurcação far-se-ia entre o contexto situacional de locução, o seu ‘aqui e agora’, e o contexto trazido pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[6]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para haver este envio da bifurcação, qualquer coisa, um acontecimento mínimo que interrompe, que faz associação entre um elemento do contexto e o que se joga na fala, dita ou silenciosa: um encontro com alguém, ou tal coisa que venha à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias. Esta é tão corrente que temos que admitir – complicando um pouco o Dasein – que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido entre o da situação do contexto e o do discurso da chamada consciência. Prevenção dum acidente, a palavra ‘atenção!’ chama com insistência para o contexto quando se está algures nas nuvens. É esta bifurcação que suporta o ser-o-aí, o abre além do ‘aqui e agora’.

Pensar o Ser que faz doação das coisas contingentes
16. O que é que levou filósofos gregos e profetas hebreus a pensarem o ser? Foi a compreensão da contingência de cada ente, de que cada um, em seu contexto particular de movimento, provinha, era dado, a partir do seu contexto, aberto por sua vez sobre o conjunto de todos os contextos, Céu e Terra, a que chamaram ser. Uns pensaram-no como constância intemporal, donde as essências (imutáveis, eternas) de cada coisa – mormente viva, em seu movimento de crescimento e não só – repetindo-se em ciclos e oscilações; os outros, ao invés, pensaram a não constância temporal, isto é, o narrativo ou histórico, além dos ciclos e oscilações, já que acontecimentos sempre surgem e surpreendem, abrem possibilidades ou fecham-nas. Paradoxo da teologia cristã, grega sobre dado hebraico, fazer do Deus que intervém na história dos humanos um Ente imutável e eterno, ainda que trino, fechando de vez o dogma que se impôs aos filósofos, ainda que não crentes, contra o qual Nietzsche se rebelou: foi retomar esta questão primacial, a da doação dos contingentes fora da perspectiva dum metafísico Ente supremo, que foi o gesto radical e intempestivo de Heidegger.
17. O que é o ser em Heidegger, doação que se dissimula, retira? É a phusis (Como se determina a phusis na Physica de Aristóteles), a Terra (Origem da obra de arte), isto é, a totalidade integrada dos entes em que eles foram / são / serão dados. O que implica este motivo de ‘totalidade’ é que não se trata de ‘entes’ definidos segundo as suas essências, estas não são ‘entes’, não são ‘coisas’: trata-se de algo como uma essência geral fecunda de acontecimentos (é isso a phusis dos Gregos). A essência dum cavalo só em cavalos e éguas, mas há nela a potência deles que os doou/doa/doará, os faz reproduzirem-se na cena ecológica: o ser está do lado desta cena ecológica e portanto da multiplicidade de essências de vivos, como phusis, que engloba quer a solidez, a liquidez, o gasoso da terra e o fogo, quer as habitações humanas. Ou seja, o ser é mesmo a phusis total, a Terra ontológica que deu/dá a terra ôntica dos vivos e humanos: o retiro é o deste nível total ontológico, da doação, mas é também o retiro fenomenológico que as ciências permitem perceber (da mãe mamífera no parto, por exemplo), a ‘regra’ da doação da phusis; sem oposição entre ‘dois’ níveis, ‘dois’ retiros (a diferença ontológica é ‘una’). Ora, o que é que falta aqui? O tempo. É o que o Ereignis introduz, como phusiss-acontecimento que dá ser e tempo a cada ente. E então há aproximação ao ser bíblico que fala, perde-se a constância ou imutabilidade grega das essências para que os acontecimentos ônticos sejam doação do Ereignis como phusis-acontecimento. Então, e a fala? Ora bem, o Da-sein desde Ser e Tempo que é ‘ser’, o ‘aí’ do ser, isto é, que no seu ‘ser’ é questão do ser, na medida em que esteja aberto a ele, à questão que a linguagem lhe permite colocar, no sentido em que ela lhe dá a possibilidade de ser aonde se situa e de ser em simultâneo aonde fala ou ouve, além do que vê e daquilo em que mexe. Ora, entre falar e ouvir há uma clara prioridade do ouvir que chega primeiro: as falas que chegam aos ouvidos fazem bifurcação do sentido, falam do que há além do que se vê, é onde radica o ser que fala!
18. O ser bíblico foi encontrado por Heidegger no Ereignis de 1962, como mais adequado ao mundo dos entes do que o sereno ser grego: o Ereignis dá acontecimentos, e dá-os em resposta, se dizer se pode, às situações dos entes que acontecem, por via da relação dessas situações-acontecimentos com a ‘totalidade’ de situações-acontecimentos dados pela Terra à terra. O que significa que não haja oposição entre os dois ‘níveis’, ontológico e ôntico, que a doação, que justamente se retira, não é determinante dos acontecimentos que doa, que os deixa ser como imotivados, definição de ‘acontecimento’. O retiro da doação é a grande descoberta do pensamento heideggeriano, ela permite que a oposição metafísica transcendência / imanência não tenha cabimento, tão pouco a diferença ontológica Ereignis / acontecimentos é uma ‘oposição’. Talvez a ciência meteorológica possa servir de ilustração: que os meteorologistas consigam prever razoavelmente o tempo da semana que vem através de medições de ‘entes atmosféricos’ (pressões dos ventos, nuvens, temperaturas, pluviosidade, sei lá) mostra que o tempo depende da totalidade das condições da atmosfera da terra, sendo esta ‘totalidade’ o que faz doação dos tempos a cada região; que eles falhem por vezes mostrará que não há determinação nessa doação.

Uma ben(mal)dição
19. Mas eis que o que assim me deslumbra, eu que já não esperava novidades de monta no meu caminho, eis que esta iluminação do pensamento traz consigo as trevas do anti-semitismo. Com uma imensa denegação, que torna Heidegger um caso psicanalítico-filosófico extraordinário, porventura um caso de psiquiatria do pensamento. Onde se dá a ver como o ser dá o luminoso e o sombrio misturados, o mal no coração do bem. Ben(mal)dição: todos os que nascem, plantas e animais, nascemos mortais, o que nos doa é também o que nos dói.






[1] “Saber racial,, saber pré-histórico, saber do povo constituem o fundamento ‘científico’ da visão do mundo pópulo-política” (Nancy, p. 25), escreveu ele criticamente em 1941.
[2] São duas línguas da mesma família semítica, o árabe e o hebreu, próximas como as línguas latinas, sendo fácil a quem fala uma aprender a outra. Sendo o hebreu ensinado em criança na tradição judaica, neste caso pode-se dizer que Sibony tinha o hebreu como língua quase materna. As considerações biográficas colhi-as na Web.
[3] Ele não privilegia, por exemplo, os Profetas como escritores da Bíblia hebraica, como eu faço; não sei se tem sequer alguma noção da reformulação da exegese do Pentateuco no mundo exegético cristão dos últimos 40 anos.
[4] No final dos anos 60, o exegeta inglês James Barr publicou um livro Semantique biblique que criticava fortemente os exegetas cristãos que forneciam a certos termos hebraicos, inclusive na respectiva tradução em línguas modernas, significados ‘teológicos’, propondo ele que, pelo contrário, esses termos eram equivalentes semanticamente aos de qualquer língua. Tendo lido o livro há mais de 40 anos, creio que Sibony retoma o desafio de forma filosófica, mas sem nunca largar o texto para a língua só.
[5] Que manifesta claramente a quase ausência de citações de autores contemporâneos nos seus textos, em contraste com a maneira como Derrida praticamente só escreve lendo textos doutros e desconstruindo-os afim de poder pensar, pensando pois sistematicamente com outros.
[6] É conde se situa, me parece, a ‘verdade’ do que se chama dualismo, ou mesmo idealismo, cujo erro consistirá em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio e cogito, objecto e sujeito. 

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