sexta-feira, 6 de maio de 2016

A relação entre as duas Bíblias, a hebraica e a cristã



1. Não vale a pena repetir o que escrevi há 3 anos, para o qual remeto o leitor sobre aquilo em que consiste o coração da Bíblia hebraica, a narrativa ficcionada duma aliança entre o Deus dos Hebreus (depois Judeus) e o seu Povo, uma aliança ético-política que inspira o direito religioso e comum que o livro do Deuteronómio desenvolve em sequência da Lei em 10 mandamentos, o Decálogo, que os pais de cada casa hebraica devem seguir fielmente, o Deus comprometendo-se a fecundar-lhes as culturas e os rebanhos, a garantir-lhes as vitórias nas guerras.
2. A Bíblia cristã foi escrita na sequência dos acontecimentos relativos a Jesus pelos seus discípulos, considerando-o o Messias que esperavam enquanto judeus, os diversos textos estando compilados na segunda metade do século II da nossa era e acrescentando-se aos da Bíblia hebraica, traduzida em grego, e crismada com o termo de “Antigo Testamento”, em contraste com os textos cristãos, o “Novo Testamento”. O termo ‘testamento’ é latino, parceiro de ‘testemunho’, e traduz o grego ‘diathèkè’, que significa ‘aliança’; a aliança é testemunhada pelos textos proféticos, a figura de Moisés testando tanto o Deus que lhe deu o Decálogo como o povo que o aceitou por representação dele. A figura da aliança existia entre dois reinos que estiveram em guerra, o vencedor mais forte comprometendo-se a garantir a segurança do vencido, que lhe prestará vassalagem, contributos. A Bíblia hebraica conta como o povo hebraico se revelou infiel à aliança: primeiro o reino do Norte, Israel, vencido pela Assíria no final do século VIII, depois o de Judá pelos Babilónios no início do século VI, sendo certo que a exigência ética que os Profetas propuseram, nunca povo nenhum em alguma parte do mundo com algum desenvolvimento agrícola e técnico foi capaz dessa quase santidade colectiva. Daí em diante, com a excepção dos dois séculos de vassalagem aos Persas que lhes garantiu uma paz que deu azo ao acabamento da escrita da Bíblia e à sua colocação no centro da religião judaica (ironia da história, ó Israel de hoje, foi o Irão que te salvou nesses dois séculos em que foste vassalo dele!), a partir da vitória de Alexandre sobre o que os Gregos chamavam ‘Pérsia’ (que era o nome da região do Irão por onde eles o invadiram), nunca mais os Judeus escaparam a vassalagens pesadas, primeiro dos Selêucidas (capital Antioquia) e depois de Roma, contra quem se rebelaram em 66 da nossa era, a derrota de 70 foi o fim do Templo e da nação, com a Diáspora que se iniciara na Babilónia quase sete séculos antes a consumar-se por todo o império.
3. Foi no contexto desta ameaça que se desenvolveu nos dois últimos séculos antes de Cristo uma literatura apocalíptica que tirava as consequências da ocupação estrangeira e da incapacidade das classes dirigentes (a revolta da família Macabeu deu origem a uma dinastia que veio a vergar-se à cultura do ocupante) para anunciar que o Deus da aliança enviaria um Messias que os libertasse, onde eles não podiam. Assim creram João Baptista, Jesus, Paulo e Marcos, o autor do primeiro evangelho, escrito logo a seguir à derrota do ano 70 e anunciando o fim dos tempos para muito breve pelo próprio Jesus de que ele narrava a acção e a crucifixão e anunciava a ressurreição e o retorno iminente, agora que Israel acabara e a aliança deixara de ter outro sentido do que o dessa vinda. Digamos que para estes Judeus essa vinda era mais do que uma ‘prova da existência de Deus’, como nós diríamos, era a ‘certeza’ de que Ele era fiel à sua aliança. Eles não se viam como ‘cristãos’, mas como judeus que estão a chegar ao termo, a Bíblia para eles é a Bíblia hebraica; o próprio evangelho de Marcos é uma espécie de texto suicida, já que destinado a deixar de existir quando o fim dos tempos se concretizar.
4. Deste ponto de vista, a dos próprios textos quando começam a ser escritos – as cartas de Paulo já o tinham sido, ele fora morto em Roma na década de 60 –, a relação entre as duas Bíblias é mais complicada do que parece. Assim como no texto “A Bíblia hebraica revisitada” falei na operação de pensamento que é a redução dos usos económicos e políticos da monarquia israelita pela ficção do deserto do livro do Deuteronómio que conta a aliança na montanha com Moisés, esta operação do pensamento bíblico[1] foi retomada pelos textos apocalípticos cristãos, os de Paulo, Marcos e Mateus: agora, não é o deserto que serve de contexto à redução, mas o próprio tempo, como diz a primeira palavra de Jesus, “os tempos estão cumpridos, o Reino de Deus está próximo”, este ‘reino’ sendo, como outrora no livro do Êxodo, o Deus da aliança que recupera o seu povo da escravidão a que Roma o submete. É o que se entende bem na perspectiva da Bíblia hebraica, o evangelho de Lucas di-lo claramente na primeira metade do hino que ele põe na boca de Zacarias, o pai  de João Baptista (Lucas cap. 1, 68-75), tanto mais significativo quanto Lucas é o evangelho que rompe com este carácter apocalíptico, após o desmentido da história: o Reino de Deus anunciado não veio como se acreditou, espectacular, cósmico. Em que é que consiste esta redução escatológica? Pode-se dizer que é ela que, implicitamente, Agamben desenha no seu belo comentário da carta de Paulo aos Romanos (Le temps qui reste), em torno do comentário do verbo grego katargeô (inverso do aristotélico enêrgeô, activar, obrar), que traduz por ‘desactivar’ (os “poderes deste Mundo”). Paulo preconiza que se usem os usos do tempo quotidiano como se não se usassem, já que o mundo vai acabar, esses usos também acabarão, não merecem que se lhes dêem uma preocupação especial, não valem senão transitoriamente. “Os que usam deste mundo [façam] como se não usassem” (1ª carta aos Coríntios cap. 7, 29-31), porque “o tempo faz-se curto”, contracta-se diz Agamben, “a figura deste mundo está a passar”. Ter mulher, comprar, chorar ou alegrar-se, são exemplos de desejos que não valem já, há que os deslocar para os desejos do messiânico que vem: em paralelo, acrescente-se, com a maneira como no Fédon de Platão os desejos deste mundo se devem deslocar para os da virtude e do pensamento, como os espirituais de várias civilizações entenderam as suas vias como rupturas com os ‘valores dominantes’ nas suas sociedades.
5. Houve dois grandes fracassos nos acontecimentos históricos do século I em que o cristianismo apareceu. O primeiro foi a condenação de Jesus seguida da sua morte, ele que anunciara o Reino de Deus próximo e cuja última palavra, ainda segundo Marcos, foi “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, dita primeiro em aramaico e só depois traduzida para grego, como um selo a atestar a historicidade desse clamor final da narrativa, totalmente inesperado. A resposta dos textos a este fracasso foi a crença na ressurreição de Jesus e a dedução, a partir daí e a começar por Paulo, cujas cartas são os primeiros textos cristãos, de que ele era o Messias que havia de vir, invertendo-se assim o carácter ‘triunfante’ da perspectiva escatológica: para os Judeus, era difícil de entender que um condenado à morte pudesse ser o Messias. Paulo passou aos pagãos de língua grega, vieram-lhe discípulos, multiplicou as assembleias convocadas (ecclesia em grego), acabou morto em Roma, como aliás também Pedro, um dos principais discípulos de Jesus em vida. A geração destes primeiros dirigentes está a acabar, há uma palavra de Jesus que anunciava que a escatologia se consumaria havendo ainda vivos alguns dos que estavam com ele (Marcos cap. 9, 1), o texto escreve-se após a derrota de 70 e o incêndio do Templo, o seu autor em Roma recebe a notícia e compreende que a palavra de Jesus se vai cumprir e para isso escreve o seu texto: “leitor, compreende” (cap. 13, 14). Mas todos morrerão e não houve o final cósmico anunciado, foi este o segundo grande fracasso, o crucificado ressuscitado não voltou, não poderia haver convertidos duma terceira geração de Judeus[2]. Este duplo fracasso cortou a relação entre as duas Bíblias.
6. Mas a Bíblia cristã ainda não existia, Paulo era um judeu que se referia à Bíblia hebraica e nunca lhe passaria pela cabeça que as cartas que escreveu às suas comunidades viessem a equiparar-se à Bíblia de Moisés e dos Profetas, que ele cita com frequência. Todavia ele escreve entre duas narrativas, a da ressurreição de Jesus e a da sua vinda gloriosa em breve, cita a Bíblia na época dos “tempos cumpridos”, tempos em que essa Lei moisaica chegou ao fim do seu papel pedagógico, como ele foi levado a compreender com o acesso dos gentios gregos à fé no Messias e com a inutilidade de muitos dos usos preconizados por essa Lei em fim de rota. Para ele, como para os outros judeus crentes em Jesus Messias, os escritos, ainda que inspirados, chegaram ao fim, deixarão de ter algum papel quando da consumação dos tempos, face ao próprio Deus. Não haverá logicamente mais bíblias! E como, após os dois fracassos, não haverá mais judeus para se converterem a um Messias crucificado e que não se revelou cosmicamente como Messias, o que chamamos cristianismo como acontecimento originalmente judaico deveria historicamente ter-se extinguido, ou pelo menos reduzir-se a algumas assembleias de que temos indícios históricos até ao século IV. Mas tinha havido um truque da parte de Paulo que se revelou decisivo para impedir essa extinção precoce por falta de crentes judeus, um truque eficaz para os gentios messiânicos (ou cristãos, ‘cristo’ é a palavra grega que traduz ‘messias’): ele descobriu uma maneira de designar o que, judeu, ele chamava Messias, um ser celeste que se manifestaria no final dos tempos, uma maneira conveniente para os crentes em Jesus de origem grega, o Filho de Deus. Deus nunca é dito na Bíblia hebraica ‘Pai’ nem o povo de Israel ou alguém mais justo ou santo é dito ‘filho de Deus’. De maneira que, quando, em todas as suas cartas desde a primeira, Jesus, dito Messias, é também dito Filho de Deus, trata-se duma expressão inédita que se pode atribuir à própria invenção de Paulo, o qual aliás na última, aos Romanos, explicita esta designação grega assim: “[...] nascido da semente de David segundo a carne, definido (horisthenos) filho de Deus em dinamismo segundo o sopro de santidade pela (ex) ressurreição dos mortos de Jesus Messias o Senhor nosso” (cap. 1, 3-4). O verbo horizô é aquele com que Platão diz a definição que Sócrates inventou e que ele utilizou para dizer as Formas ideais celestes[3], ou seja Paulo utiliza este verbo para dizer o Jesus ressuscitado como ser celeste no pensamento grego, sem que as principais versões francesas do texto o assinalem, creio que ninguém tinha dado por isso; mesmo os filósofos não estão habituados a dar um lugar decisivo à definição como operação de escrita gnosiológica (que reduz os contextos particulares dos definidos para conhecer as suas ‘essências’) nem para ligar definição e Formas ideais, como as citações da nota 3 fazem. E com mais forte razão os exegetas bíblicos ignorarão o alcance do verbo utilizado por Paulo (nem Agamben deu por ela!), pelas consequências que resultarão daqui: é que deduz-se deste texto, aliás mesmo sem ter em conta o verbo, que foi a partir da (ex) ressurreição que, segundo Paulo, Jesus foi feito Filho de Deus! O que significa que ele não supõe a chamada ‘incarnação’, como o evangelho de João parece supor e algumas cartas pós-paulinas (Colossenses e Efésios), bem como a inserção dum hino gnóstico em Filipenses (cap. 2, 6-7), que nem sequer menciona a ressurreição, fulcro da teoria paulina. Acresce que os textos do século II dos chamados Apologistas gregos, Carta a Diogneto, Aristides, Quadratus, Hermas, Taciano e Atenágoras, que se dirigem a intelectuais e autoridades do mundo greco-romano, não falam de Jesus nem de Messias ou Cristo, apenas de “Filho de Deus”, confirmando que se trata dum título celeste grego, da divindade de um dos vários cultos de origem no Próximo Oriente que proliferavam na época no império romano, que foi como o cristianismo foi então recebido.
7. Se o cristianismo vingou após os seus dois fracassos iniciais em mundo judaico, isso só foi possível pela sua grecização acentuada e pelo afastamento do mundo judaico de origem. Na segunda metade do século II, coligem-se os textos do que será dito o Novo Testamento que se acrescentam ao que se torna o Antigo Testamento, cuja problemática ético-politica em torno da aliança já sofrera a redução escatológica e se tornou o anúncio profético da vinda de Jesus como Messias, que estabeleceu uma Nova Aliança (ou Testamento) de que as assembleias cristãs e a sua união como Igreja são os novos crentes, em vez dos Judeus (culpados de terem morto o Messias!). Mas é o predomínio do discurso platónico com o filósofo cristão Orígenes de Alexandria (185-254) que se vai exercer sobre o conjunto dos textos bíblicos, com redução platónica da corporalidade e do narrativo: este vingará, sem dúvida, na liturgia, em que a festa da Páscoa, da ressurreição de Jesus, será o momento forte do ano, mas o corpo e a sua ressurreição cedem o lugar principal na teologia cristã à alma imortal de Platão. E aqui são as duas Bíblias que se estragam, porque as suas narrativas e discursos vão ser lidos como se tivessem como ‘objectivo’ ajudar a salvar as almas a irem para o céu! Mas o Novo Testamento leva a melhor, porque é ele que tem a ‘chave’ dessa ‘salvação, o que se tornou Antigo Testamento deixa de ter qualquer conteúdo narrativo por ele mesmo, só valerá pelo que não tem e apenas anuncia, mas de maneira pouco clara, se for verdade que esses ‘anúncios proféticos’ são fortemente rebuscados, desde Paulo, dos Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos; mas com a continuação platónica, far-se-á a teoria dos ‘sentidos bíblicos’, dos quais o mais desprezado é o ‘literal’, sendo-lhe preferido o ‘alegórico’ e o ‘espiritual’. Exemplo do século V (Wikipédia, “les quatre sens de l’Écriture”): “a mesma Jerusalém poderá revestir quatro acepções diferentes: no sentido histórico [literal], será a cidade dos Hebreus; no sentido alegórico, a Igreja de Cristo; no sentido anagógico [diz respeito ao futuro escatológico], a cidade celeste, ‘que é a mãe de todos nós’; no sentido tropológico [moral, virtudes], a alma humana”. Assim, pelo exemplo, se vê como os sentidos literais da Bíblia hebraica[4] se esvaziam ao serem interpretados como alegorias cristãs. É por isso que não há confusão possível entre ela, a Bíblia hebraica, e o Antigo Testamento da Bíblia cristã.
8. E no entanto, perdida a perspectiva escatológica e crescendo o número de crentes, a necessidade de organização estável e o devir do cristianismo como religião do império durante o século IV, deixando o estatuto anterior de ‘culto oriental’ como os outros, com perseguições até por vezes, teve como consequência inesperada o recurso ao chamado Antigo Testamento para a adopção de formas que o tinham tornado ‘antigo’ e o rejuvenesceram parcialmente. Duas me parecem dignas de nota: a recuperação do templo e da moral moisaica. Nos evangelhos sinópticos, o Templo de Jerusalém funciona como o ‘adversário simbólico’ do Messias Jesus, que lhe expulsou o comércio e anunciou a sua derrocada futura, tendo-se rasgado o véu que fechava o Santo dos Santos quando Jesus morreu. Ora bem, a Igreja de tal modo multiplicou os templos onde se instalou como religião, que estes são conhecidos em todas as povoações como ‘igrejas’, com o nome das assembleias primitivas; é certo que há uma diferença importante que torna plausível esta metonímia religiosa: ao contrário dos templos pagãos e do de Jerusalém, nos quais os fieis ficavam de fora, só os sacerdotes entravam neles para fazerem os sacrifícios, estes templos abrigavam a assembleia dos crentes. Não impede que a liturgia que neles se fazia e faz, herdando dois rituais judeus, o da sinagoga na “liturgia da palavra” (1ª parte da Missa) e o da ceia pascal (2ª parte), será concebido teologicamente como sacrifício com altar e celebrantes em vez da mesa de todos os participantes que partilham o pão e o vinho. Com os templos, também um clero será instituído inspirado nos levitas bíblicos, desde o final do século II. Quanto à moral, a Lei de Moisés, que o chamado Sermão da Montanha (Mateus, cap. 5 a7) tinha radicalizado numa ética de amor ao próximo e aos próprios inimigos, voltou a ser o centro da pregação para todo o povo, os 10 Mandamentos, a ética evangélica ficando apenas para os que, na lógica da redução escatológica, se consagravam ao celibato e à pobreza em conventos ou comunidades equivalentes: é onde mais claramente o ‘antigo’ jogou em lugar do ‘novo’.
9. Se tenho razão nesta breve reflexão (tenho um manuscrito inédito que desenvolve este e outros pontos), o que fez a chance histórica do cristianismo foi a teologia grega em que a dogmática trinitária e cristológica se definiu. Tanto quanto me parece (há muitos anos que deixei de frequentar estas questões), o recurso de Tomás de Aquino a Aristóteles não tornou a filosofia dessa teologia mais capaz de corresponder às questões que possam ser postas ao cristianismo por intelectuais de hoje: pura e simplesmente, a filosofia grega foi desconstruída pela civilização contemporânea, o que terá como consequência que a dogmática da Trindade e da Incarnação ter-se-á tornado, por assim dizer, caduca filosoficamente, sem que eu saiba da sua eventual reformulação por jovens teólogos. A noção de Filho de Deus, elaborada depois de Paulo como existente em Deus desde o início dos tempos para substituir o Messias cujo retorno foi adiado indefinidamente, teve como consequência o apagamento da Ressurreição de Jesus que está no centro dos textos da Bíblia cristã. Só que esta também se torna de difícil aceitação, eis o problema. Discute-se habitualmente a existência ou não de Deus[5], sendo certo que a noção de um Criador do mundo é hoje muito difícil de entender, sabemos suficientemente das lógicas deste para elas prescindirem dum Relojoeiro cósmico: há demasiados aleatórios nessas lógicas, assim como acasos na sua instalação para que uma ‘intervenção divina’ seja significativa; isto é, que Deus exista não altera nada nas teorias da evolução biológica, é indiferente que um biólogo seja crente ou não, o que se lhe pede é que seja biólogo[6]. Mas  ainda que se pense que Deus não existe, sobra a questão do Cristianismo, para além de muitas objecções que se possam por à sua história, nomeadamente católica (a Inquisição e a anti-modernidade, como uma mãe que repele filhos bastardos do seu seio), já que também sem ele não teria havido nenhuma espécie de modernidade, a filosofia grega que a pariu em grande parte foi dada à Europa pelo predomínio da teologia nas universidades medievais, invenção eclesiástica sem a qual não haveria invenção da Europa.
10. Além da comoção que foi a leitura do texto de Paulo Varela Gomes de há um ano, Morrer é mais difícil do que parece, a sua morte recente, contando-se como numa lenta aproximação se tornara cristão, ajuda a tornar premente e problemática a questão: como um intelectual da sua envergadura a terá encarado, ou não terá dado por ela, a questão da vitalidade da vida para a qual há fortes palavras nos textos bíblicos tendo sido predominante sobre as dimensões teológicas? Só o conheci uma vez, nos anos 80, agora teria gostado de o ouvir. Será possível confessar-se cristão sem se crer na ressurreição? Jean-Luc Nancy, por exemplo dum pensador que escreveu dois livros sobre a desconstrução do cristianismo[7] descartando a ressurreição pura e simplesmente (noutro texto sobre Deus dito a adolescentes, diz não acreditar nele mas considerar importante a maneira como se fala dele), considerar-se-á ‘cristão’ ou simplesmente um pensador do cristianismo? Outro caso notável é o de João Bénard da Costa, que foi militante católico na sua juventude e depois rompeu com a Igreja, mas nunca deixou de ser crente, não ‘apesar’ da sua grande cultura, em cinema, pintura e música nomeadamente, mas manifestando-o em muitos escritos sobre as artes e as vidas. Numa entrevista dada algum tempo antes de morrer e ainda não doente, a última pergunta foi sobre que projectos tinha e a resposta extraordinária foi esta: “conhecer Deus”. Era o último e definitivo projecto da sua vida, que culminaria todos os outros.
11. É possível que, estando perto de acabar, segundo creio, as gerações anticlericais que se sentiram abafadas pelo clericalismo na sua infância e adolescência, os textos cristãos venham a ter um lugar reconhecido nas bibliotecas da cultura, a par de tantos textos de pensamento e literatura, a poderem ser fecundos espiritualmente com muitos outros. A modernidade deve demais ao Cristianismo para que se a possa compreender ignorando este. E o Sermão da Montanha é um texto fabuloso, que deixa o Fédon a léguas, uma gramática de vida para grandes apaixonados.




[1] Não sei se noutros textos doutras sociedades ela foi também inventada ou se é uma exclusividade do pensamento profético.
[2] Há uma discussão sobre isso no texto do filosofo grego cristão Justino de meados do século II, Diálogo com Trifão.
[3] Parménides, 135c, Metafísica, 1078b18-34.
[4] Ainda que o judaísmo também tenha uma prática hermenêutica em que os sentidos literais ou históricos cedam a espiritualidades, platónicas ou não. Mas disso não sei nada.
[5] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2015/08/prova-e-provacao-de-deus.html
[6] Estou a pensar num prémio Nobel de medicina, John Eccles, cristão, que escreveu um livro com um filósofo conceituado, Karl Popper que se diz nele agnóstico, em que o título diz logo a má colocação da questão dum ponto de vista fenomenológico, mas em que provavelmente a crença cristã do biólogo jogou, embora o agnosticismo do filósofo não o tenha ajudado: The self and its brain, há ‘alguém’ que tem um cérebro! Foi o primeiro livro sobre o cérebro que li, há mais de 30 anos, mas quando chega às questões de interpretação do funcionamento cerebral, percebi que era uma lástima, o que a leitura seguinte, de Changeux, me confirmou.
[7] Que confesso não ter entendido grande coisa, sou demasiado adstrito aos textos e à historicidade.

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