segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Secularização e democracia



adenda a
AS CIÊNCIAS DAS SOCIEDADES 
NUMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA

http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2015/11/as-ciencias-das-sociedades-numa.html

Cosmopolitismo e secularização
O espaço de saber espiritual
A secularização económica
A “instituição” secularizada: da Igreja romana ao Estado do século XIX
Breve caracterização do messiânico
Dos movimentos espirituais e de reforma aos movimentos críticos
A secularização da busca do saber, do ‘espiritual’ ao ‘intelectual’
O messiânico e a democracia




1. Nesse texto sobre as ciências das sociedades não aparece sequer a palavra ‘secularização’, o que não impede que a questão lá esteja, mas não elaborada de forma explícita. Ora, com a leitura de alguns textos sobre ela na revista Noésis (univ. Nice) sobre Philosophie et religion aujourd’hui[1] estimularam a pensar, dei-me conta de como textos que fazem actualmente autoridade na questão, mormente Le désenchantement du monde de Marcel Gauchet, me parecem falharem aspectos fulcrais do fenómeno da diminuição drástica das práticas e crenças religiosas nas sociedades desenvolvidas do Ocidente, nomeadamente nos últimos 50 anos. A tese da substituição das funções anteriores das igrejas pelas da escola (§ 26 do texto de referência) permite entender o ponto essencial da secularização, desde que se acrescente, para se perceberem as razões estruturais do processo, que o cosmopolitismo helenista do império romano já consistiu na época numa forma de modernidade secularizante.

Cosmopolitismo e secularização
2. Em que é que consiste o cosmopolitismo? Na colocação do mecanismo que define o que chamamos modernidade: a avaliação critica dos saberes recebidos dos Antepassados que permitiam que as sociedades se reproduzissem, as novas gerações aprendendo com as adultas os usos e costumes dessa reprodução. Esta transmissão continuou a fazer-se nos meios agrícolas e pastoris em que a inovação é muito lenta (os ‘pagi’, camponeses fixados à terra, que resistiram ao cosmopolitismo e depois ao cristianismo como religião, serão chamados os ‘pagãos’), mas as cidades, sobretudo as grandes metrópoles (Atenas, Roma, Alexandria, Antioquia, Constantionopla), conhecem por um lado uma inovação razoável de usos e por outro uma mistura de tradições ancestrais de costumes religiosos, com atenuação gradual da própria tradição genealógica (menos nas casas de grandes heranças). É aonde a escrita permitiu, desde os meados do milénio antes da nossa era, a formação de escolas de exercícios espirituais – Zaratustra na Pér­sia (sec VIII), Lao-Tseu e Confúcio na China (sec. VI-V), Buda na Índia (sec. VI-V), os Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Par­ménides, Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V) – em torno dos textos dum Mestre que rompera com os usos dominantes, religiosos inclusive, da sua sociedade (riqueza, glória da guerra, luxos da mesa e do corpo) e propunha outras intensidades para o viver, a sabedoria, a temperança, a virtude, como é claro na Apologia de Sócrates e no  Fédon, um misto do que chamamos intelectual com o que chamamos espiritual. Foi nomeadamente onde Sócrates inventou a definição que Platão e Aristóteles utilizaram, este último abundantemente, nos seus textos gnoseológicos a que chamamos filosofia. Esta avaliação critica de escolha (‘heresia’ em grego) do recebido tradicional holístico, isto é válido para todos (holoi), em que consiste a religião, institucionalizou-se como escola, a qual substitui a relação de aprendizagem das casas, entre pais e filhos, por uma relação entre mestres e discípulos exterior à ordem do parentesco, à hereditariedade e à herança das casas. Esta substituição é o princípio da secularização, o paralelo entre as duas formas de herança – a da economia das casas e a da transmissão escolar de saberes além dessa economia – é a trave mestra de qualquer modernidade. A relação holística religiosa em torno do sagrado, pertencendo à ordem do parentesco e da soberania, é substituída por uma relação cultural, que privilegia os antepassados da escola, guardando os seus nomes e os seus textos. A antiguidade grega e romana foi já uma modernidade[2], em que escrita e leitura supõem uma invenção técnica relativamente desenvolvida em termos de divisão do trabalho nas cidades.
3. Mas esse cosmopolitismo não resistiu ao desmoronar das grandes metrópoles onde houve a sua possibilidade e a religião holística voltou ao Ocidente, como Cristandade: o que fora inicialmente forma marginal de ‘leitores’ de textos espirituais tornou-se um fenómeno de religião global a várias sociedades, acima das suas variadas genealogias. Como o Judaísmo no tempo do domínio persa, o Budismo provavelmente na Ásia, o Islão alguns séculos depois, esta religião com textos cobrindo várias sociedades formou-se segundo duas camadas sociais: na Cristandade, dum lado a dos clérigos, capazes de lerem os textos, do outro a dos leigos analfabetos, camponeses mas também artesãos das vilas e nobres guerreiros. A genealogia religiosa cristã sobrepôs-se às genealogias de parentesco, como aliás já sucedera no mundo israelita nos séculos VI-V, o livro bíblico da Tora, resultante da escrita profética, tendo-se imposto na formação do judaísmo, o que veio a gizar várias escolas de interpretação dos textos como movimentos espirituais, de que o cristianismo é exemplo nos séc. I-II: heresia do judaísmo, platonizada por Orígenes de Alexandria no alvor do s. III, o que o tornou também em heresia de Atenas. O que a Cristandade medieval significou foi que no cosmopolitismo antigo a escola não chegou a ser obrigatória; foi necessária uma boa dezena de séculos até ao ressurgir dum novo cosmopolitismo, de cidades de artesanatos e comerciais em expansão e Renascimento humanista, que veio a tornar possível a industrialização, cuja secularização substituiu as igrejas por uma escola agora holística.
4. Uma vantagem de se considerar a diferença entre religião e movimentos espirituais em torno de textos escritos (a nova religião escondeu a Bíblia em latim) é de permitir compreender como a leitura dos textos evangélicos foi sempre fomentando fenómenos espirituais (mosteiros, conventos, frades) e mesmo, aquando do alvor das comunas dos séc. XII e XIII, gerou escolas universitárias, entre o escolar e o eclesiástico religioso (§ 24). Ora, este espiritual-e-intelectual nas margens da Cristandade teve efeitos críticos sobre esta, com apelos à reforma do aparelho eclesiástico encostado ao poder politico das armas, o que veio a ter, a partir da produção industrial de livros na segunda metade do século XV e as traduções vernáculas da Bíblia, como efeito o grande cisma cristão que cindiu as sociedades do norte da Europa de línguas não latinas do sul latino e católico romano. As diversas confissões protestantes organizaram-se todavia como religiões holísticas (como testemunham as guerras de religião que se seguiram) mas, com a leitura da Bíblia no centro da piedade, as reformas espirituais da Reforma e os ‘revivals’ foram-se disseminando de forma cosmopolita clara.
5. Mas enquanto a forma de riqueza tiver a sua base na agricultura e a maioria das populações for feita de camponeses, ciosos da fecundidade dos seus campos e rebanhos, os rituais religiosos continuam a ser praticados no mundo rural e nas pequenas cidades, onde quase não haja escola. A secularização actual vai bastante além do cosmopolitismo das sociedades de energia apenas biológica, ela tem uma outra fonte muito clara que no § 26 é enunciada assim: a grande diferença entre as sociedades europeias clássicas e as da modernidade é de ordem energética, contraposta às formas biológicas das sociedades de dominância agrícola e pastoril; a partir da invenção da máquina a vapor, a energia será doravante produzida industrialmente, com dois grandes saltos posteriores, o da electrificação social e o da electrónica. A fecundidade dos campos, misteriosa até à biologia molecular dos meados do século XX, cede à produtividade devida às máquinas do saber científico e técnico. Este ponto nenhum dos vários textos sobre secularização na dita revista tem a menor noção de como é crucial na secularização moderna, a torna bem mais conseguida do que a da Antiguidade.

O espaço de saber espiritual
6. O que é que fez a escrita no cosmopolitismo? A “invenção da transcendência”, disse Gauchet, além da imanência, pois: inventou saberes além da economia das casas e das cidades, da guerra e do comércio, das honras das riquezas e do poder. Inventou um espaço de espiritualidade, autónomo dos usos quotidianos e critico eticamente da super-estrutura de poder (social, político, religioso): de busca de sabedoria, de pensamento verdadeiro (invenção socrática da definição), de amor, amizade e beleza, de ética, de conhecimento das coisas, ciências e lógica (Aristóteles), de busca de saberes sem utilidade imediata, o equivalente no que à escrita e discussão diz respeito ao desporto olímpico no campo dos atletas da física. Saber de ociosos (scholê, ócio, lazer) que não trabalhavam de suas mãos (tinham escravos para isso), saber do que ia além do que se via crescer e mudar, desse ‘além’ nos ficando o prefixo ‘meta’ dos textos aristotélicos que se seguiam aos da physica, ou o latino ‘sobre’ da teologia da ‘graça sobrenatural’. Saber metafísico e sobrenatural, que os modernos pejorativamente chamam ‘especulativo’, mas foi dele que sábios burgueses testaram saberes desses em aparelhagens (físicas) que ‘laboravam’ produzindo movimentos que mediam, que homens como Galileu e Newton retiraram um saber novo, que se veio a revelar capaz de energias inesperadas e de máquinas que trabalham a partir delas, saber que se veio a revelar fecundo duma modernidade inédita, além da physica aristotélica dos vivos, duma modernidade ‘metafísica’ e ‘sobrenatural’ (em seus prodígios que nos maravilham). Que esta maneira de dizer sublinhe como a ética e a espiritualidade foram o rasgão que os nossos antepassados deram ao social criando novos saberes, que ela nos ajude a ofuscarmo-nos de ver as suas heranças nas mãos de ‘especuladores financeiros’ que não vêem um palmo à frente do nariz (ai de nós!).
7. Já agora, há que acrescentar (num domínio a que o meu apelido deveria me ligar mas a que sou alheio de educação, hélas!) que também as artes – poesias, músicas, pinturas, esculturas, arquitecturas – relevam desta maneira de se pensar a diferença espiritual, já que usam meios de usar quotidianos de forma não utilitária, transcendendo, indo além da utilidade da reprodução da habitação, das necessidades da vida ecológica, sem sair todavia do seu horizonte, ‘sensível’ como se diz, já que esta necessidade da arte manifesta assim – na imanência do material que trabalha, elabora, transformando matéria – a gratuidade da doação da própria condição ecológica e humana. Por isso as artes apareceram em situações rituais, repetições que traziam pujanças ancestrais, os Mortos fecundando mitologicamente os vivos.

A secularização económica
8. Se a palavra ‘secularização’ foi forjada para dizer a maneira como a Revolução francesa se apropriou dos imensos bens eclesiásticos franceses – do campo do ‘sagrado’ ao do ‘século’, como era a maneira clerical de falar do mundo profano e ‘temporal’ dos leigos, que eles, clérigos, ocupavam-se da ‘eternidade’ –, há que voltar à Cristandade medieval para entender as razões históricas do processo. Como foi ilustrado por G. Bataille em La part maudite, um livro de economia geral, além do utilitário e mercantil de que a ciência económica se ocupa, o excesso da economia medieval, sem comércio digno desse nome, era desviado para o campo do sagrado, catedrais, abadias, conventos; o livro de Jacques Le Goff, O nascimento do purgatório, permite compreender como essa invenção teológica, um terceiro lugar provisório entre céu e inferno – nestes a Igreja não tinha poder – em que as almas iriam para o céu depois de purificadas, durante um período que as esmolas e missas de sufrágio, além daquelas obras eclesiásticas, poderiam abreviar. Era uma economia ‘transcendental’, que em Portugal ainda se manifestou na primeira metade do século XVIII com D. João V e o convento de Mafra.
9. Ora, a Reforma de Lutero pôs essa economia directamente em questão. Tendo visitado Roma na época em que se construía a Basílica de S. Pedro, reagiu violentamente contra a pregação de “indulgências” a favor das almas do purgatório, cuja ‘venda’ tinha essas obras como objectivo. A sua dicotomia célebre entre “a fé e as obras”, excluindo estas (e a própria noção de purgatório) da salvação das almas que só a “fé” justificava, teve como consequência o encerramento dos conventos do mundo protestante, os quais foram assim secularizados de boa vontade, por razões evangélicas, cerca de três séculos antes dos revolucionários franceses seguidos de outros latinos terem secularizado à força os bens católicos, vistos como inúteis pela nova economia mercantil em vias de industrialização. Max Weber assinalou na sua A ética protestante e o espírito do capitalismo, como o próprio Lutero fez a transição do termo ‘vocação’ (Beruf) do mundo religioso que ele reformara para o uso profano profissional que se institucionalizou: celebrou assim a secularização, poupando aos povos nórdicos a peste do clericalismo e do anticlericalismo (após as guerras da religião) e fomentando, com o mercantilismo, o que Marx chamou a acumulação capitalista que tornou possível a industrialização.

A “instituição” secularizada: da Igreja romana ao Estado do século XIX
10. A tese é do alemão Carl Schmitt, teórico do direito (católico e nazi), que pretendeu que “todos os conceitos do poder legislativo e da metafísica aparecidos na Europa no decorrer da história dos últimos séculos e que exerceram uma influência na formação da sociedade, provêm da supremacia da Igreja romana na Idade Média, e mais, relevam do facto de que essa Igreja, como diz Schmitt, é ‘em larga medida, a que transporta o espírito jurídico e que é a verdadeira herdeira da jurisprudência romana’ ” (André Doremus, La théologie politique de Carl Schmitt[3], p. 31). É fácil de presumir que ao ser institucionalizada durante o século IV, de Constantino a Teodósio, a igreja de Roma tornou-se ‘romana’, substituindo formas litúrgicas e organizativas da religião civil que se esgotara (o Papa como ‘Sumo Pontífice’ e a sua ‘Cúria’ são ainda hoje termos herdados assim), mas quando as formas do Estado imperial se esvaziaram, elas como que foram continuadas à maneira de uma instituição religiosa que ganhará funções cívicas administrativas. Ora, que essa instituição com uma rede de bispos e clérigos espalhada pela geografia da cristandade tenha adoptado uma forma de celibato para todos os seus funcionários religiosos, fosse mais ou menos cumprida de facto mas entendida como devendo-o ser, é algo que merece ser sublinhado: a relação mestre / discípulos própria da escola espiritual e intelectual, distinta da de pai / filhos mas pensando-se na sua matriz parental (‘padre’), reforça uma distinção provavelmente inédita historicamente entre as duas esferas, a da economia e parentesco por um lado, a da instituição do “governo das almas”[4] e (politica) dos lares por outro. Que as universidades tenham mantido durante séculos, mesmo após o cisma do século XVI, a teologia como disciplina de topo e a filosofia como a sua ‘serva’ (ancilla), isto é, um discurso que busca esclarecer e justificar o outro, que é posto como proeminente mas cujo texto base, o bíblico, não tem meios para essa busca teórica, eis o que parece explicar que “todos os conceitos significativos da doutrina moderna do Estado”, diz o terceiro capítulo da Teologia politica (C. Schmitt), “são conceitos teológicos secularizados. E isso não apenas pela sua evolução histórica, já que eles foram transpostos da teologia à doutrina do Estado, como por exemplo no caso do Deus todo poderoso tornado o legislador omnipotente, mas também na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para observar estes conceitos dum ponto de vista sociológico” (Doremus, p. 27). Depois de citar a ‘vontade geral’ em Descartes e Rousseau, Doremus exemplifica como “das leis da natureza, tais como Descartes, Malebranche e Leibniz as desenvolvem, decorrem já em d’Holbach as ‘leis do desenvolvimento económico’ a que o Estado tem que se submeter” (Doremus, p. 44).

Breve caracterização do messiânico
11. Além desta perspectiva dum cristianismo secularizante vinda da jurisprudência, poder-se-ia aproveitar a boleia que ela oferece partindo duma outra visão do cristianismo mais integrada, se dizer se pode, retirada da minha leitura dos evangelhos num texto inédito[5]. Os dois primeiros a serem escritos, o de Marcos e o de Mateus, inserem-se numa perspectiva apocalíptica, anunciando logo de entrada o fim dos tempos para breve, o que tem como incidência a radicalização das posições: Jesus forma com os seus discípulos um movimento messiânico que propõe três oposições politico-espirituais (estas duas dimensões no contexto apocalíptico são indissociáveis): “Deus de vivos / Deus de mortos” (Mc 12, 27, Mt 22, 32, também Lucas 20, 38) “Deus / Dinheiro” (Mt 6, 24, Lc 16, 13) e “Deus / César” (Mc 12, 27, Mt 22, 21, Lc 20, 25). O que significam estas oposições?
12. Em que é que consiste o “Deus de mortos”? A discussão passa-se no Templo que Jesus desembaraçou violentamente do comércio que nele se fazia em função dos sacrifícios do culto e pode dizer-se que na economia dos textos evangélicos (excepto no de João) o Templo é o Adversário simbólico do Messias: o “Deus de mortos” é o Deus desse Templo. Numa outra passagem de Lucas (9, 60), o termo ‘mortos’ é usado de maneira equivalente; a alguém que quer seguir Jesus como discípulo mas pede para que o deixe primeiro ir enterrar o seu pai, a dura resposta é esta: “deixa os mortos enterrar os mortos deles”, o zelo religioso é desqualificado de forma apocalipticamente radical. Em resumo, o “Deus de mortos” é o da religião hierarquicamente instalada como um poder social, bem dissociado do “Deus de vivos” de quem o movimento messiânico se reclama, no caso como aquele que ressuscitará todos os mortos no final dos tempos anunciado para breve.
13. A oposição a César é entendida habitualmente de forma anacrónica, como se se tratasse duma repartição de actividades, um pacto entre dois ‘poderes’ substantivos: ao poder do Estado o que lhe compete, ao mundo eclesiástico a sacristia e o seu rebanho de pastores. Mas uma leitura atenta do episódio que culminou nessa frase mostra o anacronismo que seria deixar-se todo o domínio de César ao seu arbítrio. Trata-se com efeito de uma armadilha: “é ou não lícito pagar o imposto a César?”, questão politica por excelência num pais ocupado militarmente pelos exércitos de César para justamente cobrar esses impostos. Se Jesus disser que não é lícito, será denunciado à autoridade romana ocupante, a quem esse imposto se destina; se disser que sim, será abandonado pela multidão anti-ocupação romana que o aclamou à entrada em Jerusalém e à expulsão dos comerciantes do Templo, deixará portanto de ser perigoso. Se a resposta de Jesus fosse a que hoje corre, ele teria caído na armadilha e teria sido renegado pela multidão, o que obviamente não sucedeu: a resposta não foi a dum ‘colaborador’ com o ocupante. A astúcia de Jesus foi pedir a moeda e pegar pela imagem de César nela: a Lei bíblica proíbe as imagens de humanos, aquela imagem é pois ilícita, estrangeira, mandá-la para César equivale a expulsar a moeda do pais, o que por um lado convém à multidão que o aclama e por outro não dá pretexto a acusação aos Romanos. “E eles ficaram espantados” com a resposta, concluem os três evangelhos. César é a cabeça do poder politico e dos seus exércitos, oposto ao Deus de vivos de que o movimento messiânico se reclama; no livro do Apocalipse, César é o adversário do Messias.
14. Quanto à oposição de Deus ao Dinheiro, há que dizer que o que provoca algum espanto é a importância politica dessa oposição já nessa época, algumas parábolas aliás testemunhando da divulgação do comercio e do dinheiro na Palestina ocupada. Proposto como equivalente às trocas de coisas produzidas, a sua acumulação em mãos dos senhores de casas ricas torna-o capaz de poder económico sobre os que têm que trabalhar para receber um salário de sobrevivência.
15. Em todas as estruturas que consolidam um poder, ‘substantivo’ de uso corrente, este tende a impedir o que os seus subordinados podem, ‘poder’ agora como ‘verbo’. O motivo evangélico do serviço extremamente radical – “vocês sabem que os que são vistos como chefes das nações mandam nelas como senhores e que os grandes fazem sentir o seu poder sobre elas; não deve ser assim entre vocês: pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vocês, far-se-á o vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vocês, far-se-á o escravo de todos” (Mc 10, 42-44) – pode ser lido como fomento das possibilidades dos que estão sujeitos aos poderes, ajudá-los a libertarem-se para o que possam fazer e ser. O que significa que se há uma ética messiânica, ela não consiste em virtudes pessoais das almas, numa moral de indivíduos como a dos 10 Mandamentos da Bíblia hebraica, rebuscada pela cristandade e ensinada nos catecismos, mas numa ética de amor do próximo, de solidariedade, que tem a ver directamente com o mundo social, com a inversão do seu poder. Foi esta ética que propuseram constantemente os movimentos espirituais que sempre foram surgindo nas margens dos aparelhos eclesiásticos, uma ética de vivos assim testemunhada bem além dos que a professavam. Porquê chamar-lhes ‘messiânicos’? Para marcar a radicalidade apocalíptica em torno da figura escatológica do ‘Messias’, termo vindo hebreu que em grego se traduziu para ‘Cristo’ e rapidamente perdeu a perspectiva escatológica hebraica, tornado no mundo greco-romano o apelido de ‘Jesus’. A palavra cristão traduz  messiânico, a palavra cristianismo traduz messianismo.
16. Com efeito, durante dois séculos e meio, o movimento espiritual, messiânico ou cristão, perdida a esperança apocalíptica breve, disseminou-se nas cidades do império romano, mal tolerado e por vezes perseguido cruelmente, manifestando todavia uma relativa frontalidade aos três emblemas simbólicos que cativavam os desejos dos pais de família em ordem à relativamente ordeira reprodução social que os três poderes, religioso, imperial e económico procuravam assegurar tanto quanto possível: o dinheiro permitia que as trocas económicas tivessem alguma racionalidade, o imperador velava para que o direito se cumprisse assegurando as armas a boa ordem, os sacrifícios religiosos procuravam ganhar a bênção dos Deuses que detinham o segredo da fecundidade dos campos e dos rebanhos; em resumo, os emblemas do poder eram necessários para que, melhor ou pior, a sociedade funcionasse. Ora, o cristianismo, como o budismo sem dúvida, de movimento espiritual que, exilado da Palestina de origem e da esperança messiânica breve, guardou da sua dimensão politica apenas a resistência às perseguições durante esses dois séculos e meio, veio ao longo do século IV a ocupar o lugar de religião do império, rapidamente aliás tomando atitudes de poder persecutório contra a antiga religião oficial e contra os outros cultos espirituais, filosóficos inclusive. Donde que o messiânico se tenha deslocado para as margens do mundo religioso, retomando nas vidas de eremitas, monges, frades, etc., o desígnio do amor do próximo e do serviço, segundo as três oposições evangélicas. Mas nas gerações seguintes, conventos e ordens mais ou menos se integraram no mundo eclesiástico, abrindo caminho a futuros movimentos espirituais.

Dos movimentos espirituais e de reforma aos movimentos criticos
17. Sejam três observações gerais. Uma diz respeito à maneira como os mosteiros beneditinos, entre os primeiros movimentos espirituais a institucionalizarem-se, teve como desígnio ora et labora, colocando o trabalho considerado servil, próprio dos escravos e dos servos, no lugar nobre da instituição, em comum com a oração. A noção de ‘serviço’ fazia pois parte estrutural dela, ainda que entre os trabalhos dos mosteiros houvesse também os que diziam respeito aos manuscritos que eles copiaram, permitindo um mínimo de transmissão do acervo da Antiguidade greco-romana. A segunda consiste em sublinhar o sentido da palavra ‘ministro’ que designa nos países ocidentais os lugares proeminentes da governação e do poder. Ora, em latim, o magister e o minister eram o senhor das casas ricas e o respectivo escravo, o ‘magis’ e o ‘minus’, o maior e o menor. Que o termo que dizia o escravo se tenha tornado o que diz os lugares de poder, é um sintoma de secularização: os chefes cristãos ainda não tinham esquecido a injunção do serviço ao invés das nações, e o termo secularizou-se invertendo o sentido semântico da palavra latina. A terceira diz respeito à maneira como os juros de empréstimos foram proibidos na cristandade, segundo a Bíblia hebraica que só os permitia a estrangeiros (Deuteronómio 23, 20-21): donde que cristãos não podiam emprestar a cristãos nem judeus a judeus, mas estes, minoritários, podiam emprestar a cristãos, o que explica historicamente o lugar proeminente que alguns tiveram na história das finanças europeias. O mundo católico após a Reforma manteve essa proibição até 1745 (encíclica Vix prevenit), onde o ‘atraso’ capitalista desse mundo se sublinha historicamente e que a admissão da cobrança dos juros no sec XVIII se mostra como secularização.
18. A reclamação da reforma da estrutura eclesiástica na chamada Alta Idade Média, os séculos das comunas e das universidades, é um movimento cujo fôlego é simultaneamente espiritual, nas suas motivações, e politico nos seus objectivos, que visam uma estrutura eclesiástica com dominação temporal frequentemente (no Estado pontifício romano, em feudos de Abadias e Arcebispados) e enredada ao poder feudal nas outras regiões: sintoma de como esse conluio se manteve no mundo católico até ao século XX são as capelas dos palácios nobres com os respectivos capelães na sua casa civil. Ora, essa reclamação é uma atitude ‘moderna’, faz-se a partir da leitura critica dos textos evangélicos e da sua injunção de serviço, das três oposições aos emblemas dos poderes sociais. Assim os socialismos utópicos terão frequentemente motivos cristãos explícitos, como é o caso do inglês G. Winstanley (sec. XVII), desde os tempos medievais que as ditas heresias (Valdenses, Joaquim Fiore, Jan Hus, Muntzer, Anabaptistas) foram suas antepassadas. A filosofia de movimentos espirituais como a chamada devotio moderna ou o pietismo, será de ordem platónica, vincando tudo o que é invisível, destacando-se inclusivamente da própria liturgia e dos seus rituais. É a salvação das ‘almas’ após a morte que, como sempre, é o mote decisivo, mas ainda com referências às oposições evangélicas: poder-se-á dizer que a secularização encontrará no fôlego destes movimentos um suporte que traz os objectivos de mudança para o social e politico deste mundo. Mas o próprio marxismo se formulou teoricamente a partir duma ‘inversão’, que se pode dizer secularizante, da dialéctica hegeliana e da sua matriz teológica: a solidariedade cristã do amor do próximo pode-se dizer que é revertida secularmente no lugar essencial do proletariado na revolução comunista. Completar-se-á assim em parte, que se trata aqui de questões que nunca trabalhei, a perspectiva sobre a secularização política aberta por C. Schmitt.

A secularização da busca do saber, do ‘espiritual’ ao ‘intelectual’
19. Se a Physica de Aristóteles é “o livro de fundo da filosofia ocidental” (Heidegger), isso foi devido à maneira como Tomás de Aquino o introduziu no pensamento medieval: desde ele até Galileu pelo menos que se lhe chamou “O Filósofo”. Ele ganhou com efeito o lugar proeminente nas universidades em que a Teologia era a disciplina principal, de que a Filosofia era a ‘ancilla’, como disse acima. Aonde quer que, do século XVI ao final do XVIII, se encontrem autores para dizerem mal de Aristóteles, quase todos os modernos, temos aí a confissão de que foi com ele que aprenderam a pensar e a criticar, e que o criticaram também a ele. Se o anti-aristotelismo é pensar ‘contra’ Aristóteles, é sempre o segundo tempo dum pensamento que foi feito a partir dele. Galileu di-lo claramente no Diálogo dos grandes sistemas: “Aristóteles retirado da sua cátedra, a quem recorreríamos nós para pôr fim às nossas controvérsias? Que outro autor seguir nas escolas, nas academias, nas universidades? Que outro filósofo tratou de todas as partes da filosofia natural com tanto método, sem negligenciar a menor conclusão particular?” (ed. 1966, pp. 161-2). Ora, a critica da modernidade é anti-aristotélica: é Platão, o mestre que ele criticara na Academia, que ocupa agora a posição critica. Os seus textos foram traduzidos para latim na segunda metade do século XV – à boleia dos livros impressos, das naus atlânticas e do humanismo renascentista por estava a começar a modernidade europeia –, abrindo a possibilidade de o platonismo de Descartes (penso = existo como coisa cogitante) se tornar por sua vez crítico do aristotelismo e fecundar cientistas e filósofos europeus, formados na universidade com as problemáticas e conceitos de Aristóteles mas sendo na sua maioria enquanto inventores marginais à universidade, até que as reformas desta no século XIX, a partir de Humboldt, desalojou a teologia e o aristotelismo de vez e entregou a formação dos estudantes aos cientistas e aos pensadores modernos. Esta marginalidade do pensamento e do ‘labor’ científico que veio a fecundar a modernidade pode ser lida como um fenómeno de secularização, a do ‘sopro’ para a razão e a liberdade: em vez de irem para os movimentos espirituais nas margens das igrejas, os jovens foram para os movimentos intelectuais as margens da escola, criando as condições da sua reforma, que a pudesse tornar na instituição holística do mundo do saber e da busca da sabedoria, substituindo as igrejas cristãs.
20. Ora, esta secularização da busca do saber fez-se pela escola mas também pela edição industrial de livros desde o sec. XV, sem a qual a escola não se teria expandido. A edição de jornais, que se generalizou lentamente a partir do sec XVII, veio criar condições de debate politico, fomentando uma opinião pública entre os s suficientemente escolarizado que sofreu um incremento notável no sec XIX com a generalização da escola e dos movimentos políticos e sindicais. É no sec XX todavia que há uma mutação deste fenómeno, que se caracterizou por aquilo que os americanos chamaram ‘médias de massa’ com sons e imagens em movimento, rádio, cinema, televisão, discos, com expansão paralela à da formação do que se chama ‘classes médias’, caracterizadas pela urbanização em apartamentos de prédios, pela escolaridade liceal e por ofícios em escritórios e equivalentes. Há dois grandes tipos de modo de produção destes médias, os que distribuem geograficamente o que produzem, livros, jornais e revistas, discos, filmes, e os que emitem directamente a sua produção por ondas electromagnéticas recebidas em antenas nas residências familiares. Ora, este tipo de produção de imagens, músicas e discursos, em que é de sublinhar a sua incompatibilidade com os livros, ganhou um alcance holístico que prolonga o da escola obrigatória e concluindo de facto a substituição das igrejas holísticas de antanho. Mas ambos estes tipos de produção, por distribuição geográfica e por emissão de ondas para antenas, jogam o que se chama ‘comunicação social’ de forma unidireccional, de emissores para consumidores, o controle democrático fazendo-se por via da publicidade, cujas finanças procuram os médias de maiores audiências e tende pois a uma mediania, senão a uma ‘mediocridade’ que bate certo com ‘médias’ para classes ‘médias’. Provavelmente como as medianias religiosas de outrora.

O messiânico e a democracia
21. É aqui que a Internet, a ‘rede entre’ computadores, aparece com uma novidade que pode oferecer possibilidades de ‘comunicação social’ sem a estrutura unidireccional de emissores para consumidores, já que a existência de publicidade e o papel dos ‘servidores’ não interfere directamente com o jogo dos utentes em seus computadores e equivalentes: embora este jogo também tenha a ver com os usos gerais dos outros médias e com as suas ideologias, esta ausência de pólos de produção de discursos aproxima-se mais da concepção de democracia à maneira de Claude Lefort, embora se deva ressalvar que os médias, desde a televisão que parece manter um lugar proeminente, estão abertos a correntes de opinião razoavelmente contrárias e contraditórias entre si, com excepção é certo das propostas ‘extremas’ em relação às medianias correntes: privilégio das médias (estatísticas) e dos centros, com alguns ‘pensamentos únicos’ em economia e finanças.
22. Segundo Lefort, que cito de segundas mãos, a democracia define-se pelo lugar vazio do poder politico, vazio de ideologia, entenda-se, do nazismo como do comunismo, de qualquer partido politico que, de ‘parte’ que exclui as outras ‘partes’, se situa como ‘parte única’, vazio de ‘verdades’. Como deveria excluir o pensamento neo-liberal que hoje predomina na União Europeia e tanto mal nos fez: as decisões politicas fazem-se a partir de debates da opinião pública, entre os que (partidariamente) das suas ‘partes’ relevam. O ‘poder’ (-cracia) do ‘povo’ (demos-) em seus conflitos, insiste Lefort. O que chamei messiânico – motivo de filosofia politica de vários autores de confissão judaica que não li[6]– desenha o horizonte da democracia, que, tal como a justiça e a paz, nunca estão realizadas, são sempre a recomeçar. O que não significa um adiamento sistemático. Com efeito, pode-se dizer que a Cristandade medieval, que os movimentos espirituais ‘contestaram’ vitalmente, foi organizada sob a égide do ‘Deus de mortos’ e que a sequência das guerras de religião dos sec XVI e XVII foi, em França nomeadamente, os regimes absolutistas de ‘reis pela graça de Deus’, em que o ‘Deus de mortos’ ficou no lugar de cobertura de César, até que a revolução francesa viesse decapitá-lo, republicanamente. Reis nórdicos e presidentes da república ocuparam o lugar burguês de César, de que Hitler, Mussolini, Salazar e outros se apoderaram como afirmação de César “acima de todos”, de quem os parlamentos democráticos devem limitar os poderes. A globalização financeira e cibernética veio a delimitar o ‘poder politico’ quando o religioso já se tornou minoritário e os médias o substituíram: que os Estados, governos e parlamentos, não tenham senão o poder que o sistema financeiro, em suas concorrências especulativas, lhes deixa (um pouco como os governos nacionais fizeram aos governos municipais), mostra como o Dinheiro finalmente suplantou César (Kaiser, czar) que suplantara o Deus de mortos.
23. Mas não são só as finanças que justificam que o Dinheiro seja hoje o ocupante do lugar do poder, basta pensar no papel que ele tem em todos os orçamentos empresariais e familiares, que faz com que ele seja o mais desejado de todos os bens (sem ser outra coisa do que um meio de troca de bens!) por praticamente toda a gente (como atestam as lotarias), porventura o único ‘laço social’ que nos une a todos. A questão democrática então seria a de saber se é possível, não acabar com o dinheiro, mas, por exemplo, tornar a redistribuição das riquezas igualitária, justa. Tratar-se-á em qualquer caso,, na sua radicalidade messiânica, de ‘esvaziar’ este lugar de poder social, este obstáculo democrático. Foi o que os espirituais sempre buscaram, cuja forma secularizada hoje são os inumeráveis que dedicam as suas vidas, ou são dedicadas porque tem que ser, a alguma das causas sociais impossíveis, às misérias que a globalização tem fabricado por esse mundo fora. A esmagadora maioria anónimos e tantos deles não crentes nas religiões tradicionais, os não corruptos nas tarefas várias, económicas e politicas, mas também nos médias e nas artes, no pensamento e na animação cultural e social.
24. As igrejas cristãs têm conhecido crises fortes em consequência da secularização, a crise católica francesa entre 1965 e 1978 sendo contada pelo sociólogo D. Pelletier[7]. É certo que elas têm um lastro religioso terrível, como se vê com os evangélicos americanos de extrema direita, que devem fazer perder a paciência a tudo o que seja padres ou pastores. Mas pode-se pensar que a secularização as empurra para voltarem a ser movimentos espirituais messiânicos no contexto da actual modernidade, local como global, problemas insolúveis é que não faltam.




[1] Em que publiquei o texto De la fécondité spirituelle, no meu blogue em francês sobre questões do cristianismo.
[2] Meu e.book Da Natureza à Técnica, da Modernidade antiga à moderna.
[3] https://www.cairn.info/revue-les-etudes-philosophiques-2004-1-page-65.htm
[4] Título duma obra ‘pastoral’ do papa reformador Gregório Magno (590-604)
[5] Qu’est-ce que le christianisme? Essai de phénoménologie historique.
[6] Pierre Bouretz, Témoins de futur. Philosophie et messianisme, Gallimard, 2003. Trata de Hermann Cohen, Franz Rosenweig,Walter Benjamin, Gershom Scholem, Martin Buber, Ernst Bloch, Leo Strauss, Hans Jonas, Emmanuel Levinas. Não inclui todavia Derrida (não confessional?), cujos textos de ética e politica, das duas últimas décadas da sua vida, conheço pmal.
[7] Denis Pelletier, La crise catholique : religion, société, politique (1965.1978).Payot, 2002

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