Adenda a OS DUPLOS LAÇOS
PORQUÊ E COMO HÁ MOVIMENTO
(em
Biologia, Sociedade, Linguagem)
http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2016/01/os-duplos-lacos-porque-e-como-ha.html
Uma tentativa
Do excesso da linguagem além da Linguística
Sexualidade e linguagem: excesso e alteridade
As cidades como excesso da agricultura e equilíbrio de razão
Breve fenomenologia da moeda
Organigrama duma sociedade contemporânea
Definição e laboratório: quando o motor se torna obstáculo
As três vagas da industrialização
O horizonte ecológico da Terra: : enlaçar o mundo da Técnica e o dos
Vivos
A questão do crescimento económico
Cabe à razão controlar a lei da guerra e suas crises
Uma medida ecológica: continuar a baixar as horas semanais de trabalho
Nem só de pão vivem os humanos; make love, not war; sejam realistas,
façam o impossível
Uma tentativa
1. Fazer a repartição das quatro
grandes cenas sobre as fronteiras disciplinares das ciências tem um risco, o de
fornecer uma base fundamentando as grandes separações metafísicas, entre
natureza e cultura, indivíduo e sociedade, corpo e alma, matéria e vida. É
claro que o risco é inevitável, essas grandes separações vieram-nos do pensamento
das duas modernidades que o cristianismo articulou, a greco-romana e a
europeia, como recusar a paternidade de Platão e de Descartes, de Aristóteles e
de Kant, sem os quais os laboratórios científicos não teriam sido possíveis?
Para corrigir esse risco real há que tentar compreender alguns aspectos de
articulações entre cenas, onde cada uma vem de outra precedente, a máquina e a
electricidade resultando da cena da gravitação enquanto precedida pela da habitação e inscrição, assim como a
poluição e o aquecimento climático colocam a mesma cena da gravitação, que inclui
nela as outras três, como consequência delas, capazes de provocarem um
cataclismo na Terra que nos deu a vida, como outrora um meteorito o terá feito,
provocando a extinção dos dinossauros. Agora, seria não apenas a dos humanos e
a dos mamíferos, mas porventura a extinção de todas as espécies vertebradas,
uma nova etapa de evolução que não terá já quem a conte.
2. Ecologia é o nome da atitude, entre ciência e actividade
politica, que enfrenta este problema imenso visando proteger o ‘ambiente’,
salvar a Terra. Enquanto ciência, ela apareceu como o subdomínio da biologia
que estuda os eco-sistemas, as interacções entre os organismos e com os seus
‘ambientes’ (palavra esta aliás de carácter biologicamente neutro); a descrição
fenomenológica foi levada a inverter a relação entre essas duas abordagens (a
dos organismos e a dos ‘ambientes’), inversão derivada da que Heidegger operou
em relação a Husserl[1]:
chamei cena ecológica à cena
geral dos vivos enquanto tais, que os dá e deixa ser[2], tendo em conta que os humanos fazem parte dela
também, o que por sua vez é reduzido por regra nas chamadas ciências sociais e
humanas, no que aliás mais não fazem do que prolongar a filosofia enquanto
ontoteologia. Nesta descrição fenomenológica de filosofia com ciências, a biologia ocupa por assim dizer uma
posição matriz, substituindo a da física no paradigma da filosofia das ciências, o que sugere a pluridisciplinaridade
inerente à actividade da ecologia, tanto científica como activista politica,
sugere que ela será uma possibilidade de leitura englobante das várias cenas
entre elas como uma única cena terrestre, a da biosfera, desdobrada em
numerosas diversalidades.
3. As análises em termos de duplos
laços atendeu às respectivas
ciências e grandes cenas correspondentes e das suas regras de circulação, que
as cenas precedentes ignoram (as regras destas cenas, por sua vez, apesar de se
manterem vigentes, são reduzidas pelas novas ciências): por exemplo, ao cair
duma árvore, um gato cai segundo a lei da gravidade a qual todavia não explica
que, por regra, ele caia sobre as suas quatro patas. Tratava-se duma
perspectiva autónoma de cada cena. Procurar-se-á agora dar atenção às articulações
entre as várias cenas como o que permite compreender quer os excessos que
pulsionaram a história ocidental como as poluições e crises que nos provocam
hoje dor e apreensão face ao futuro. Lendo os duplos laços como différances (simultaneamente repetição e excesso)[3]
em que economia (repetição do mesmo, heteronomia apagada: espécie, sociedade, língua) é indissociável do excesso
singular de cada mecanismo autónomo,
foi daquela que sobretudo se tratou então, a este agora se devendo atender preferentemente.
Ser-se-á capaz de encontrar uma maneira interessante, fecunda, de abordar a
questão? Tentativa, ensaio, implica a possibilidade dalgum êxito mas também de
falhar.
Do excesso da linguagem além da Linguística
4. O fenómeno oral da linguagem, a
fala de alguém para outro e a resposta deste, consiste numa emissão sequencial
de sons – o que implica: as frequências das vibrações do ar (Acústica) e as
fisiologias da respiração, fonação e audição (Biologia) – com regras
sintácticas (grafos da aprendizagem e memória), sons e regras que fazem
colheita de usos tribais (Antropologia). A Linguística estrutural de origem
saussuriana reduziu a parte na
linguagem destas várias disciplinas científicas, relevando cada uma das outras
grandes cenas históricas, para se poder instituir na cena da inscrição enquanto
ciência das línguas como sistemas das diferenças significativas dessas falas[4].
Formulou-se assim, como se disse, a dupla articulação da linguagem entre fala (voz e discurso), relevando duma lei da
singularidade de cada falante,
da respectiva aprendizagem e habilidade, e língua, relevando duma lei de verdade tribal, reproduzindo-se além da morte de cada geração. A
lei da língua e da cultura (mitos, usos e costumes) impõe-se a cada um que
aprende, em certo sentido durante toda a vida, impõe-se como disciplina à
singularidade da sua voz, das suas ‘vontades’, da sua habilidade espontânea em
falar, impõe-se pela crítica dos erros singulares cometidos e das mentiras, dos
seus excessos em suma. A mais clara exibição dessa redução linguística das
singularidades é a consideração saussuriana de que os sons, variando empiricamente
com as vozes, não fazem parte da língua, eles que no entanto são a sua primeira
manifestação fenomenológica, de que qualquer análise linguística não pode
prescindir, como é próprio dos laboratórios científicos. Mas também a
categórica recusa do nomenclaturismo, de ter em conta o ‘referente’ das
palavras e frases, exibe a mesma redução que exprime o aforismo célebre “na
língua não há senão diferenças, sem termos positivos”: as diferenças entre sons
não são sonoras nem ideias de coisas, são (substancialmente) ‘nada’. Contra a
concepção reinante, a língua é o ‘nada’ feito de diferenças que cria tanto os
sons como os sentidos, como deveria ser óbvio em cada um, bebé ou estrangeiro,
que aprende a falar.
5. Avaliar esta redução laboratorial
implica realçar na cena das conversas fora do laboratório a singularidade
excessiva como fala disciplinada
pela língua (em vista dos usos e costumes dos paradigmas tribais), o carácter
simultaneamente cúmplice (entendem-se
na mesma língua) e conflitual
dos que conversam (ninguém gosta de ser contrariado no que diz), dupla lei de
aliança e de rivalidade ao mesmo tempo. Ou, na cena da inscrição, a literatura,
a poesia como aporia, acontecimento impossível entre a voz (a musicalidade) e o
discurso (o pensamento), a esta impossibilidade se chama muitas vezes
‘inspiração’, relevando do acontecimento, do que não se controla. Ou o direito
democrático à liberdade de expressão pública, à controvérsia, à crítica na cena
politica da habitação (a ‘opinião pública’ é outra coisa do que a cultura
escolar e mediática). Ou ainda, no registo psicanalítico, a análise do discurso
inconsciente como relevando do duplo laço entre fala e tribo parental,
mostrando como a sexualidade está sujeita à lei, se podem sofrer perturbações
somáticas da fala, uma ‘de-pressão’, por exemplo de stress. E ainda o excesso que é a inscrição tipográfica
dum texto que lhe permite deslocar-se ao longe e sobreviver – quão
excessivamente! – à morte do seu autor. Excessos singulares nas cenas diversas
que as rotinas laboratoriais (que vão ao ponto de reduzir o sentido das frases,
lhes bastando que ele exista) ignoram por definição científica, laboratorial,
mas que – fora dele – geram constantemente acontecimentos. Na cena, a
linguagem joga sempre entre rotinas e acontecimentos, entre a repetição das
receitas e dos mitos e o conflito ou a festa dita literatura.
6. Por definição, disse, de que o
laboratório foi historicamente descendente, introduzindo o movimento onde antes
se consideravam as intemporais essências, perenes: foi a riqueza mesma da
literatura, que de acontecimentos se tece, de excessos, foi a polissemia dos
sentidos das palavras correntes, metáforas e retóricas, que a definição veio cercear,
reduzir, garantindo nos textos gnosiológicos um só sentido a cada termo
definido em sua essência como
condição da argumentação válida para muitos. Sem esta economia da razão e das
ciências não se teria feito a Europa, a modernidade que se globalizou. Mas
também não haveria as poluições e as crises, esses excessos sempre singulares,
acontecimentos que as rotinas laboratoriais não podem nunca prever, que sempre
surpreendem, para o bem como para o mal, par este que é indissociável: também
assim economia e excesso indissociáveis são. Deste exemplo no que à linguagem
se refere, tiraremos lição para outros domínios menos fáceis[5].
Sexualidade e linguagem: excesso e alteridade
7. Os biólogos chamaram ‘letras’ aos
quatro elementos variáveis dos genes, com correspondência a amino-ácidos das
proteínas que eles ‘ensinam’ a sintetizar, tal como as palavras correspondem
aos usos e coisas do mundo tribal que elas exprimem. Ora, esses genes são desde
muito precocemente na evolução resultado do emparelhamento de duas sequências
genéticas distintas, uma de fêmea e outra de macho, e foi daí que a evolução
teve um impulso de variabilidade muito forte. Há assim um paralelo extremamente
sugestivo entre o par gene / proteína e o par receita / uso que se pode estimar
serem o primeiro a base dos vivos na cena da alimentação e o outro a base das unidades
sociais da cena humana da habitação na sua maneira de ganhar uma autonomia
relativa à cena anterior. Sem fazer batota, quereria deslocar[6]
o primeiro par gene / proteína para a sexualidade – que o gene pressupõe como aquilo que o faz variar
– e sublinhar o paralelo desta com o par receita / usos: deslocamento da
economia do mesmo para o que a excede no motivo da différance. A constatação de partida é a de que, tanto na
anatomia animal (de mamíferos, exemplo acessível) como na sociabilidade humana,
algo excede claramente as respectivas racionalidades, a que rege a
auto-reprodução alimentar dum organismo e a auto-reprodução do paradigma de
cada unidade social: respectivamente, a sexualidade e a linguagem. São excessos
sobre o ‘auto’ dos duplos laços respectivos, que se justificam por os
orientarem para a outra fêmea, e esta para o macho, assim como as falas para os
outros. Tentemos um breve paralelo entrte estes excessos que, em cada uma das
cenas, desloca cada animal e cada humano/a para outra/o do que ele/a, o/a
desloca da sua autoreprodução.
8. O que se pode chamar alimentacionalidade é esta propriedade sistémica dos animais fazerem
a sua própria substância, desde a sua primeira célula, à custa da substância
dos outros. O mesmo faz-se de outros. Sabendo-se que, quer a caça de presas, quer a fuga de predadores,
implica um aleatório fundamental dos comportamentos animais, há uma espantosa
economia de meios, anatómicos e fisiológicos, de se realizar esta
auto-reprodução à custa de outrem: a economia do mesmo[7].
É em relação a esta que a sexualidade se define como desperdício, excesso,
anti-economia, em que ela é parente da arte, do sacrifício, do potlach, da
festa. A reprodução por cissiparidade ou por brotação da hidra de água doce ou
dum verme não saem fora da lógica económica da alimentacionalidade: tal como
uma célula que se torna grande de mais se divide em duas, assim fazem esses
bicharocos, mantendo muito estritamente a mesmidade do ADN da espécie (creio).
Ora, a reprodução sexual faz-se numa anti-economia flagrante, ela implica que
estes indivíduos se ‘acasalem’ por acaso, macho com fêmea, para além dos seus
estritos interesses alimentacionais; é preciso pois criar neles interesses de
atracção e de sedução suficientemente fortes para garantirem o acaso desse
acasalamento: quantidades enormes de gâmetas (ou de sementes que não terão
condições de medrar), são produzidas para que um qualquer zero-vírgula, vários
zeros e um no final por cento delas resulte. Ou em nós, humanos, desaparecido
o cio das fêmeas algures na maior extensão do neo-cortex dos primatas, não só
muitos óvulos e um número astronómico de espermatozoides são produzidos
incessantemente em vão, em puro desperdício, como uma parte forte de energia de
hormonas esteroides é desencadeada para atrair homens e mulheres em
‘prejuízo’ manifesto das funções sociais quotidianas: é donde vem a
necessidade social do interdito do incesto, articulando as duas cenas, a da
alimentação com a da habitação humana.
9. Se o par receita / uso pode ser
considerado a base do paradigma da habitação, dada a sua importância na sua
aprendizagem e efectivação, também é óbvio que a linguagem se desprende
facilmente dessa função utilitária para poder contar mitos e narrativas e poder
pensar, para o excesso festivo da literatura poética e o acompanhamento de músicas,
jogando nas relações pessoais, afectos e rivalidades, e por aí fora. Parece
muito difícil esperar que a neurologia possa um dia secundar, com a sua
metodologia laboratorial, a teoria freudiana da sublimação das pulsões
libidinais, que se deslocam dos recalcamentos a que as submete a passagem da
criança de ‘ser no seio da mãe’ para ‘ser no mundo’ da sua unidade familiar,
recalcamentos esses que vêm pulsionar os desejos que jogam no ‘querer ser grande’
como os adultos. A teoria da sublimação implica a des-sexualização das pulsões
em prol das variadas tarefas de crescimento cultural em sentido lato antropológico
– funções sociais, culturais, sagradas, artísticas –; como se além do seu papel
propriamente dito em relação à variação dos genes pelo cruzamento de gâmetas
feminino e masculino, o excesso da sexualidade se deslocasse para outras
funções eventualmente não previstas, como é maneira frequente na evolução, que
faz bricolagem com elementos que tiveram êxito num lado e os enxerta noutro. O
que significa que serão os dois excessos, o do sexo e o da fala, que porventura
se conjugam neste enigma espantoso que é a estruturação da idiossincrasia de
cada humano: o interdito do incesto, lei do recalcamento, seria o ‘motor’ que
dinamiza as vontades para a aprendizagem adentro do paradigma e para além dele[8].
10. Por outro lado, a estes excessos
corresponde a orientação para os outros que arranca cada um/a à sua economia de
estrita auto-reprodução, à alimentação e ao narcisismo, para que esse
crescimento seja o contrário dum autismo, seja cooperação tal que as palavras
que se usam para pensar no nosso mais íntimo sejam todavia palavras de todos e
justificando assim as cautelas com os segredos que não se queiram revelar, as
distâncias a manter em relação aos nossos próximos de quem somos os filhos, os
aprendizes, os irmãos mais novos. De quem, com efeito, estamos interditados de
casamento e de relação sexual, para que os afectos e rivalidades nos unam pela
linguagem e os outros usos quotidianos, entre os quais avultam as refeições
periódicas em que o trabalho de lavrar e de cozinhar se sublima – sobretudo em
festas com seus banquetes – com a conversa e os risos, numa actividade que
reproduz a dimensão biológica de cada um, articulando pois as três cenas em
formas de outros prazeres (e ciúmes) do que os da estrita sexualidade – comer e
beber, rir e dançar, pensar e fazer poesia – mas que Freud nos ensinou que,
des-sexualizada, ela comanda em surdina.
11. A oposição entre trabalho,
segundo a disciplina exigida pela economia da alimentacionalidade, e
sexualidade como pulsão de prazer excessiva para outros, que perturba essa
economia e a sua aprendizagem, não é uma oposição exclusiva, já que se insere nos
ritmos de oscilação a que nos obrigam quer o dia e a noite, quer as épocas do
ano, oscilações entre trabalho e repouso e férias, entre trabalho e festas. É
nesta última oscilação que joga a sexualidade, já que, como a festa, ela gasta
energias e não dá repouso. A sublimação freudiana seria justamente a maneira como se tece o jogo entre as pulsões
hormonais a disciplinar e os grafos neuronais da aprendizagem de usos e da
língua, estes contendo aquelas e adiando-as (no período de latência), mas de
que – nessa contenção que adia (à maneira de Derrida) – uma parte dessa
energia sexual a mais, excessiva, será des-sexualizada para as tais funções sublimadas, sociais, culturais,
sagradas, artísticas. Seria o jogo das oscilações (de que os sonhos são índice)
que permitiria acasalar os dois factores de excesso e alteridade, a
sexualidade e a linguagem, inclusive colocando-os ao serviço das alterações e
melhoramentos da economia de alimentacionalidade. O desperdício anti-económico
será, ‘à la longue’, recuperado pela economia. De maneira talvez equivalente
àquela pela qual alguns casais de grandes amantes são capazes de tornear com
a linguagem a precariedade do excesso da paixão deles e dar-lhes uma continuidade
no longo tempo que, sendo porventura rara, ainda mais admirável se torna. Mas
isto é tema para o qual me falta, mais do que noutros, a competência literária.
12. Há hoje um tipo de resistências à
psicanálise diferente das que ela encontrou inicialmente. Seja a maneira como a
invenção da sexualidade nos primeiros tempos da evolução foi também a do
nascimento e da morte, da p/maternidade e da filiação, da possibilidade da
aprendizagem[9]: não nos
admiremos de que estes temas estejam no coração do discurso psicanalista. A
este primeiro argumento de conveniência, quereria acrescentar alguns outros.
Os sonhos serão restos de desejos, de excessos que não tiveram cabimento, que
voltam assim na oscilação do repouso que o sono paradoxal (Jouvet) proporciona.
O que Freud encontrou neles de bizarro, para além da estranheza própria que
sempre lhes foi reconhecida, foi que o seu deslindar encontrasse a certo momento
resistências no próprio sujeito, ou seja, que este se revelasse – enquanto
dormia, quando, por assim dizer, ‘não era ele’ – como uma complexidade de pelo
menos três instâncias: a) a do sonhador que diz ‘eu sonhei isto e aquilo’ e
continua no divã a fazer associações em torno desse sonho, b) uma outra que
nega e censura algumas dessas associações como se não fossem ‘minhas’, ou não
devessem sê-lo, c) a terceira, a desse conteúdo sonhado que horroriza o sonhador,
de querer fazer amor com a própria mãe, ou matar o pai ou o irmão, etc. Isto é,
a sexualidade quando aparece nos sonhos, aparece sempre-já marcada pela lei,
interditada. Além disso, a perturbação é ainda maior de tais desejos proibidos
e portanto repugnantes virem no aprofundamento do oculto de desejos muitas
vezes bons e convenientes, sublimados, por vezes excessivos, obcecados, como
certas paixões de artistas, inventores ou pensadores. Por isso que o material
se lhe foi impondo, Freud veio a falar respectivamente de ‘ego’ (a), ‘superego’
(b) e ‘id’ (c) para as tais instâncias que dividem e compõem simultaneamente o
psiquismo, veio a falar, a propósito de sexo, de interdito e de sublimação.
13. Dir-se-á que se tratava de
intelectuais burgueses da época victoriana. É certo. Mas que grande espanto não
é a leitura do volume de O processo civilizacional de N. Elias que conta como esse ‘super-ego’
burguês se foi forjando na história ocidental, em correlação com a formação, a
partir do feudalismo, do Estado moderno e do seu monopólio da violência, se
foi forjando na aristocracia da corte dos reis absolutistas, aonde conviviam
largo tempo fidalgos e fidalgas de casas diversas, não abrangidos pois pelo interdito
do incesto como em suas casas, e devendo a pouco e pouco criar as regras de civilidade
sem as quais a civilização não teria sido possível. Sem as quais, por exemplo importante,
não seria possível que homens e mulheres hoje partilhassem empregos em que
convivem várias horas seguidas por razões de economia, tendo que conter mais ou
menos espontaneamente as pulsões sexuais que a evolução inventou há milhões de
anos, perto do alvor da invenção dos organismos.
14. Se se tem em conta que um
paradigma de usos duma unidade social resulta como estabilização, oscilante
segundo os humores, de vários mamíferos sexuados com estatura vertical, duas
mãos e fala que têm que se alimentar quotidianamente, percebe-se que essa
estabilidade implique uma lei que interdite os excessos que a impediriam, uma
disciplina que é condição da reprodução do conjunto e portanto de cada um.
Comer, falar, amar, trabalhar, repousar, é sempre coisa de ‘mais do que um’
adentro da unidade social, mas defende-se também esta, como ‘privada’, das
outras suas vizinhas com quem justamente se trocam as filhas que vão nascendo
em casamentos de aliança do conjunto social. E então estabelece-se um limite,
que é simultaneamente o da troca de mulheres, de falas, de cooperação económica
ou defensiva eventual, de festas. De maneira semelhante (assaz misteriosa,
quero crer, a esta data) à de como as espécies de artrópodos (invertebrados) e
de aves e mamíferos se estabilizaram numa endogamia que limita estritamente a
reprodução sexuada aos seus indivíduos, os que ficam de fora sendo nomeadamente
perseguidos como presas desejadas das espécies carnívoras, também as sociedades
humanas desde os seus inícios que criaram uma fronteira endogâmica e de língua
(sexo e linguagem), além da qual fazem a guerra. Aos estranhos estrangeiros.
15. E porquê, adentro dessa fronteira, a
repartição em unidades locais de habitação (casas, famílias) também
diferenciadas? Há duas razões fortes: uma, consiste na maneira que terá sido a
mais adequada – já que parece universal – de assegurar quer a disciplina
paradigmática quer a hereditariedade e a herança por via da aprendizagem; ora,
se Platão propôs na República
abolir esta repartição no que aos guardas da cidade dizia respeito, foi por lhe
parecer que era nas ‘casas’, propriedade de terras e parentesco, património e
matrimónio ao mesmo tempo, que se geravam os mais fortes conflitos – as maiores
tragédias, acrescentará o moderado Aristóteles – na cidade que queria reformar.
Tinha provavelmente razão no diagnóstico, já que em todo o lado as unidades
sociais, aonde as gentes se encontram todo o tempo obrigadas a colaborarem,
conhecem ciúmes e rivalidades inevitáveis, mas o remédio radical proposto,
abolir as casas tanto família como economia, nunca foi seguido, como se a
endogamia das espécies tivesse que continuar na organização social, como se
algures o segredo da relação entre sexo e linguagem fosse a sua razão de ser,
confirmando a maneira como aduzimos aqui a descoberta de Freud. A ordem do
parentesco, com regras que conhecem algumas variações ao longo da geografia e
da história, nas nossas sociedades desembocou nas famílias desligadas da
actividade económica e institucional, fragilizadas assim por uma maneira que
não oferece grandes defesas ao surto das rivalidades, até porque se buscou que
o afecto fosse a razão principal da unidade social e ele se revela provisório.
Mas como sucede também no mundo empresarial das instituições (que também hoje
conhecem uma precariedade nova), há aqui um engano quanto à justificação da
família como unidade social, que me parece ser menos o afecto mútuo do que a
procriação de descendência: esta
tem um longo tempo de fragilidade que necessita de protecção, acrescentada à do
feto que precisa de 9 meses de útero materno[10].
16. A segunda razão é de ordem ecológica, em
sentido estrito, já que as unidades sociais são constituídas por mamíferos
primatas que começaram por estar sujeitos, como todas as outras espécies, à lei
da selva, às condições de poderem caçar e colher e à necessidade de se
defenderem. Donde que, sempre que a população duma unidade local começa a ser
demasiada para chegar a toda a gente o que se consegue apanhar, haverá que
segmentar a unidade (à maneira das células) e que uma das partes vá em busca de
ganhar um terreno ecológico propício. Todavia, em termos de segurança diante de
outros mais fortes, a segmentação aparece como uma perca de capacidade de
defesa, o que implica que as relações de aliança entre as várias unidades
locais joguem para juntos se defenderem de estrangeiros hostis. Temos assim
um critério ecológico de base para qualquer sociedade humana: o território que
ocupa deverá ser capaz de recursos alimentares para toda a população, a sua
organização entre unidades locais capaz de assegurar-lhe a defesa face às
sociedades estrangeiras. A
invocação alemã da necessidade de “espaço vital” para justificar o desencadear
das duas guerras mundiais da primeira metade do século XX não foi mais do que a
explicitação crua da razão básica das guerras que ilustraram permanentemente a
longa história das sociedades humanas, desde as ditas ‘primitivas’[11].
Sabendo-se como a violação de mulheres e raparigas é, juntamente com a fome,
uma das constantes desse guerrear, percebe-se que alimentação, sexualidade, habitação
e incompreensão das línguas respectivas se misturam nos critérios ecológicos
que às sociedades humanas dizem respeito. Também esse critério ecológico básico
explica o movimento de migrações, frequente ao longo da história, quantas vezes
para fugir a guerras ou a suas consequências, mas também na nossa modernidade
por atracção por eldorados contados como mitos e agora fomentados por
televisões que são elas mesmas mito público a olhos que só conhecem ecologias
pobres.
As cidades como excesso da agricultura e equilíbrio de razão
17. As casas agrícolas, que predominaram uma dúzia
de milénios na história das sociedades humanas, foram sempre uma luta contra a
lei da selva, luta vitoriosa que redundou num excesso de fecundidade dos campos
e rebanhos que tornou possível o desenvolvimento progressivo de vilas e
cidades, demandando uma ordenação urbana das trocas do que as casas citadinas
também produziam em excesso relativo ao seu próprio consumo. Ora, foram estas
duas fontes de excesso propícias às trocas que se tornaram numa nova razão de
guerras além das anteriores, a riqueza a conquistar: as guerras de poder dumas
sociedades sobre outras, por exemplos primeiros de tribos de pastores sobre
tribos de agricultores e, na sequência da produção metalúrgica de armas, de uma
casta de guerreiros sobre os produtores dos campos como das vilas e cidades,
primeiros reinos que nas guerras vitoriosas, além de espólios e tributos,
conquistavam escravos que vinham aumentar a produção agrícola, em seguida
reinos que se tornaram impérios, a construção de palácios e templos marcando o
poder político da casta guerreira e do seu chefe, o guerreiro que se mostrou
mais capaz nas batalhas e saques. São estes excessos que explicam a organização
dos mitos indo-europeus em suas três funções: as da produção por trabalho
muscular, as da guerra e as da fecundidade de colheitas e rebanhos que,
escapando ao poder dos músculos e dos saberes humanos, dependia dos deuses que
asseguravam as vitórias nas guerras e podiam tornar-se deuses também dos derrotados,
já que os seus deuses ancestrais tinham manifestamente sido incapazes face aos
outros, usos também que passam duma tradição a outra, antepassados que perdem
para os doutras tradições mais pujantes. Nas cidades que trocam e vão crescendo
aparecem exigências de novos equilíbrios, de estabilidades a manter entre os
excessos dos mercados e das ambições: formas variadas de razão urbana, de construir e organizar, impor-se-ão
juntamente com as contabilidades escritas das economias e despesas, as escritas
dos anais das guerras dos reis, a escrita enfim de pensadores espirituais.
18. Reinos e impérios são histórias de oscilações,
lentas por vezes, mais precipitadas por outras, que os excessos relevam do
acontecimento, nunca estão garantidos, Egípcios, Assírios, Caldeus de
Babilónia, Persas, Gregos de Alexandre, Romanos de César, sucederam-se nas
alternâncias de vitórias e derrotas do primeiro milénio antes da nossa era e se
uns duraram mais do que outros foi de terem sabido dosear o domínio e as suas
tributações com alguma tolerância das autonomias dos povos vencidos e anexados.
E depois as alternâncias cessaram e as tropas e as guerras e o fornecimento de
escravos que tinham sido a razão de ser da história antiga, que a cultura
cosmopolita não foi capaz de suplementar; das marginalidades espirituais sobrou
a igreja católica que durou um milénio a modos de cristandade quase imperial e
pôde ainda oferecer as universidades às comunas medievais donde renascerá a
Europa. Impressionante, este renascer (diferente embora) duma civilização que
parece repetir neste ocidente bárbaro o recomeço da história de cerca de dois
milénios atrás, trazendo uma parte da herança que se revelará duma fecundidade
inaudita.
19. O historiador inglês Eric Jones, no seu livro
de 1981 O milagre europeu (Gradiva),
faz um contraponto entre as evoluções da Europa e da China, Índia e Turquia no
intervalo que vai do século XV ao XVIII, buscando encontrar as razões da
modernidade se ter desenvolvido na primeira e não em nenhuma das outras
civilizações que no início do período retido estavam em situação equivalente,
senão melhor. Eis o feixe de razões da modernidade que ele propõe: a) o que
chama o sistema de Estados agressivos com uma ‘cultura’ comum (romana, a
agressividade expansionista), b) o mar e o comércio, c) o espírito crítico e
democrático, d) a tradição greco-judaico-cristã-romana como herança da Europa.
Embora só atenda aos dois primeiros tipos de factores dentro dos limites economicistas
que ele se dá (“entre o simples materialismo e a pura história das ideias [...]
o terreno das questões materiais é mais sólido”, p. 30), Jones opõe, de forma
muito esclarecedora, o sistema de Estados da Europa (onde não houve nunca
impérios duráveis desde o sec. V) aos impérios da China, Índia e Turquia. Razões
do contexto geográfico (áreas agrícolas muito fecundas envolvidas por
barreiras montanhosas ou florestais estiveram no coração dos principais
Estados-nação europeus) explicam a diferença europeia, já que do outro lado se
fez nesses impérios uma dualidade abissal entre a classe dos guerreiros e a
dos camponeses, aqueles não tendo outro interesse senão o da pilhagem do excedente
agrícola ou de qualquer outra riqueza para viverem num ‘luxo asiático’, como se
dizia, enquanto que o interesse destes era o de ter o maior número possível de
filhos para um trabalho em que faltava sempre mão de obra. O comércio era
predominantemente de produtos de luxo e os mercadores que enriqueciam não estavam
nunca seguros, nem os seus herdeiros, de não atraírem a confiscação arbitrária
dos imperadores, os quais, ao contrário dos reis europeus, “não queriam estar
sujeitos à lei e não proporcionaram legislação imparcial aos seus súbditos”
(Jones, p. 61). Ora, o comércio desenvolvido numa Europa dividida e com muitas
costas marítimas e rios navegáveis foi um comércio de grandes volumes de mercadorias
correntes, o interesse dos reis sendo mais o de as tributar do que o de as
confiscar e matar a galinha dos ovos de ouro. Com efeito, tanto quanto julgo
saber, foram as repúblicas italianas e os portos da Hansa, Amesterdão e
Antuérpia que estiveram na origem desse grosso comércio, os seus governantes
não tendo terras suficientes e o comércio saído dos seus territórios sendo a
principal fonte de rendimentos de impostos. Foi também nessas cidades que a
rede bancária se desenvolveu, as letras de crédito, isto é, dinheiro em papel
assinado, supondo um entendimento de civilização nesse ‘crédito’ na assinatura
de pessoas que não se conheciam. Jones assinala com justeza “o aparecimento dum
espírito europeu no seio da burguesia; ao contrário da visão convencional que
vê a difusão como ocorrendo a partir de uma Grã-Bretanha particularmente
criativa [Jones é inglês!], o desenvolvimento comercial e industrial teve as
suas raízes nestas redes internacionais de casas comerciais” (p. 198)[12].
Ora, como esta dualidade entre os aristocratas guerreiros vivendo dos excedentes
da terra e os camponeses que a cultivavam também existia na Idade Média,
aqueles tendo como ponto de honra não trabalharem com as suas mãos, sem as
burguesias dos burgos não teriam vingado nem comércio nem tecnologia. Comecemos
pelo primeiro.
Breve fenomenologia da moeda
20. De ouro, prata, bronze ou outra liga, as
moedas cunhadas embora pela realeza valem pelo seu peso na troca com um produto de trabalho, a moeda falsa
sendo de um metal sem o mesmo valor atribuído. Assim como a troca vale como
racionalidade citadina face às pilhagens e saques dos guerreiros, a moeda que
substitui as cabeças de gado ou outras ‘mercadorias’ é uma especialização da
troca: ela só vale para trocar, é exclusivamente um factor de mercado (não
serve para mais nada, para comer ou para pôr numa vitrine). Os pesos valendo
como quantidades aritméticas, é possível a criação duma ‘língua de preços’[13],
isto é dum sistema, necessariamente oscilante, que faz corresponder os valores
de troca dos diversos produtos que vêm ao mercado, ‘língua’ essa das mercadorias
que compradores e vendedores têm que aprender para não serem enganados. Reside
aqui a questão base da economia: enquanto que na luta valem as musculaturas e
as armas, na troca há sempre a possibilidade de dissimulação e o primeiro
requisito duma ciência económica consiste em ser obstáculo racional a isso. Mas
as armas também servem para roubar dinheiro: a fragilidade da moeda é que nada
nela assinala o seu proprietário, aquele a quem ela fornece uma capacidade de
troca. Em contraste com as palavras, os números e as notas musicais, que são de
todos e de ninguém, o peso metálico da moeda, sendo anónimo como aqueles, traz
consigo um poder social de aquisição de produtos de trabalho de outros
indiferente a quem o apresenta como seu, o que implica que tenha que ser
guardado e defendido. Também o peso das moedas metálicas se tornava incómodo
para pagamentos elevados a longa distância, obrigando as caravanas a serem
protegidas militarmente. A invenção da letra de crédito no século XIII medieval[14],
dum papel moeda assinado e privado valendo na ausência do ouro e da moeda
cunhada pela autoridade estatal responde a esse incómodo e permite realçar o
que será a fragilidade das futuras notas de banco, no que diz respeito à
possibilidade de dissimulação monetária, de crises financeiras. Que eu assine
em Antuérpia ou em Hamburgo uma carta de dívida a um mercador de Veneza ou de
Génova e que este, sem me conhecer pessoalmente e não tendo nenhuma garantia
sobre a minha tesouraria (o segredo desta é a alma dos negócios) nem sobre a
minha saúde ou a minha morte ocorrida entretanto que ele só saberá meses
passados (é certo que ‘eu sou’ uma instituição, o meu herdeiro honrará a minha
assinatura), possa utilizar esta carta como ‘dinheiro’ numa outra compra com um
terceiro que também não me conhece, eis o que supõe, num mundo de guerras mais
ou menos constantes, um sistema de confiança na assinatura dum concorrente-aliado não
conhecido pessoalmente, prolongamento da confiança na palavra dada por alguém
com nome reputado, honrado. Inexistente na Antiguidade grega e romana bem como
nas civilizações asiáticas, esta invenção de valor monetário por assinatura
privada supõe por certo a cristandade como suporte de crença medieval, mas
mostra também que esse papel-moeda (assinado por privados, como os nossos
cheques) exige uma ‘fiança’, uma contrapartida de valor além dele, papel sem
peso de ouro ou prata: o seu número indica o preço de troca que pode assumir, a
assinatura assinala o fundamento desse preço, de que as moedas de ouro não
precisavam. Já o mesmo se passava no comércio próximo com a palavra de honra,
esta era a ‘honra’ do nome duma casa, actividade económica mas também família:
se a palavra falhar, a desonra é a maior calamidade duma casa, haverá penhora
de bens e, se não chegar, prisão do devedor.
21. As notas de banco, inventadas na Europa
clássica, vão generalizar esta questão da contrapartida do valor do papel, mas
a assinatura agora releva do banco do Estado, do seu tesouro (em ouro, exemplo
maior), dos impostos que cobra, o que no caso depende do valor da economia e do
sistema de cobrança. É a mesma assinatura em todas as notas: estas agora
pertencem inteiramente ao sistema de confiança que se apoia no Estado como regulador do sistema
social; a crise é o falhanço do conjunto do mercado e dos impostos que ele
fornece, a desvalorização consequente da moeda no câmbio com outras. Desde
sempre que o mercado, mesmo incipiente, conhece empréstimos e dívidas e o seu
desenvolvimento levou à especialização de instituições bancárias, cujo negócio
é ‘alugar’ dinheiro a quem o faça render e depois o devolva com os juros
ajustados, estes consistindo no ganho do banco[15].
Também aqui a regra é verificar a capacidade de ‘fiança’ (em bens hipotecados)
do que recebe o empréstimo, prevendo o caso de não cumprimento. A lógica da
confiança ou crédito não
repousa assim no valor atribuído ao papel moeda nele mesmo, como sucedia nas
moedas em ouro e prata, mas na manutenção verificável da sua capacidade de
troca por mercadorias, avaliadas em preços correntes: trata-se da adequação
mútua entre dois sistemas de diferenças, o das notas e o dos preços, que são
necessariamente oscilantes no tempo, entre crises e inflações. O que significa
que o dinheiro, mais obviamente quando desmetalizado, como hoje sucede em que
as moedas são de pouco valor, só vale como meio de troca, motor do mercado que corre incessantemente entre
vendas e compras. Numa ilha deserta, não vale nada.
22. Durante a história das sociedades dominadas
pelas nobrezas guerreiras, a riqueza que era objecto da ambição humana
consistia predominantemente na posse de terras e no seu rendimento devido a
trabalhadores, fossem escravos, servos ou rendeiros, susceptíveis aliás de
serem soldados que o nobre alistava nas guerras reais. Ou seja, as armas eram a
garantia última da riqueza, a escravatura é a grande mancha dessas épocas
cruéis. Foi sobretudo a indústria moderna que deu um impulso ao comércio que
transformou a cena da riqueza: os grandes industriais e os grandes banqueiros
substituíram nobres e latifundiários, a riqueza deixou de ser medida em
hectares de terra mas em números de produção e de lucros, exprimiu-se
essencialmente em termos monetários. Se se admiram os inventores e alguns
grandes engenheiros, quem comanda doravante tudo o que diz respeito à economia
são os capitalistas, as
sociedades que são assim caracterizadas puderam desindustrializarem-se, em nome
de perspectivas de mero aumento de capitais. Ou seja, o que já sucedia havia
muito com alguns burgueses particulares, tornou-se o alvo das sociedades mais
avançadas industrial e financeiramente do Ocidente: ao alto nível, o dinheiro
deixou de significar um meio de
troca, como a sua regra de razão, para prevalecer como excesso, como um fim de avaliação de progresso social. Assim como as
notas tornaram as moedinhas despiciendas, são agora os cheques de milhões que
subalternizam as notas, as assinaturas privadas que vimos nascer no século XIII
que se impõem aos próprios Estados, submergidos pelo sistema financeiro
internacional e pelo seu jogo de bolsa onde se dá com maior evidência o corte
entre as finanças e os mercados de compra e venda do que se produz em fábricas
e nos campos. Transformar um ‘meio’ num ‘fim’ é uma perversão, que tem
contrapartida na inversa: os ‘humanos’ trabalhadores, que são enquanto cidadãos
um ‘fim’, são tornados ‘meio’ enquanto ‘custos de trabalho’ que se apagam
lançando no desemprego para corrigir umas décimas das contas do capital. Esta
dupla perversão, que retoma doutra forma a mancha tremenda que foram as
escravaturas antigas e europeias e os colonialismos, revela-se nas crises – a
de 1929 entre duas guerras terríveis e a actual – além de imoral, como
‘castigo’ do erro da ciência económica que não percebeu que o dinheiro só vale
pelo que se faz e consome e que o corte da finança com o mercado implica a
crise duma como do outro. A dizer verdade, poder-se-á argumentar que a noção de
‘propriedade’ do capital se torna inconsequente com este divórcio: as
falências dos bancos testemunham da ‘falência’ do valor do dinheiro sem mercado. O excesso do dinheiro financeiro longe das
trocas da economia e da sua língua de preços, é uma espécie de obesidade que nas crises rebenta com o conjunto social.
Organigrama duma sociedade contemporânea
23. Chegados aqui, para se poder colocar com a
amplidão conveniente a questão da ecologia, haverá que esboçar um organigrama
das sociedades contemporâneas (ocidentais) na complexidade dos seus duplos
laços. A grande fractura destas sociedades em relação às sociedades cuja
energia era de ordem biológica – e onde por isso a misteriosa questão da
fecundidade, tanto das agriculturas e dos rebanhos como dos parentescos
humanos, exigia uma instituição religiosa holística em torno do culto da
divindade que se cria ser a fonte dessa fecundidade – sociedades essas em que
as unidades sociais, ricas ou pobres, do campo como da cidade, as casas, tanto respondiam do parentesco e da reprodução
das suas gerações como da actividade económica, a grande fractura foi a da separação
dessas duas dimensões das antigas casas em dois tipos de unidades, famílias
e instituições de trabalho,
nestas se empregando os humanos durante algumas horas por dia em actividades
que asseguram tarefas especializadas em rede com outras, a montante ou a
juzante, abolida enfim (quase) definitivamente a autarcia das casas agrícolas
de antanho que fazia delas quase ilhas sociais que trocavam mulheres e alguns
produtos em feiras, cujo saber e saber fazer era também transmitido de pais
para filhos e mães para filhas.
24. É esta rede de unidades locais, instituições por um lado e famílias por outro, privadas na autonomia dos seus paradigmas de usos, que
constitui o ‘motor’ social, o que assegura o movimento complexo do dia a dia e
da passagem dos anos e das gerações, o laço social de produção e reprodução que
é a sociedade. Enquanto que o Estado, multiplicando para o efeito um tipo público de instituições, deve assegurar o laço político
da regulação desse movimento complexo. Por exemplo, as instituições oficiais
que dizem respeito à administração pública, com seus vários ministérios de
regulação dos vários sectores da sociedade civil, ao sistema da justiça (leis,
tribunais, prisões), à ordem pública e à defesa do conjunto face a
estrangeiros, à saúde, ao ensino, e por aí fora. Eis o duplo laço mais geral, sem ter em conta as diferenças que lhe vêm das
redes internacionais de todo o tipo de trocas, de que a União Europeia é um
caso flagrante de complicação entre quase três dezenas de duplos laços
nacionais. As eleições democráticas, realizadas no contexto residencial das
famílias mas individualizando os eleitores, vieram justamente situar-se no nó
da articulação entre motor (privado) que (re)produz e aparelho de Estado
(público) que regula, disciplinando o ‘motor’.
25. A este duplo laço acrescentam-se dois outros
enlaçamentos transversais ao todo social, que estabelecem relações estruturais
entre instituições e famílias, sujeitos igualmente à regulação estatal e
susceptíveis de oscilarem entre privado e público. O primeiro articula as
famílias às instituições: a escola transmite às crianças e jovens que as famílias reproduzem os saberes
comuns e depois especializados que se foram acumulando ao longo da história
ocidental e que, a níveis diversos, são necessários aos cidadãos para virem a
ocupar competentemente lugares efectivos nos paradigmas de trabalho das
instituições. A escola complementa-se com outro tipo de instituições, os médias, onde avultam como as mais antigas e essenciais
às tarefas da escola as editoras de livros de cultura e de ensino, no coração
do movimento humanista; seguiram-se em termos de importância histórica os
jornais, cujo papel veio a ser, além dos livros, fundamental na formação da opinião
pública. No último século, as
rádios e televisões vieram complementar os médias de escrita (e imagens, as
revistas) com sons, músicas e imagens em movimento, médias pois de linguagem e
conversa, de músicas, filmes e reportagens em directo, que circulam por todo um
dado território de forma unilateral, de editor e emissor como produtores para
leitores, ouvintes e espectadores, como receptores. A Teia electrónica muito
recente veio ultrapassar essa unilateralidade, desdobrando as possibilidades de
qualquer um poder aceder à produção de mensagens, textos, vídeos, músicas,
dentro de limites que a priori são muito grandes sem que ninguém controle os
conteúdos nem haja garantia à partida de recepção anónima, como nos outros
médias (isto é, podem-se publicar coisas sem haver quem leia).
26. A outra instituição transversal faz o percurso
inverso da escola, o mercado que
vem das instituições e dirige-se às famílias, com duas facetas igualmente
importantes. Por um lado, as instituições pagam salários aos cidadãos que nelas
se empregam e esses salários fazem os orçamentos familiares; por outro lado,
estes permitem comprar dentre o que as instituições fabricam aquilo de que o
paradigma familiar necessita, garantindo a liberdade elementar, dentro dos
limites dos salários, é bem de ver, de se comprar o que se prefere. O mercado
deu origem a instituições específicas, que recebem mercadorias dos que as
fabricam e as dispõem em lojas nas proximidades residenciais das famílias.
27. Estes dois tipos de instituições transversais,
a escola e o mercado, são-no pela especificidade do respectivo motor: a
linguagem duplamente articulada com seu sistema fonético e seu alfabeto, no
caso da escola e dos médias, a moeda no do mercado. Outros sectores da
sociedade civil são especializados segundo critérios variados: o da alimentação
(agricultura, criação, agro-industrial, distribuição, restaurantes) com um
critério de prazo de validade dos produtos que circulam mortos; o dos transportes
(comboio, carros, camiões, navios, aviões), com um critério do tipo de
mecanismo ‘auto móvel’; o da saúde (hospitais, centros de saúde. clínicas,
farmácias), construção de imóveis (edifícios e outras obras), fabrico de todo o
tipo de maquinaria, ferramentas, produtos químicos, e por aí fora.
As três vagas da industrialização
28. Estamos já na terceira grande vaga da
revolução industrial, que alguns consideram pós-industrial, outros pós-moderna,
tornando assim a diferença para com a segunda vaga ser maior do que entre a
primeira e as sociedades de energia predominantemente biológica, as do chamado
antigo Regime, ‘pós-’ de vistas curtas. Serão justamente critérios energéticos
que nos permitirão distinguir as três vagas maiores das sociedades modernas.
29. A primeira ocorreu desde a segunda metade do
século XVIII (em Inglaterra) até aos finais do século XIX, e é caracterizada
essencialmente pela máquina a vapor, ou melhor dito pelo motor de caldeira a
carvão e vapor de água como
energia que se articulou com diversos aparelhos, quer de fábricas, mecânicas,
siderúrgicas e têxteis, quer de comboios e navios. Juntamente com a exploração
das minas de carvão e de ferro e as primeiras fábricas químicas, esta primeira
fase de fábricas de grande dimensão e máquinas exigindo numerosos operários
situou-as nas periferias das cidades e das minas, atravessou as paisagens das
jovens nações modernas com os caminhos de ferro e os oceanos com os navios a
vapor, criou um proletariado industrial (que largou as terras e os artesanatos
incapazes de concorrerem com os novos produtos das fábricas) como classe trabalhadora,
com algum paralelo com a escravatura, base da agricultura dos nobres guerreiros
de outrora e que pôde ser abolida pela nova classe dirigente citadina, instaurou
o ensino primário obrigatório e desenvolveu o liceal e universitário para as
elites burguesas.
30. A principal característica energética da
segunda fase consistiu na electricidade como maneira de transporte de energia a distância com altos rendimentos,
partindo de turbinas hidro-eléctricas ou centrais térmicas (depois também
centrais nucleares) e sendo susceptíveis de porem em movimento motores
eléctricos capazes de energia mecânica, térmica, luminosa. E ainda os motores
de explosão de produtos de petróleo nos transportes rodoviários, vindo substituir os cavalos, e nos inéditos
transportes aéreos. Esta fase veio desde o final do século XIX até aos três
quartos do século XX, foi a da iluminação eléctrica, do aço, do betão armado,
do petróleo e da química do plástico, do automóvel e do avião, fase que criou
as grandes cidades e seus prédios altamente concentrados do que se chama classes
médias, as quais saíram dos
liceus generalizados a quase toda a população, classes dos empregados de
escritório e de serviços, dos técnicos de inúmeras especializações, fase essa
que, depois de ter aligeirado fortemente a dureza do trabalho operário nas fábricas,
fez diminuir o proletariado nos países mais industrializados, como na fase anterior
sucedera com os trabalhadores da agricultura; aligeirou também o trabalho
caseiro com os electrodomésticos, libertando as mulheres para os empregos outrora
masculinos. Esta segunda fase da revolução industrial, por um lado, alterou
muito fortemente as condições e relações sociais nos países capitalistas, por
outro, suscitou em países que estavam
ainda sujeitos a relações feudais ou coloniais o desejo dum
desenvolvimento industrial acelerado. Esta duplicidade de situações, típica da
segunda fase da industrialização capitalista, permite compreender a bifurcação
essencial que conheceu o movimento histórico que se reclamava do marxismo: o
leninismo foi a forma que se
implantou nos países atrasados, enquanto que, nos países mais adiantados,
desde o início do século XX que (com a excepção dos países latinos e de
tradição predominantemente católica que são a França e a Itália, onde
predominaram partidos comunistas) foi o reformismo social-democrata (sindicatos e partidos) quem protagonizou a
condução das lutas do movimento operário de que resultou na Europa nórdica
nomeadamente o chamado modelo social europeu, as seguranças sociais relativas à saúde, reforma
e ensino, as férias pagas, a melhoria substancial – inequívoca nesses países –
do poder de compra e das condições dos trabalhadores assalariados.
31. A etapa actual está no seu início desde os
anos 70 do século XX, caracterizada pela generalização duma nova forma de
electricidade, electrónica, a
das ditas “correntes fracas”: tratamento e circulação de linguagem, números e
cálculos, músicas e imagens, donde robots e computadores que aliviam trabalhadores
de todas as categorias dos trabalhos mais monótonos, musculares ou de escrita
e contas, mas também os expulsam para um desemprego crescente e flexibilizam e tornam inseguro o emprego dos
outros, destruindo uma boa parte das condições de trabalho mais humanas conseguidas
pelos movimentos sociais históricos dos trabalhadores durante a segunda fase
da revolução industrial. Além da poluição devida à componente química da
técnica atentando contra as condições de vida de todas as espécies, a crise
ecológica desagua nesta desempregação, se assim se pode dizer quer o desemprego
quer a precariedade dos mal-empregados.
Definição e laboratório: quando o motor se torna obstáculo
32. Duas linhas históricas relativamente autónomas
uma da outra vieram encontrar-se na formação da modernidade ocidental, uma
responsável directa pela industrialização da Europa e a outra abrindo o espaço
dos oceanos e dos outros continentes à sua globalização comercial. A descoberta
marítima das Américas levou à sua colonização por emigrantes europeus que se
impuseram militarmente aos indígenas e os dizimaram literalmente em um século
(reduzidos a um décimo da população segundo os cálculos de P. Clastres[16]),
colónias essas que enviaram ao velho continente recursos minerais e receberam a
contrapartida de escravos comercializados na sequência do contorno português da
África, tendo-se tornado zona de exportação dos produtos europeus, até às
proclamações de independência durante o primeiro ciclo da revolução industrial,
desde a das treze colónias inglesas de 1776 – ano em que Adam Smith publicou A
Riqueza das Nações e começara
James Watt a comercialização da máquina a vapor com o capitalista M. Boulton –
e seguidas pelas espanholas e portuguesa a partir das invasões napoleónicas da
península ibérica. O comércio global com as colónias americanas durante os
séculos clássicos foi importante para a acumulação dos capitais europeus,
sobretudo ingleses, que deram o impulso à industrialização. Rebelde às
tentativas de colonização, a Ásia do Pacífico foi acordada pelo comércio
europeu ao longo do século XIX e, atrás do Japão, foi-se afirmando na segunda
metade do século XX, aparecendo a China e a Índia como grandes potências
emergentes na viragem dos dois milénios.
33. A outra linha é interna à Europa, é a que
configura a lenta passagem de sociedades feudais com religião holística comum a
sociedades secularizadas em que é a escola que ensina o que de conhecimento se
acumulou e reelaborou ao longo dessa mesma história, escola essa que se tornou
holística por sua vez, isto é, também obrigatória para todos e tendencialmente
comum, embora em línguas e tradições culturais variadas. O seu primeiro gesto é
a retoma latina da cena histórica da inscrição, que estagnara desde o findar do
império romano ocidental, pelas universidades medievais, tão mal afamadas pelos
Modernos europeus mas que foi até ao século XVIII a condição deles, onde
estudaram o suficiente para depois criticarem e se rebelarem mais ou menos marginalmente,
a partir do que chamaram Renascimento, que o foi da própria Europa. Essa retoma
de parte da herança romana e cristã é um caso único na história das
civilizações: sociedades bárbaras, aos olhos de Bizâncio e do Islão dotam-se de
textos escritos com mais de dez séculos de existência e praticamente
abandonados e põem-se a lê-los, comentá-los e discuti-los, antes de qualquer
viabilização prática dessas especulações, pelo puro prazer de pensar, abrindo
assim sem o saberem o espaço duma civilização inédita apadrinhada pela que a
precedera. Além das artes liberais (gramática, retórica, lógica, aritmética,
geometria, música, astronomia), do direito e da medicina, a teologia que
predominava integrou o pensamento filosófico do ‘pagão’ Aristóteles (que sempre
fora marginal ao cristianismo e à sua teologia platónica) onde sublinharemos,
no alvor da linha de inscrição que estamos rememorando, o seu uso constante da definição
de essências intemporais que se torna,
por assim dizer, um mecanismo de razão com autonomia crítica própria em relação a argumentos inspirados na Bíblia
e nos dogmas conciliares, mecanismo esse de que as autoridades eclesiásticas
sempre desconfiarão (Lutero, o paladino do ‘livre exame’, clamará contra ela
como “a puta do diabo”) e que assegurará alguma liberdade de pensamento a
professores que são clérigos.
34. O Renascimento alarga o gesto de retoma dos
Antigos à literatura e pensamento de origem mais claramente pagã, acentuando
assim a oscilação entre o teocentrismo teológico e o humanismo de pintores,
escultores, arquitectos, literatos, filósofos. Importância nova da
corporalidade das figuras, da perspectiva centrada na visão humana do artista,
geometria consequente, literatura em línguas vernáculas e suas primeiras gramáticas,
tradução latina dos principais diálogos de Platão na segunda metade do século
XV por Marsílio Ficino que permitirá no pensamento europeu clássico uma
inversão original da relação entre ele e Aristóteles, que fora o seu discípulo
crítico, sendo agora o mestre quem ocupa o lugar do que vem depois criticar
aquele a quem tinha ensinado a pensar. A história do pensamento às avessas da
linearidade cronológica. A edição mecânica dos livros a partir de meados do
século XV, que dispensa a dispendiosa cópia à mão e os embaratece em
consequência e divulga além dos clérigos eruditos, veio dar uma nova força ao
movimento de humanização, permitindo a propagação do ‘livre exame” das
Escrituras, ou seja a individualização da sua leitura em rebeldia espiritual
face à autoridade de Roma no coração mesmo do cristianismo, mas também a
abertura de duas frentes religiosas que se combatem como inimigos, filhos de
deuses diferentes, o que favoreceu o cepticismo liberal, e libertino mais tarde.
A cristandade dividiu-se entre Norte e Sul, aqueles mais dinâmicos, já que
forçados pelos climas frios a obrarem mais afincadamente para se defenderem e
alimentarem, enquanto que o sol quente deixa os mediterrânicos sob o jugo de
Roma e da anti-semita e anti-protestante Inquisição de tão má memória. Embora
Galileu e Descartes pertençam ao mundo católico, o que pagarão caro, será sobretudo
fora dele que a atitude critica se desenvolve, mormente com a invenção do
laboratório, gesto novo, como se viu, que introduz as forças da Mecânica e o
tempo do movimento na cena da inscrição, onde até aí se especulava apenas sobre
as essências intemporais resultantes da definição. Os novos e mais baratos
livros permitem também aos novos saberes serem lidos em línguas vernáculas e a
difusão da crítica do aristotelismo especulativo por parte dos sábios
experimentadores. Galileu, o primeiro entre os mais célebres físicos, acolhe no
seu mente concipio (“concebo
mentalmente um móbil deixado a si mesmo”, explanação do princípio da inércia) a
tradição de Platão, mas também a de Aristóteles na sua maneira de atentar no
movimento das coisas singulares, acrescentando a ambos o trabalho artesanal de
produzir experimentações e instrumentos para os medir. Ao invés, Descartes
assume apenas a tradição platónica que separa pensamento, por um lado, e corpo,
mundo e lugar, por outro (após o seu ‘penso, logo sou’, continua: “depois, examinando
com atenção o que eu era, e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo,
e que não havia nenhum mundo, nem lugar em que eu fosse...” cap. IV do Discurso
do Método), dando todavia origem
a maneiras de filosofar centradas no sujeito humano que pensa e que acabarão,
com Hume e Kant, por afastar Deus e a alma imortal das tarefas do conhecimento
científico e filosófico. A filosofia autonomiza-se assim, de maneira humanista,
da teologia e das autoridades religiosas doutrinárias, a atitude crítica que
será parcialmente marginal às universidades durante os séculos clássicos fará
trabalho suficiente, como a Enciclopédia exibe em meados do século XVIII, para
a renovação da escola, por seu turno se tornando holística, obrigatória para
todos nos seus primeiros anos de crescimento, das universidades que acolherão
as novas ciências e as sementes do pensamento laico, a secularização das
sociedades modernas.
35. A face progressista da modernidade resulta
desta perspectiva positiva em relação ao carácter humanístico dos novos
conhecimentos, que deveriam proporcionar uma sociedade boa para todos os
humanos, acabar enfim com a dureza das vidas pobres e com os males que sempre
nos afligiram: tanto o cristianismo como o platonismo e o aristotelismo tinham
sido estruturados a partir duma separação entre o Bem e o Mal, a promessa do
Iluminismo humanista era a da vitória do primeiro e da derrota do segundo,
participava do mito e não o sabia, ignorava o que noutros textos chamei
ben(mal)dição[17], que se a
primeira bênção que recebemos nascendo é a vida, é estruturalmente a vida dum
mortal, como Platão sabia que para o ultrapassar precisou de almas imortais. A
lei da selva é a ilustração cruel dessa ben(mal)dição, já que a morte dum é a
condição da vida do outro que o caça e come. E se os humanos conseguiram com a
agricultura controlar essa lei, não deixam de estar sujeitos a ela, como se vê
das consequências da fome, bem como da doença e da velhice inexorável, e
acrescentaram às possibilidades musculares e de astúcia que a evolução nos deu
para as condições da luta selvática uma lei da guerra como requinte humano da
lei da selva a que com os outros vivos estamos submetidos.
36. Mas aqui quereria sugerir o que nesta breve
apresentação das duas linhas da história da modernização europeia permite
compreender algumas causas das crises inesperadas que a ecologia busca
colmatar. Essas causas estão nos excessos singulares de qualquer processo em
termos de duplos laços, que se definem enquanto ‘excessos’ justamente em
relação à definição do processo que o privilegiou. A definição opera por redução da singularidade ou acidentalidade da coisa
definida, retira a ‘essência’ pensada do seu contexto singular, isto é, da cena
de circulação em que ela se move, para a regulação da qual ela está
estruturada. A maneira como o filósofo francês François Jullien tem lido
cuidadosamente o pensamento chinês permite perceber que a sabedoria tradicional
deste funcionava ao invés da nossa, partia do geral duma situação para a compreender
nesse seu contexto e adequar os comportamentos humanos à lógica do processo
contextualizado. É justamente o contrário que faz a definição, que pensa os
processos idealizando-os em essências iguais em qualquer contexto: o que a
torna incapaz de pensar esse contexto em ordem a actuar sobre ele, de acordo
com a lógica que vai manifestando. Ora, o laboratório científico procede do mesmo
modo, compreende as suas experimentações retirando-as para fora do contexto
delas, como condição de universalização do conhecimento. E assim como a
definição deixada universitariamente a si mesma não sabe fazer outra coisas
senão especulações, também as máquinas e os novos produtos químicos inventados
laboratorialmente não sabem das incidências desses inventos nos contextos de
habitação em que serão usados. Por definição, o engenheiro ignora a poluição
que provoca fora do
laboratório, aquilo a que se chama
efeitos secundários. Aquilo que
foi ‘motor’ da história que nos trouxe à modernidade, é o obstáculo que se
revela como crise excessiva inesperada: ben(mal)dição, o mal no coração do
grande bem que foi a invenção das máquinas e das químicas.
O horizonte ecológico da Terra: enlaçar o mundo da Técnica e o dos Vivos
37. Se quisermos olhar, em tempos de
mundialização, o conjunto das sociedades que a Terra deu, dá e deixa ser, sociedades que se movem constantemente, se
auto-reproduzem mas com laços entre elas cada vez mais fortes, encontramos em
termos planetários uma dualidade, cada vez mais entranhada inclusive nos países
de tradição tribal recente, entre o sistema heteronómico dos empregos (o Gestell heideggeriano) e a esfera relativamente autónoma nos
‘tempos livres’, segundo a proposta de André Gorz que ilustrei no meu e.Book Da
Natureza à Técnica, da modernidade antiga à moderna (construção, desconstrução,
reconstrução), cap. 6, §§36-55.
Trata-se por um lado da inter-institucionalização das unidades sociais onde se
trabalha à volta de 8 horas por dia, do sistema de produção de bens e serviços
e do mercado das suas trocas, além das unidades de regulação de todo o tipo
(administrativas, escolares, médias, bancos e seguros, etc.) e por outro das
redes de famílias e de relações entre as gentes nos tempos ‘livres’ desses
empregos, as outras horas do dia, os fins de semana e as férias, a esfera de
autonomia de Gorz. Pode-se dizer assim a meta ecológica mundial: conseguir que as duas crises excessivas, que são
literalmente desmedidas, isto é, não controláveis por medições laboratoriais
científicas que tenham mãos nelas – a da poluição (dos ares, águas e alimentos
dos vivos) devida ao engenheiro e a da desempregação (desemprego ou empregos
precários e salários de quase miséria) devida ao economista e ao capital –,
conseguir que elas sejam controladas politicamente; para isso é preciso que o
actual e óbvio predomínio do sistema técnico e de mercado sobre a esfera de
autonomia que nem sequer tem nome seja democraticamente invertido, que esta possa assegurar o predomínio sobre a
outra esfera e sobre o poder financeiro que a controla; se se tem em conta que
as eleições politicas em democracia se fazem a partir desta esfera do familiar,
pode-se pelo menos pensar que isso não é teoricamente impossível, embora
implicasse uma revolução cultural e mediática inverosímil a curto e médio
prazo. Que esta esfera de autonomia nem sequer tenha nome é bem grave porque
ela não é pura e simplesmente pensada, reduzida a indivíduos, aos seus
problemas pessoais e familiares, de repouso e saúde. Ora, entre muitas outras
actividades culturais, espirituais, desportivas, de divertimento, é a esfera
onde se forma a opinião
pública, onde se suscitam as
opções cívicas e políticas, as militâncias: há que a qualificar nesse seu
dinamismo, que tenha como horizonte ecológico o de se passar duma civilização
de desmedida e mal viver das maiorias das populações (desempregação) para uma
civilização de sobriedade e bem viver, bem viver duma comunidade de vida plural em seus conflitos, solidária e festiva.
38. É possível entender essa ‘dualidade’ em termos
de um duplo laço planetário? Seria tentador, mas difícil. Esta dualidade é
típica da modernidade, provindo da fractura das casas de antanho, é a das suas duas grandes redes, a
das instituições de empregos e a das famílias e seus círculos de relações mais
ou menos diversas. Mas são os mesmos indivíduos que lhes pertencem, em locais e
períodos diferentes, que oscilam entre os dois espaços – tempos sociais que são
uma sociedade moderna organizada: as duas esferas interpenetram-se uma na outra
por via de terem os mesmos agentes. O que tem como consequência que, em vez de
se tratar de luta de classes adentro das empresas, de concorrência entre estas
ou entre capitais, de rivalidade ou guerra entre nações, de choque de
civilizações, de conflitos entre tradições religiosas e secularidades modernas,
tudo isso existe obviamente, a relação entre estas duas faces duma dualidade una
apenas é visível na geografia
local dos bairros, cidades e municípios. Só que também aqui essa dualidade una – indissociáveis e inconciliáveis as leis das
suas duas esferas mas não como um só movimento – não se deixa descrever
fenomenologicamente como um duplo laço, embora cada uma das redes seja composta
deles, as instituições de produção e troca ‘motor’ do sistema técnico, as famílias
‘motor’ da esfera de autonomia (§ 24). Haverá que encontrar um ponto de vista,
de descrição [supra-Estado ONU? Internet, mercado § 25], que se revele adequado
politicamente à acção ecológica, a que esta atinja duplos laços sociais para
lhes inflectir os movimentos na direcção desejada (o piloto que decide
politicamente, com consequências em eleições).
A questão do crescimento económico
39. Sem dúvida que as duas crises têm razões
múltiplas cujas análises escapam ao fenomenólogo, mas não deixa de ser
sintomático que haja uma espécie de cegueira e surdez da parte da maioria dos
dirigentes financeiros, económicos e políticos em relação ao problema das
alterações climáticas e suas causas produtivistas, os ganhos de curto prazo
escondendo a ameaça dos longos prazos, sendo certo que esta não é susceptível
de evidências laboratoriais e que os cientistas têm dificuldade em construir
demonstrações complexas de factores que se imbricam uns nos outros. Em todo o
caso, a aceleração da produção industrial desde a última guerra mundial e os
consequentes níveis qualitativos de vida das classes médias dos países
ocidentais permitem perceber claramente que não será possível às grandes
sociedades emergentes garantirem níveis de vida equivalentes às suas classes
médias (as matérias primas terão que ser recicladas), quando aliás as classes
médias ocidentais começam em muitas das suas periferias a empobrecer devido à
crise financeira. Ora, todos os dirigentes dum como do outro lado continuam a
apostar no crescimento como
saída para a crise, fechando os olhos à outra vertente desse crescimento, o da
poluição e dos seus números assustadores. Desse fechar os olhos fará parte também,
e também aqui a demonstração não é evidente, que a aceleração do desemprego
ocidental resulta em boa parte, como revelam as doses massivas de despedimentos
das grandes multinacionais, dos ganhos de produtividade devidos à electrónica,
robots em fábricas e computadores em escritórios, terceira fase da revolução
industrial. Esses olhos que se fecham para a condição socialmente insustentável
das sociedades mordidas pela desempregação (a chamada flexibilidade do mercado
de trabalho, a sua precariedade, faz parte dessa ‘cegueira’) estão voltados
apenas para o crescimento ou não dos números, os da produção propriamente dita,
mas sobretudo os dos capitais[18].
40. Ora bem, o que significa a palavra
‘crescimento’? Ela releva da phusis, dos que desabrocham, da natureza, dos que nascem, abrem-se e crescem, dos que, alimentando-se, de pequenos
vão a grandes, parando de crescer em dimensão quando chegam a adultos e continuando a
melhorar em qualidade, mas com
balizas, limiares variados que assinalam o manter-se em vida – não podem comer nem beber demais, têm que
descansar ao fim dum certo tempo de esforço e gasto de energia, limiares
homeostáticos de tensões e teores do sangue – até que morram. Se passarmos
agora para a cena da habitação, dir-se-á duma aldeia ou duma cidade, duma
escola ou duma fábrica, que ‘crescem’ quando ganham maior dimensão topográfica
e população, sendo que a densidade populacional também pode aumentar. Mas se
uma aldeia ‘cresce’ às dimensões duma cidade sem alterar a sua organização
social adequadamente, do tipo das favelas e extensos bairros de lata de cidades
do chamado terceiro mundo, percebe-se que não houve a melhoria em qualidade
própria do estado ‘adulto’, que o motivo ‘crescimento’ limitado a extensão e
população pode não ser adequado, desejável. Quanto à escola que ‘cresce’, ela
tem que multiplicar o número de turmas e professores em proporção, já que o
número de alunos por turma não pode ‘crescer’, é um limiar homeostático, por
assim dizer, que também se verificará por regra em fábricas, com limites
oficinais de fabrico mais variáveis consoante, mas sempre com incidências na
melhor organização do conjunto, do seu ‘ser adulto’. Também o crescimento dum
aeroporto consiste na agregação de serviços, de embarque por exemplo, com
dimensões limitadas. Isto é, nada de social pode ganhar dimensão e população,
crescer, sem ter limiares ditados pela organização e pelas suas finalidades. É
aonde o crescimento ilimitado
dos PIB duma economia social, e da economia mundial como conjunto, assim como
dos números financeiros em moeda, que parece ser objectivo constante dos
respectivos dirigentes, é uma aberração lógica: se não tem limiares correspondentes
a equilíbrios qualitativos dum estado adulto, está dele mesmo votado à ‘morte’
a que chamamos falência ou crise, ao excesso que não tem correspondência
social, quer de produção (do lado do engenheiro) quer de economia e finanças.
Uma falência é sempre um desajuste excessivo entre finança e economia, e tanto
pode ser excesso desta (países ou empresas a que falta financiamento) como
daquela (especulação bancária ou de bolsa sem correspondência económica).
Resumindo: diria que o motivo de ‘crescimento’ releva da cena ecológica, dos
vivos, que se pode metaforizar na cena social da habitação, à homeostasia
daquela correspondendo a conjuntura nesta; mas ele não é pura e simplesmente
aplicável na cena da inscrição, já que palavras, notas de música e imagens não
crescem[19],
como é óbvio, nem tão pouco os números: o número 10 é maior do que o número 5
mas não é esse número mais crescido.
41. Do ponto de vista da poluição, os limiares
tanto são factores decisivos da vida terrestre – os ares, as águas, as temperaturas, os solos agrícolas, a
saúde dos animais de criação – como da habitação dos humanos – os minerais que vão a esgotamento e
por isso pedem limiares de reciclagem em função das populações. O produtivismo
sem limites, que se revela na substituição do termo ‘produtividade’ do
pós-guerra, que zelava pela organização industrial mas tinha em conta a
dignidade de cidadãos de todos os que contribuíam para a ‘produção’, pela
actual ‘competitividade’ que assinala o acento na lei da guerra entre capitais,
dependente em sua cegueira da redução laboratorial dos efeitos de poluição,
esse produtivismo, surgido no Ocidente como se só a sua população contasse,
revela na globalização em que sociedades muito mais populosas do que as
atlânticas norte estão a ganhar o seu lugar no concerto da produção, mostra-se
claramente insustentável a todos os observadores que não sejam comparsas dos
ganhos excessivos. Do ponto de vista da crise económica e social, a evidência
maior é a desempregação, o desemprego crescente e o mau emprego, precário e
insegurizante, após cerca de três décadas de ganhos grandes de produtividade
com os robots e os computadores que, mercê duma forte ideologização da pretensa
‘ciência’ económica friedmaniana (friedmaníaca!), ignora as fragilidades
sociais resultantes do acento nos números referentes aos lucros, ao seu crescimento
incessante. A grande cegueira desta ideologia, de ordem narcísica em termos de
classes dirigentes, manifesta-se em chamarem ‘liberal’ ao que revela cada vez
mais os seus efeitos liberticidas sobre a maioria das populações, as chamadas
classes médias. Ao contrário deste egoísmo de gente em competição, o crescimento
só se faz com alteridade, ninguém cresce só nem em guerra sistemática.
42. A questão, como mostrei noutro texto, A
unificação dos saberes sob a
égide de Prigogine e da sua entropia positiva, é que toda a organização – quer
da anatomia biológica, quer das
sociedades humanas e suas unidades de habitação – é estruturalmente instável na
estabilidade que consegue, homeostasia no caso dos vivos, conjuntura no das sociedades, e é essa a razão de ser dos necessários limiares. Ou
seja, crescimento ilimitado é um contra-senso, um absurdo lógico. Porquê vigora
ele então? Provavelmente por responder ao facto de o ‘crescimento’ ser uma
motivação essencial dos humanos em sua adolescência e juventude, crescer é
tornar-se grande, adulto, capaz de se afirmar entre os vizinhos e colegas, de
ser melhor, melhor do que se é, melhor do que os outros. Crescer foi o grande
sonho de criança que permanece quando esta fica sepultada pela aprendizagem das
regras de luta para se afirmar adulto, vê-se por vezes numa pastelaria o homem
endurecido a escolher um bolo ou um gelado deixar espreitar no olhar uma
guloseima infantil que logo desaparece. O que significa que será neste
crescimento das gentes, dos machos sobretudo, incessante em cada nova geração,
que cresce o que alimenta a lei da guerra desde sempre, no ‘motor’ do duplo
laço de cada humano com a sua tribo.
Cabe à razão controlar a lei da guerra e suas crises
43. A
lei da guerra é estrutural às sociedades humanas, sucedâneo da lei da selva a
que os animais vivos estão sujeitos. A invenção da agricultura foi a maneira
das sociedades humanas saírem da selva e controlarem a respectiva lei; foi
também a maneira de suscitarem as cidades cuja organização implicou a busca de
controle da lei da guerra no seu seio, essa guerra que se fazia contra as
sociedades estrangeiras. Essa busca de controle nas cidades consolidou-se na
história ocidental no que se chamou razão. Na Grécia de Sólon e de
Clístenes, a democracia foi a invenção dum sistema politico de leis capaz de conter o peso maior
das grandes casas e a subalternização das casas mais pequenas, foi pois uma
razão de política económica para responder a uma situação equivalente à que
temos hoje, mutatis mutandis,
obviar à desigualdade social quando ela atinge uma dimensão que ameaça destruir
a própria organização social, a própria cidade. Foram questões de dimensão das
cidades gregas que as submeteram ao domínio guerreiro e politico de
estrangeiros, dos Macedónios aos Romanos e inviabilizaram a sua democracia no
ovo. Como nos Romanos, da república ao império, mas tendo eles forjado uma tradição
de ius que prevaleceu, quanto
pôde, às crises do comando imperial, até ceder a uma nova estrutura religiosa
romanizada a função de procurar controlar internamente a lei da guerra. O que
importa aqui, ignorante que sou do direito como cultura específica, é que o
direito é uma instituição de
razão que procura assegurar os limites razoáveis dos conflitos sociais de forma
a ser conseguida uma certa organização social, sobretudo nas cidades. Mas tal como
a democracia grega, o direito historicamente não foi mais além da ordem interna
das cidades e do controle dos seus conflitos, as guerras entre nações raramente
(creio) encontraram freios, religiosos ou diplomáticos, que as evitassem. É
aonde uma outra instituição de razão, que já encontrámos acima, conseguiu
também que algum controle da lei da guerra mais crua, a das pilhagens dos que
dispõem de armas, o mercado
propriamente dito enquanto racionalização das trocas. É conhecida a tese de
Karl Polanyi em 1944, no termo da 2ª grande guerra mundial do século XX. “No
século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização
ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. Com excepção da guerra da Crimeia
– acontecimento mais ou menos colonial – a Inglaterra, a França, a Prússia, a
Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão no total de 18
meses”, apesar da enorme quantidade de conflitos que grassaram ao longo do
século, que permaneceram “locais” [...] “O comércio doravante estava ligado
à paz. No passado, a organização
do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do
corsário, da caravana armada [...], dos mercadores com a sua espada, da burguesia
urbana armada, dos aventureiros e dos exploradores, dos plantadores e dos conquistadores,
dos caçadores de homens e dos traficantes de escravos, dos exércitos coloniais
das companhias. Tudo isso se esqueceu então. O comércio dependia doravante dum
sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra
geral. Ele exigia a paz e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p.
23, 36, subl. meu). Ora, esta paz das armas veio a confirmar-se em seguida até
hoje, descontando os 30 anos terríveis entre 1914 e 1945, a paz dura desde
1815. Os regimes democráticos
vieram também a impor-se como razão de controle dos conflitos políticos, mas
além dos Estados Unidos e da Inglaterra, houve nos tempos conturbados do século
XX muitas formas ditatoriais e mesmo totalitárias, a implantação de sistemas
eleitorais só conhecendo generalização nas últimas duas ou três dezenas de
anos, e mesmo assim muitas vezes de forma viciada, por inexistência de
instituições adequadas ao debate politico.
44. O fim da guerra das armas, além dos fenómenos
locais que continuam a pontuar a actualidade, não representa o fim da lei da
guerra, mas o seu deslocamento para o mundo da concorrência económica e
financeira, que se dá uma palavra guerreira como feitiço, digamos, a competitividade, de que estamos sofrendo os efeitos como crise.
Ora, esta palavra lembra um outro deslocamento importante da lei da guerra (que
não pode ser eliminada, sob pena de estagnação social), que pode ilustrar uma
maneira do que P. Viveret chamou “construir conflito como alternativa à
violência: o conflito permite a cada um dos protagonistas ser reconhecido, ter
um lugar no conjunto social, a pior das violências sendo a indiferença” (p.
96). Com efeito, pode dizer-se que a organização dos desportos, em que o
futebol avulta com um leque muito maior, é uma maneira de criar desafios, combates como espectáculo com regras e árbitros
que as controlam, fazendo ‘adversários’ do que nas guerras de bairros são
muitas vezes ‘inimigos’. O segredo destes desafios é as suas regras serem
suficientes para evitar violências excessivas (que por vezes acontecem, é
certo) mas sem impedirem jogos susceptíveis de serem emocionantes e de apaixonarem
em consequência numerosos espectadores. A importância que estes desportos
adquiriram em todo o lado, nomeadamente o futebol (e o basebol para os
americanos), as paixões que suscitam, fazem deles um deslocamento da lei da
guerra mas também, com a sua liturgia anual de campeonatos nacionais e
supranacionais, entre clubes e entre selecções, um deslocamento das práticas
religiosas, se se pode dizer sem chocar. É que justamente estes diversos
desportos atingem o entusiasmo infantil de praticantes e depois de aficionados,
toca amores antigos e dá-lhes destinos susceptíveis de se concretizarem ou não,
mas que sempre recomeçam e não fazem mal a ninguém, fora alguns excessos que
mais não fazem do que justificar a lei da guerra no seu âmago. É que esta, as
rivalidades que em todo o lado, escolas e empregos, bairros e profissões,
sempre se manifestam como estímulos ou revezes, a lei da guerra é irredutível e a organização dos desportos, apesar das lamas
que se arrastam em dopagens, corrupções e muitas mediocridades nos médias, é um
exemplo que poderá ser útil, mutatis mutandis, para outro tipo de desafios políticos e cívicos.
45. O desafio ecológico é o de controlar as
poluições e a desempregação acelerada. Assim como um desporto é primeiramente
uma actividade local que se dirige aos estímulos da gente nova, é a esse nível
que se pratica ou se apoia gente amiga, mas pode em seguida ter incidências a
níveis doutras cidades e países e seus campeonatos, também esta acção cívica se
revela antes de mais por deficiências de usos que se constatam localmente e
suscitam adesão a grupos que busquem precavê-las, sendo que em seguida é
possível criar ligações a outros grupos e estender a acção a níveis políticos
mais elevados, com possibilidade de alteração legislativa, e por aí fora.
Trata-se de tocar o ‘interesse’ dos activistas, o que corresponde ao seu ‘esse
inter’, ser com outros, a sua solidariedade que é também interesse próprio,
paixão que move[20]. Trata-se
de entrar num concerto já difundido em muitos lugares, alter-mundialistas de
todo o tipo, de ecoar ao que Derrida, que nunca foi marxista, preconizava já em
1993 numa leitura actualizando o “espírito” ou o “espectro” de Marx para os
tempos que vão correndo: nada mais nada menos do que uma Nova Internacional. Eis uma citação: “uma transformação profunda,
projectada sobre uma longa duração, do direito internacional, dos seus conceitos
e do seu campo de intervenção; da mesma maneira que o conceito dos direitos
humanos se determinou lentamente no curso dos séculos através de muitos
sismos sócio-políticos (trate-se do direito ao trabalho ou de direitos económicos,
dos direitos da mulher ou da criança, etc.), também o direito internacional
deverá espalhar e diversificar o seu campo até incluir nele, pelo menos se ele
deve ser consequente com a ideia de democracia e dos direitos humanos que proclama,
o campo económico e social mundial, para além da soberania dos Estados [...]. Uma “nova internacional”
procura-se através destas crises do direito internacional, ela denuncia já os
limites dum discurso sobre os direitos humanos que permanecesse inadequado, por
vezes hipócrita, em qualquer caso formal e inconsequente consigo mesmo enquanto
a lei do mercado, a “dívida exterior”, a desigualdade do desenvolvimento
tecno-científico, militar e económico mantiverem uma desigualdade efectiva tão
monstruosa como a que prevalece hoje, mais do que nunca, na história da humanidade.
Porque tem que se gritar, no momento em que alguns ousam neo-evangelizar em
nome do ideal duma democracia liberal que teria enfim chegado a si mesma como o
ideal da história humana: nunca a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome
e portanto a opressão económica afectaram tantos seres humanos, na história da
terra e da humanidade”[21].
46. Relendo o texto que escrevi em 1998, num
colóquio comemorativo dos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, O Marxismo pré-leninista, avaliação duma
herança[22] percebi melhor o que terá sido o ponto que deu
força teórica a Marx, ou pelo menos ânimo de se bater teoricamente: ele ganhou
a convicção de que o capitalismo enquanto tal iria inevitavelmente desembocar
na destruição da produção económica da sociedade. Ora a crise actual e os
remedeios que se lhe têm encontrado parece suscitar a mesma inquietação: a
especulação financeira, deixada a si mesma – como as direcções económicas e
politicas, e até académicas e científicas, acham que deve ser ou não sabem como
lhe podem obviar – está a empobrecer aceleradamente as economias mais frágeis e
a fragilizar as outras para as vir a empobrecer em seguida, sem que os próprios
que assim teorizam percebam que eles também irão pela água abaixo quando não
tiverem mais quem faça e mais quem compre.
Uma medida ecológica: continuar a baixar as horas semanais de trabalho
47. Parece ser uma medida de bom senso para
qualquer observador honesto, isto é, que não tenha por objectivo na vida
enriquecer. A invenção das máquinas tem o sentido primeiro óbvio de fazer o
trabalho delas substituir a energia muscular humana, juntamente com uma maior
abundância de produção devida aos seus melhores rendimentos, donde a diminuição
da dureza e da duração do trabalho que é uma boa parte do sinónimo de progresso
da nossa modernidade. Os robots e os computadores, como se disse (§ 31), vêm
continuar esta tendência progressiva que nas sociedades ocidentais
desindustrializadas se manifesta pela desempregação. Sem dúvida que a
consideração das complexas interdependências das economias planetárias deverá
permitir matizar esta constatação e não cabe à fenomenologia substituir-se às
análises científicas, não se cita aqui nenhum número que possa sugerir uma
competência que não existe por definição disciplinar. Mas do ponto de vista das
conjunturas, dos números do desemprego crescentes, das precariedades tomadas
como ‘lei económica’ sob o termo de ‘flexibilidade’ do mercado de trabalho, do
ponto de vista político e cívico, em que é inaceitável que se fale nestes termos
– mercado de trabalho – quando se trata de cidadãos que estão ligados a
empreendedores por contratos responsáveis de parte a parte, deste ponto de
vista pode-se pensar que a questão deve ser tratada conjunturalmente, sujeita
ao aleatório da criação de postos de trabalho ou da sua falência.
48. O termo conjuntura tem aqui um sentido, em termos sociais,
equivalente ao de homeostasia em biologia, o da estabilidade relativamente
instável, à maneira de Prigogine e da sua entropia social, produzida por exemplo
pela abertura duma unidade social de produção ou equivalente e diminuída por
uma falência ou um despedimento colectivo parcial para a evitar. Tem havido
casos, em vários lados, de, em vez desta medida, optar-se por uma diminuição do
tempo de trabalho e do salário correspondente para toda a gente evitando-se
pois os despedimentos e tanto pode vir a suceder que se possa recuperar,
passado algum tempo, a produção anterior à crise como esta manifestar-se como
durável em sua propagação a outras unidades sociais. Será uma situação
conjuntural que pedirá concertação entre sindicatos e patronatos, adequação da
legislação em conformidade, mas talvez não leis de máximos ou mínimos horários
de trabalho. Se a conjuntura se agravar em economias integradas, como as europeias,
ou mais além, vir-se-á então a situações que tenderão a estabilizar a
diminuição generalizada dos horários de trabalho, vir-se-á a justificar uma
legislação adequada à criação de situações de igualdade e ao desejado pleno
emprego.
49. Ora bem, esta tendência a trabalhar menos é
propícia também a um melhor controle das poluições locais e também à
manifestação de quanto é desnecessária muita produção de bugigangas de toda a
ordem, em contraste com a possibilidade de orientar o que se produz para melhorar
a qualidade de duração e de recuperação de automóveis e electrodomésticos, e de
haver assim retomada de oficinas mecânicas e outras, igualmente no ensino e na
saúde haverá melhores condições de funcionamento, quer pedagógico quer
paliativo. Na perspectiva de Gorz, este tempo maior de não emprego é
susceptível de abrir possibilidades novas de actividades compensadoras
humanamente, culturais e desportivas, cuidar de outros, reparações, e por aí
fora. A diminuição dos salários implicará a criação de maneiras locais de associações
dinâmicas, do tipo de bancos de
horas, moedas sociais, e outras maneiras de economias e poupanças solidárias,
como já se vai fazendo em muito lado[23].
Esta activação local terá por sua vez incidências políticas, já que activistas levarão
a orientar os partidos, as municipalidades e os governos a jogarem o jogo de
ultrapassagem da crise, a encontrarem, ao nível das instituições universais
como a ONU e a OIT, mecanismos de controle das finanças e das especulações e de
concertações relativas às alterações climáticas. É que, no fundo, foram coisas
assim que ao longo dos séculos XIX e XX, com a formação de mutualidades,
cooperativas, sindicatos e outras formas de solidariedade dinâmica,
acompanharam as duas primeiras fases da industrialização. Os movimentos de ONGs
e outros do altermundialismo são já em muitos lados activação destas
associações dinâmicas que ajudam a contornar as crises.
Nem só de pão vivem os humanos; make love, not war; sejam realistas,
façam o impossível
50. Esta esfera de autonomia faz-se a partir do
local, de viver melhor, e poderá assim chegar ao global, as populações
controlando democraticamente o Ge-stell, tendendo a uma civilização que merecerá o nome de liberalismo porque solidária. Ela tenderá a roubar ao sistema técnico e
financeiro do lucro uma parte de actividades que relevam da gratuidade, ‘fins’
e não ‘meios’, como as aprendizagens, uma parte do acompanhamento da velhice e
das doenças e reabilitações, as artes e o pensamento, os ginásios e as piscinas
municipais. Virá talvez um tempo em que as pessoas se admirarão de como estas
coisas boas eram objecto de negócio que só chegava a uns tantos privilegiados,
tal como nós nos admiramos de quando eram os pais de família que combinavam os
casamentos dos numerosos filhos que tinham.
[1] Ver No paradigma da Biologia falta o ser no mundo (debate com Teresa
Avelar e com António Damásio) in http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt
[5] Sem competência para seguir, como gostaria, as etapas principais da
evolução biológica e a maneira como a sua diversificação se fez consoante a
diversidade e alterações das cenas ecológicas e os excessos singulares
(eventuais) das hormonas esteroides.
[6] Da cena minúscula das células para a da circulação homeostática do sangue
que com elas estabelece o segundo nível de duplo laço anatómico e onde jogam,
entre outras, as hormonas esteróides.
[7] Um exemplo consiste na maneira como intestinos, pulmões e cérebro ganham as
superfícies de que necessitam para trocas além do volume de que dispõem
encurvando-se nos limites destes.
As plantas, exuberantes em ramos, folhas e frutos, ignoram esta racionalidade
anatómica
[8] Hipótese psicanalítica que Freud não desenvolveu mas que seduz o
fenomenólogo, não dependendo aqui da proposta sobre hormonas esteróides (§§
96-72) e que dificilmente poderá ser provada neurologicamente.
[10] Nesse sentido, desde que pareceu óbvio que pessoas do mesmo sexo pudessem
casar, tal como as de sexo diferente, a possibilidade de adopção é-lhes
inerente.
[11] Estas todavia parece que mostram uma razão antropológica para as guerras
prévia a esta dominação para mais poder económico : a de machos quererem
mostrar aos ‘outros’ estrangeiros que são os ‘melhores’ (como é hoje no desporto,
mas submetido a regras e arbitragem).
[12] É possível que o seu papel de pioneira lhe tenha vindo da sua insularidade,
nunca tendo sido atacada militarmente desde 1066, a sua rede comercial tendo
menos obstáculos feudais (guerreiros e alfandegários) do que no continente.
[13] Que conta com os vários custos das coisas produzidas (matérias primas,
máquinas, burocracia, salários e lucros, impostos).
[14] Aglietta. Não se trata aqui de história da economia, é claro, de um ensaio
de reflexão fenomenológica a ligar ao contexto do ensaio.
[15] A Bíblia hebraica proibia a cobrança de juros entre israelitas
(Deuteronómio 23,19-20), proibição que na Idade Média a Igreja Católica manteve
(até ao início do século XX) e Calvino levantou na Reforma. Os Judeus podiam
emprestar com juro aos não Judeus, a grande maioria, pelo que obtiveram um
lugar preferencial no sistema financeiro europeu.
[18] Corridas ao investimento sem sucesso, porque a especulação financeira
permite lucros de curto prazo maiores, suicidariamente a médio prazo: o castelo
de cartas especulativo desaba sem economia na sua base, como é eloquente a
solução financeira de recapitalização da banca após a falência dum dos maiores
e a correspondente austeridade e recessão económicas.
[19] Acrescentar palavras a uma frase ou a um texto, ou segmentos musicais a uma
partitura é fazer outra coisa, não é a primeira a ‘crescer’. Alguém diz que
ampliar uma fotografia é ela a crescer ?
[20] Viveret cita Hirshman (vf) que
cita A. Smith como tendo forjado este motivo em economia, para poder ter uma
‘paixão’ mensurável em termos monetários. Aqui, essa paixão desloca-se para o
cuidado com a Terra dos vivos e com a situação social dos humanos.
[22] 150 Anos
do Manifesto do Partido Comunista. O Manifesto e o seu Tempo, Colibri, 2000, pp. 89-106.