Uma história da função zeta de Riemann
‘No princípio eram os números (primos)’?
Aritmética, álgebra e geometria
A geometria dos físicos
A questão da entropia
Porque é que os cientistas são ‘platónicos’?
1. Sempre gostei muito de números – aos 23 anos
acabei engenharia civil no IST antes da viragem para as humanidades filosóficas
e teológicas – mas ignoro quase tudo da história da matemática. Foi o meu amigo
Artur Mário, com quem há 50 anos abalei em boa hora daqui para a Bélgica (donde
ele não voltou), que, adivinhando o gosto que eu ia ter, me ofereceu o livro
dos gémeos franceses de origem russa Igor e Grichka Bogdanov, Le code secret
de l’Univers (2015, Albin
Michel), que coloca (inadvertidamente) de maneira muito estimulante a questão
da relação entre estas duas grandes disciplinas do saber científico europeu,
dando-lhe uma solução explicitamente platónica: haverá uma entidade matemática,
a função zeta de Riemann (de que eu nunca ouvira falar), que ‘existia antes’ do
big Bang e que é a lei secreta de toda a realidade material de que a Física se
ocupa. Um deles é físico e o outro matemático, mas ambos, se o livro foi
escrito a quatro mãos como se presume, contam bem com ênfase romântico a
história dessa função, os seus heróis a descobri-la em contextos evocados em
detalhe, como nos bons romances históricos que aqui não parecem ficcionados.
Essa função corresponde a uma lógica imanente à aritmética dos números primos,
de que sempre gostei mas sem passarem duma curiosidade. E se o livro me
interessou como quem lê um romance agradável, as dúvidas que o ‘enredo’ me
deixou levaram-me a fazer algo que raramente terei feito na minha vida, de
reler logo de seguida as suas 300 e poucas páginas.
2. Seja um exemplo engraçado. O matemático
medieval que introduziu em 1202 os algarismos vindos dos árabes, Fibonacci
(1170-250), criou uma sequência de números que tem o seu nome, começando em 0,
1, em que todos os outros números subsequentes são obtidos somando os dois
anteriores: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144... Um matemático
alemão do séc. XIX, Adolf Hurwitz (1859-1919), descobre que a divisão entre
dois membros seguidos a partir de 21/13, seja pois 34/21, 55/34, 89/55, e por
aí fora – faça as contas na sua calculadora – dá sempre o mesmo número
1,61qualquer coisa! O chamado ‘número de ouro’ desde a Antiguidade que verificará
depois que é um número irracional (como π ou raiz de 2). Dar-se-á conta em
seguida de como os números primos da sequência de Fibonacci têm um papel escondido
nela. É um exemplo dum fenómeno inesperado mas que se dá como resultante duma
lógica imanente à ordem da matemática, seja a dos números inteiros seja a das
suas operações, adição e divisão no caso. Ora, por outro lado, Hurwitz descobre
que o número de pétalas de várias flores são sempre 1, ou 2, ou 3, ou 5, ou 8,
números da sequência de Fibonacci, e nunca 4 ou 10 ou 15 ou 23 (que não são
dela), assim como as curvas das espirais da couve-flor ou das conchas e das formas
das pinhas dependem do número de ouro: correlação assim destas imanências da
matemática com fenómenos naturais, dir-se-ia de geometria biológica.
Uma história da função zeta de Riemann
3. Contar esta história, constitui-la, é o enredo do
livro: inicialmente uma sequência matemática (Euler, Gauss, Riemann) que com
Maxwell e sobretudo Boltzmann ganha também uma sequência física e se dirige
para um ‘happy end’ bogdanoviano que alterará a vida dos leitores (sic!) que
compreenderem que nesta função – é certo que nunca demonstrada até hoje –, nas
sua dupla incidência matemática e física, consiste o “código secreto do universo”
de que os autores são o arauto, algumas citações recentes de sábios de peso
garantindo-lhes que um tal código existe, o que aqui será questionado dum ponto
de vista fenomenológico interrogando o tipo de relações entre matemática e
física que permitiu as grandes descobertas desta última desde Galileu
(1564-642) e as grandes invenções técnicas desde Watt (1736-819).
4. Na história que releva da
matemática, são os números primos que ocupam o lugar principal, o de se saber
qual é a sua distribuição no conjunto dos números inteiros, se é susceptível
duma lei, duma regra de cálculo que permita conhecer de maneira certa as
posições que ocupam entre os inteiros que não são primos, que se definem por
serem decomponíveis em factores primos (84 -> 2 x 2 x 3 x 7; 124 -> 2 x 2
x 31, etc). Entre as descobertas de Euler (1707-83), está a de que a soma dos
inversos dos quadrados da série dos números inteiros, de 1 a infinito, seja π2/6.
1 1 1 1 1 π2
1 + -- + -- + -- + -- + -- + ...... = --------
22 32 42 52 62 6
Ora π é um número ‘geométrico’, a razão entre o perímetro e o diâmetro duma
circunferência, um número calculado a partir de ‘medidas’, enquanto que as
operações aritméticas sobre os números jogam-se num universo imanente,
‘abstracto’, isto é, que reduz as coisas da dita ‘realidade’ que os números
permitem contar e medir. Encontrar π como resultado da soma duma série imanente
é pelo menos inesperado, embora haja formas imanentes de o calcular, à maneira
de Leibniz (1646-716). Outra descoberta, a igualdade entre a soma dos inversos
da série dos números inteiros elevados a uma dada potência s e o produto dos inversos de 1 – 1 / ps em
que p é a série dos números
primos, o que cria uma
relação entre os números inteiros e os números primos. Sendo embora uma fórmula adentro da imanência aritmética, aponta obviamente
para uma ‘lógica’ dos números primos, embora sem permitir conhecê-la. Quase uma
centena de anos mais tarde, Riemann (1826-66), o homem das geometrias não
euclidianas (o que os autores não assinalam), retoma a soma dos inversos da série
dos números inteiros elevados a uma dada potência s de Euler, que a tinha
chamado função zeta, e
modifica-lhe o coeficiente s,
um número inteiro, tornando-o um número complexo, com uma componente real e
outra imaginária (a + bi, em que i2 = - 1). Em consequência, as
soluções não triviais dessa nova função zeta – uma “recta imaginária que corta
verticalmente o eixo horizontal dos números reais no ponto 1 / 2” (p. 132) –
correspondem à série dos números primos (não se explica como no livro). Sua
única contribuição para a teoria dos números, a chamada hipótese de Riemann, até hoje não demonstrada, se alguma vez o for
permitirá provar que a distribuição dos números primos na série dos inteiros
tem uma lógica interna, que é o que permite aos autores falar de um código
universal.
5. A sequência física desta história
vem de Maxwell (1831-79) retomado por Boltzmann (1844-906) em torno da teoria
cinética dos gases, da distribuição das suas moléculas: a equação deles
(velocidades das moléculas no primeiro, energias no segundo) corresponde,
segundo os autores, à função zeta de Riemann relativa à esfera dos números,
aqui aplicada à termodinâmica estatística e no século XX à mecânica quântica.
Com Boltzmann, tem a ver também com o tempo e com a entropia de Clausius (1822-88).
Claramente aqui está-se na física, está-se à descoberta da chamada ‘realidade’,
para os nossos autores gémeos é um ponto culminante, que reaparece num encontro
comovente em 1972 entre um jovem matemático americano, Hugh Montgmomery (1944),
e um físico inglês, Freeman Dyson (1923): na cafetaria duma universidade dos E.
U. descobrem que, com dez anos de intervalo, encontraram algo de equivalente
cada um no seu domínio, a repartição estatística dos zeros da função zeta e as
matrizes aleatórias dos níveis de energia das partículas do núcleo dos átomos.
6. Até aqui, a história é muito
interessante, haja ou não código universal. Mas o último terço do livro
envereda sobretudo pela teoria matemática da informação, pelo que se pode
chamar uma ideologia numerária ou digital, que perdeu muito do interesse que
trouxe o fenomenólogo pela história evocada, diremos porquê. Mas a critica de
vários pontos que faremos, em ordem ao título deste pequeno texto, não pode
escamotear que não fora a crença que se quer contagiante dos dois autores no
tal código e esta história não seria contada assim, ao nível da divulgação,
como mostram as vezes várias em que, a propósito de tal ou de tal ponto, fomos
pedir mais esclarecimentos à wikipédia e encontrámos quase sempre exposições
para iniciados. Ora, o que tão radicalmente resumimos não chega obviamente para
se entender que a convergência das duas disciplinas em torno desta função zeta
é algo de fascinante, susceptível de abrir perspectivas a quem traga balanço.
‘No princípio eram os números (primos)’?
7. A noção de código contra o acaso, foi a
minha primeira reacção à leitura, logo nas páginas iniciais, mas volta várias
vezes: a perspectiva determinista dos Bogdanov, digna dum Laplace (1749-827) ou
dum santo Agostinho (354-430) que é muitas vezes o credo de cientistas que
pensam que as leis que se vão descobrindo no laboratório correspondem ao determinismo
sem mais fora dele. Eis uma citação que me
arrepiou logo na p. 17. “Alguns – nós entre eles – murmuram que antes do nascimento
da matéria, existia talvez uma espécie de ‘código cósmico’. Uma informação
original que já lá estava antes do big Bang, ‘codando’ com uma precisão de dar
vertigens, sem deixar o menor lugar ao acaso, a imensa explosão original e tudo
o que deveria resultar dela”. Cada partícula dessa nuvem explosiva, na sua
trajectória – justamente o que a mecânica quântica renunciou a conhecer, como
diz o (aqui nunca citado) princípio da incerteza de Heisenberg (1901-76) –
seria ‘determinada’ pelo ‘código’: por um dos seus termos, por vários, pela
função inteira? O mínimo que se pode dizer é que vai contra toda a nossa ideia
de explosão! O que será um tal código? Codificará qualquer partícula do
universo, “tudo o que deveria resultar” da explosão inicial, será a versão
numérica do Deus criador de todas as coisas: ‘no princípio eram os números (primos)’,
já não o Verbo, o logos?
8. Para sublinhar a importância que
os números primos têm para eles, os Bodganov citam um matemático londrino, Yan
Fyodorov (1962): “os números primos são os elementos ou ‘tijolos de construção’
da aritmética” (p. 267). “Basta multiplicá-los entre si para gerar todos os números inteiros
possíveis e imagináveis” (p. 36), explicavam eles ao propô-los inicialmente,
“números fora do tempo que existem num mundo independente da nossa realidade
física” (M. du Sautoy, 1965, outro matemático), “números insólitos, já lá [...]
antes do Big Bang”, concepção confessadamente platónica (p. 37). Arrisco-me a
contestar matemáticos de envergadura? A questão é saber se se trata dum
privilégio dos números primos, se estes têm algum sentido ‘antes’ dos números
inteiros, estes só depois do big Bang? Construídos pelos primos (multiplicação
dos factores de decomposição em primos, como exemplo do § 4) que seriam os
‘tijolos’ da aritmética? O problema é que eles só se distinguem na série dos
números inteiros, sem os quais pura e simplesmente não há números primos. Com efeito, estes só são
detectáveis a partir de operações aritméticas de multiplicação e sua inversa, a
divisão, seguindo um a um os números inteiros. Ora a série destes resulta da
adição de 1 a cada um partindo dos primeiros, dos dez dedos das mãos: a
multiplicação não é senão uma abreviatura cómoda de várias adições do mesmo
número inteiro. Ou seja, a série dos números inteiros é prévia à dos primos,
estes não são identificáveis sem operações mais complexas do que a elementar
que gera os inteiros todos, primos incluídos. Dizer isto não retira nada ao
gozo da história de Euler, Riemann e Boltzmann, mas provavelmente deita por
terra a excepcionalidade pré-big Bang dos números primos. Ao fim e ao cabo,
porque é que não seriam todos os números inteiros a existirem ‘fora do tempo’,
antes dele? Por exemplo, os números de 1 a 120 que jogam na sequenciação da
tabela periódica, dizendo o número de protões de todos os átomos do universo.
Aritmética, álgebra e geometria
9. Uma das dificuldades nestas
questões resulta de não se ter em conta a maneira como os números (e os outros
sinais matemáticos) foram inventados, assim como em filosofia não é costume ter
em atenção que ela só foi possível devido à invenção do alfabeto, que os
chineses ignoram na sua sabedoria milenar, irredutível à do Ocidente (ver). Já
havia geometria havia muitos séculos, no Egipto, Babilónia, Índia, China
Grécia, quando os algarismos árabes (indianos) e o zero foram introduzidos na
Idade Média, a minha ignorância não me permite dizer o que é que não era
possível fazer matematicamente sem a posição decimal que o zero permitiu, a
facilidade das operações aritméticas, como é que estas grafias foram decisivas
para o cartesianismo e a física do século XVII. É que, ao contrário do que os
Bogdanov pensam, a matemática é estruturalmente uma escrita, o cálculo mental é
muito limitado, como todos sabemos e os computadores exibem espectacularmente.
10. Para que servem os números?
Essencialmente, para contar e medir coisas da tal ‘realidade’ de que eles, como
as letras das palavras, são uma abstracção. A vantagem disso é poder-se reduzir
as coisas, abstrair delas e fazer
operações fora delas: multiplicar euros por kilos de laranja, o resultado é um
preço a pagar / a receber, mas sem que euros e laranjas interfiram na conta (o
mesmo, mutatis mutandis,
sucede com as regras das línguas com que dizemos as coisas). Mas contar e medir
não são a mesma coisa: para uma precisa-se de aritmética, para a outra também
se precisa de geometria e esta faz intervir umas ‘unidades’ convencionadas
(metros de linhas, graus de ângulos, etc) que permitirão calcular, por exemplo
clãssico, a altura duma pirâmide a partir da sua sombra comparada com a de uma
vara. Então regressa-se às coisas, ganha-se um conhecimento novo sobre elas que
só os números, sem os instrumentos de medição, não conseguem. Esta diferença,
crucial para a convergência da aritmética dos primos com a física, nunca
aparece no texto, pelo contrário: a propósito dum caso excepcional de
matemático indiano que obteve resultados inéditos por ‘inspiração’ duma ‘voz’,
eles falam platonicamente de “laço directo” de números [primos] “com o
pensamento, sem a barreira do cálculo”. Claro que esta ‘barreira’ também não
existia ‘antes do big Bang’, onde também não havia coisas para contar ou medir.
O que ela explica é que a física dos Bogdanov não tenha laboratório, apenas
números, como se os físicos fossem apenas matemáticos que fizessem contas
directamente sobre a ‘realidade’.
A geometria dos físicos
11. Ora, os físicos são geómetras
(desde a época em que as coordenadas cartesianas geometrizaram a álgebra ou
algebrizaram a geometria, em que Galileu argumentou o seu discurso sobre duas
novas ciências geometricamente!) que foram inventando relógios (o balde de água
nesse discurso para medir o tempo da esfera a rolar no plano inclinado) e
outros instrumentos de medidas de dimensões variadas, relativos a forças, energias, acelerações,
intensidades eléctricas e por aí fora, medidas de movimentos de coisas da dita
‘realidade’ mas que tinham que ser tiradas dela e trazidas para um laboratório,
criando condições para não haver os ‘acasos’ ou os factores ‘aleatórios’ que
abundam no universo. Precisam portanto de instrumentos de medida mas também de
matemática, só que não lhes basta a aritmética, precisam de álgebra, de
equações capazes de, a partir das variáveis medidas experimentalmente repetidas
vezes, calcular incógnitas,
descobrir propriedades das coisas. Os números primos, bem interessantes que são
como a história contada me revelou, não intervêm no laboratório, escuso de
acrescentar que nunca ouvi dizer ou li: não fazem parte do laboratório,
enquanto relevando meramente da aritmética. Mas é por isso que é um espanto que
o número π, que releva do laboratório dos geómetras, apareça na fórmula matemática de Euler!
12. Mas o π não chega para o
desiderato dos autores, precisam de física verdadeira, a de Maxwell e
Boltzmann, dos homens da termodinâmica estatística do século XIX que veio a
inspirar a mecânica quântica do século XX. Ora, creio que a estatística
põe-lhes um problema: é que ela consiste não apenas na recusa, mas na real
impossibilidade de ‘medir’ fenómenos da dimensão das moléculas, átomos,
partículas, e portanto de constituir laboratórios susceptíveis de circunscrever
os aleatórios das respectivas trajectórias (a incerteza de Heisenberg): a
estatística, tal como em economia ou sociologia, soma e faz médias dividindo, o
que são operações de tipo aritmético. É por isso se prestam à convergência com
a função zeta de Rienamm, o que me maravilhou, mas deixam de fora dela todo
resto da física! Cúmulo do azar para os dois gémeos deterministas: matemática e
física convergem onde justamente esta aceita a indeterminação, as situações
aleatórias, recusa o determinismo. No que diz respeito à teoria dos gases, a
diferença entre a do século XIX com a do século XVII, dita lei de
Boyle-Mariotte (1627-91; 1620-84), é esclarecedora. Esta lei põe a relação
entre a pressão e o volume duma dada porção de gás, a temperatura constante.
Ora, ela é correntemente chamada “lei dos gases perfeitos”, porque, explicou-me
uma vez o físico Eduardo Arantes e Oliveira (1933), meu amigo e colega do
Técnico, nenhum gás verifica rigorosamente a equação dessa lei, como se no que
lhes diz respeito a matemática geométrico-algébrica não jogasse com tanto
acerto como nas outras áreas. Donde a necessidade dois séculos depois de se vir
à muito mais incerta, inexacta, estatística. Como sabemos sobejamente da
economia, e disso padecemos, os métodos estatísticos não dão para conseguir
ciências exactas. Não dão para determinismos como o da citação do § 7 que me
arrepiou.
A teoria matemática da comunicação e os bits cibernéticos
13. Donde que a maior parte da física relativa ao ‘universo’ ficasse fora
do alcance do código procurado. Sem se darem conta explicitamente da
dificuldade, parece ser ela que os empurrou, no termo da história contada, para
a “teoria da informação”, para a “teoria matemática da comunicação” elaborada
na segunda metade do século XX em torno da linguagem computacional dos ‘bits’,
1 / 0. Aqui vão encontrar teóricos reconhecidos como seus cúmplices no
platonismo, tal como o teórico da cibernética Wiener (1894-1964): “tudo é
informação”. Os Bogdanov explicitam: “uma maçã, uma locomotiva a vapor, um cão,
um corpo humano ou uma montanha, tudo isso não é senão informação [...] que
define uma coisa de A a Z e que se pode medir muito precisamente com a ajuda
dos bits”. De A a Z quer dizer que com todas as letras que comporta a definição
– duma essência como fez a filosofia grega mas que não bastou a Galileu nem a
Newton? – ou de tal maçã reineta, do corpo esbelto duma estrela de cinema ou do
dum velhote trôpego? Como é que se definem estas coisas singulares de A a Z,
com todas as letras, para depois transformar estas em bits? Os platónicos
passaram por cima sem dar por ela (Platão deu-se a um trabalho prolongado de
discussão de etimologias no Crátilo para poder dispensar as letras!): dizem-se as coisas pelos nomes, o que
implica a redução da
singularidade empírica dessas coisas, a qual necessitaria de muitas e muitas
mais frases do que uma definição de essência para serem descritas e então passadas a bits, tal como essas frases podem
passar ao telefone entre lugares distantes, mas não a maçã nem o corpo de
alguém (embora sim a imagem). Com os bits não se vê que seja diferente: um
‘romance’ contando a maçã pode ir de computador em computador em inglês, para
facilitar a universalidade da Web (que está muito limitada pela Babel das
línguas), mas a maçã fica. Digamos aos platónicos que sonham com mandar coisas
pela corrente eléctrica, que retomar-se-á a questão quando isso for conseguido.
14. Faltava ligar os bits ao mundo
estudado pela física, o que foi feito a partir do princípio de Landauer
(1927-99), segundo o qual o apagamento dum bit de informação aumenta a entropia
do aparelho de tratamento da informação ou do seu ambiente e liberta energia
sob a forma degradada de calor. O que permitirá a Wheler (1911-2008) dizer:
“tudo o que existe – cada partícula, cada campo de forças, até ao próprio
espaço-tempo – recebe a sua função, o seu sentido, mesmo a sua existência
(ainda que indirectamente em certos contextos), das respostas trazidas por aparelhos
aos jogos de questões ‘sim ou não’, representando escolhas binárias, bits. It
from bit [seu slogan, a coisa vem
do bit] simboliza a ideia de que cada elemento do mundo físico tem no fundo –
lá bem no fundo – nas grandes profundidades quase sempre, uma fonte imaterial,
assim como uma explicação. O que chamamos realidade resulta, em última análise,
de respostas dadas às questões ‘sim ou não’. Em resumo, todas as coisas físicas
têm origem na informação” (p. 238). Quais laboratórios, qual carapuça! Os
computadores encarregam-se de todo o ‘labor’, mas este é ‘esquecido’ quando se
vai bem ao fundo, ao ‘imaterial’. Em tempos, o director do Laboratório de
Engenharia Civil na altura, Eduardo Arantes e Oliveira, dizia-me, se não o atraiçoo,
que os modelos reduzidos das experiências laboratoriais de obras de grande
dimensão se fazem actualmente com simulação computacional, mas ressalvava as
barragens hidro-eléctricas que continuavam a necessitar de modelos reduzidos, a
hidráulica como os gases também releva do domínio da estatística. Mas isso não
é uma objecção à argumentação que aduzi, não abona em favor do platonismo das
citações e do ‘imaterial’. O que estas citações revelam é a projecção que estes físicos da computação fazem do modelo
cibernético sobre as coisas da ‘realidade’, a tal que fica sempre fora do
laboratório, como as maçãs fora do computador.
15. O que é que se escamoteia assim
sem dar por isso? Nada mais, nada menos do que o software, a programação que trabalha na computação, labora nos cálculos sobre os números
(para não falar nas palavras que descrevem a maçã). Como se sabe, o 1 / 0 dos
bits corresponde às duas possibilidades interessantes da electricidade para o
hardware: passar a corrente / interromper a passagem (como também as sinapses
dos neurónios). Apagar informação e libertar energia será verdade a esse nível
‘profundo’, mas ainda ‘material’ (equivalentes para a linguagem serão as vozes
feitas numa garganta-boca ao falar): mas como é que os bits chegam às coisas,
as quais são ainda mais materiais? Através da tal “barreira do cálculo” que o
platonismo desconsidera (§ 10): ‘sim ou não’ são momentos, muitos e variados,
dum programa de cálculos de software bem mais complexo, equivalente aos
triliões de sinapses da rede cerebral ou às centenas de regras linguísticas de
uma fala humana. Ou seja, nomes e números – que são transformados em bits – reduzem eles próprios as ‘coisas’ singulares que nomeiam,
contam ou medem; além disso, contar e medir reduz também os nomes e as ‘essências’ definidas das
coisas, como se disse, e é o segredo do triunfo das ciências. Que pagam um
preço por ele: nunca são capazes de conhecer cientificamente nada de singular, maçã ou corpo de alguém, nada
daquilo de que falam os romances e que os retratos mostram, em ambos os casos
segundo a perspectiva adoptada pelo artista. Se for certo que é neste
‘esquecimento’ do labor do software que consistirá o engano desta ideologia
digital, a questão a por então é a de saber se esse labor apenas faz crescer a
entropia no sentido de Clausius ou se, antes desse crescimento, também produz
“entropia positiva” no sentido de Prigogine (1917-2003).
A questão da entropia
16. A tradição filosófica ‘esqueceu’
a linguagem no pensamento (por exemplo, a noção de ‘ideia’), é por isso que o
platonismo habitual dos cientistas ‘esquece’ a intervenção do laboratório nos
seus resultados e os informáticos citados acima ‘esquecem’ o software; ora bem,
também a teoria da entropia vinda de Clausius, segundo os autores implicando
uma entropia nula do universo no seu começo (Boltzmann) e a sua morte térmica
(Maxwell), parece ignorar o processo da vida na Terra e a sua evolução para uma
maior complexidade, atendendo apenas talvez à morte como solução final de
qualquer vivo. ‘Parece’, já que eu não sei como é que ela é hoje proposta
habitualmente, fora da descoberta por Prigogine das “estruturas dissipativas”
da bioquímica celular como produção de entropia, coisa de que obviamente os irmãos Bogdanov nunca
ouviram falar. Este belga, também ele de origem russa, apesar do Nobel que essa
descoberta lhe valeu em 1977, ao que eu sei, não teve uma recepção muito eloquente
pela classe física; ora, eu creio que essa descoberta está bastante perto duma
‘chave’ para a compreensão do Universo que vai além do nível físico químico.
17. A entropia de Clausius e Boltzmann aumenta em
sistemas fechados segundo o 2º princípio da Termodinâmica: energia de trabalho
que se perde sob forma de calor. Por exemplo, a entropia vai sempre aumentando
no percurso dum bloco de gelo que se liquefaz, depois a água ferve numa
chaleira e solta-se em vapor, o seu calor significando a forma degradada de
energia, que não dá para trabalhar. Em termos de sistema fechado, a explosão do
vapor é a forma máxima de entropia de tipo Clausius, energia perdida. O que foi
genial na invenção de Watt foi reter num cilindro estanque essa energia perdida
e recuperá-la como energia de trabalho para um eixo de biela manivela. Assim
contrariou o 2º princípio, esse contrariar sendo o segredo de toda a produção energética
que é a base da modernidade.
18. Ora, que a explosão do vapor seja a forma
máxima de entropia de tipo Clausius torna difícil de entender a noção corrente
do grande Bang, da grande explosão de partículas com o calor de temperaturas
‘divinas’, como o início da matéria e da energia do Universo: em vez da
“entropia nula” de Boltzmann, seria a entropia máxima, sem relação a outras
fontes que tragam ‘qualidade’ energética baixando a entropia; não parece haver
condições para nenhuma evolução que venha a culminar na formação de estrelas,
para começar na formação dos átomos e moléculas de hidrogénio e hélio de que
elas são compostas. A partir das estrelas e das suas combustões a temperaturas
elevadas que estão na origem de outros átomos com núcleos maiores – mas como é
que ‘aparecem’ as forças nucleares dos átomos, é um mistério para a minha
ignorância – a noção de evolução começa a ser possível de ser pensada, incluindo a da vida no planeta
Terra. Ora, foi na bioquímica das células que Prigogine detectou o processo de
produção de entropia positiva,
em contraste com a de Clausius, mas só possível com fontes energéticas
exteriores ao sistema, porque gerando uma estabilidade (“estrutura”) improvável
a um nível de instabilidade (“dissipativa”) bioquímica supra-molecular, dizendo
respeito ao conjunto de transformações do metabolismo celular inter-agindo
entre elas igualmente. Esta estabilidade instável implica uma energia com
entropia positiva, ao passo que a morte da célula, transformações químicas que
se tornam desconexas, releva do crescimento entrópico de Clausius. Isto é, a
vida é frágil devido a esta
instabilidade necessitando de alimentação frequente – é anti-entrópica em
termos de Clausius – e mortal
quando essa instabilidade deixar de ser possível – a entropia de Clausius
vencendo enfim.
19. Mostrei como esta produção
entrópica prigoginiana (o autor fez uma ‘filosofia’ de que me distancio) pode
ser desenvolvida com dois motivos fenomenológicos, um heiedeggeriano de doação
retirada, apagada (mecanismos de autonomia com heteronomia apagada) e outro
derridiano de duplo laço (motor cego que dá movimento e regulação adequada à
cena de circulação que faz a doação). Pode-se assim descrever os aspectos
principais, elementares, das ciências biológicas, sociais, linguísticas,
psicanalítica e físico-químicas e deduzir que se não há nenhum código secreto
do universo antes dele, há um ‘segredo’ dele que Prigogine ajudou a desvendar.
Mas o acaso jogou constantemente nos processos evolutivos e o aleatório é
essencial às cenas de circulação (por isso as ciências precisam de laboratório,
de experimentarem determinações em situações não aleatórias). (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2008/02/manifesto.html)
Porque é que os cientistas são ‘platónicos’?
20. Porque é que se ‘esquecem’ de contar com o
laboratório e passam logo para a teoria e nesta também se ‘esquecem’ dos
números e até das equações, para tratarem prioritariamente de conceitos e do
conhecimento da dita realidade, ‘universal’ como se julga, como fazem os
filósofos? São induzidos a fazê-lo pela própria tradição filosófica de que são
herdeiros que se ignoram, não levam a sério que Newton (1643-727) se considerasse
filósofo sabendo que estava a fazer ciência com matemática: Princípios matemáticos
de Filosofia natural, é o nome do
seu texto fundador da Mecânica. Na porta da Academia havia a célebre inscrição:
“quem não é geómetra não entre!”. Ela serve de título a um texto dos filósofos
brasileiros Gabriele Cornelli e de Maria Cecília de Miranda N. Coelho na Web
que explica como Platão na República coloca a geometria e seus desenhos de figuras na passagem entre o sensível
e o inteligível e como Aristóteles critica no platonismo a sua “metafisicização
da matemática”: segundo ele, “o objecto de matemática (figura e número) está
dentro da realidade, não fora dela (Metafísica 992a33-b1)”. O que chamei ‘platonismo’ dos
cientistas corresponde de forma mais geral ao que o filósofo Jacques Derrida
(1930-2004) chamou logocentrismo da filosofia greco-ocidental – a saber o privilégio do pensamento e da voz
sobre a escrita (que atinge também portanto o aristotelismo) –, o qual foi,
digamos aproximativamente, instituído (a ‘filosofia’: textos do saber por
definições de essências e argumentação sobre elas) na sua grande força
histórica que veio até nós pela doutrina das Formas ideais de Platão (428 a.C –
348), conhecida habitualmente como platonismo. Tendo entrado na Academia, o
jovem Aristóteles (384 a.C – 322) foi o seu primeiro grande critico, atestam-no certos índices do Parménides de Platão, essa critica
tendo sido prosseguida pelos textos seguintes do próprio Platão (por exemplo, o
“parricídio” de Parménides no Sofista faz parte desse percurso) até ao Timeu e pode dizer-se que foi onde foi desembocar a Physica de Aristóteles, a que Heidegger (1889-976) chamou
“o livro de fundo da filosofia ocidental”, devido à maneira como Tomás de
Aquino (1225-74) o introduziu no pensamento medieval.
21. Os textos de Platão foram traduzidos para
latim na segunda metade do século XV, à boleia dos livros impressos, das naus
atlânticas e do humanismo renascentista que estava a abrir a modernidade
europeia, abrindo a possibilidade de o platonismo de Descartes (1596-650)
(penso = existo como coisa cogitante) se tornar por sua vez crítico do aristotelismo e fecundar cientistas e
filósofos europeus, formados na escola com as problemáticas e conceitos de
Aristóteles: houve assim uma parceria entre o mestre de outrora e o seu
discípulo crítico na génese do pensamento da Europa moderna. Neste texto, a
argumentação visou o privilégio platónico do “imaterial” (pensamento, ideias,
mental) em matemática, ignorando que esta é estruturalmente escrita, o que
torna a diferença material / imaterial improcedente nela, sem pertinência: é anti-platonicamente
que Newton explica a sua Física pela conjugação da Mecânica (ciência das
forças) com a Geometria, sublinhando que esta só se pode fazer depois de se
desenharem figuras (description, na tradução de Mme Châtelet (1706-49), ed. fac-simile de A. Blanchard,
1966), o que implica, escreveu Newton, que a “Geometria pertença em parte à
Mecânica”. Genial!
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