terça-feira, 27 de outubro de 2015

Rotina e Acontecimento


1. A rotina tem má fama, como repetição monótona para quem a faz, a suporta, ou até quem a paga, em contraste com a inovação, a mãe de todos os progressos, das surpresas boas, das boas razões de viver. E no entanto... andar é uma rotina das pernas, ora uma ora a outra a tomar a dianteira e a deixar a outra para trás, o avanço dependendo de ambas sem que nenhuma tenha primazia, a rotina da cozinha em que se faz uma sopa é necessária para não se demorar uma hora à espera que se acerte com o resultado de que esfomeados estão à espera, guiar um carro implica uma rotina de gestos de que muitas vezes nem se dá conta de que se os fez, o cirurgião que tem um caso complicado não salta rotinas nem o grande cozinheiro que prepara um menu de banquete real. A mais engraçada das rotinas nós nem damos por ela ainda que o quiséssemos, é como ao escrever isto, ou ao falar, as regras das frases se encadeiam umas nas outras para que elas saiam com o sentido que move a escrita ou a conversa, ainda que se trate de descobertas inéditas. Estes poucos exemplos que se podem multiplicar indefinidamente implicam todos, se se reparar bem, que as rotinas correspondem ao resultado conseguido satisfatoriamente de aprendizagens, algumas longas de experiências repetidas, de longas rotinas de especialistas pois, outras vindas desde os alvores da infância a toda a minha gente.
2. Tenho insistido muito, nestes meus textos, sobre o motivo da aprendizagem, sobre esta maneira espantosa de os usos da tribo se fazerem os usos de cada um dos seus indígenas, da passividade que recebe e se torna actividade que age, sem dois tempos nem oposição entre contrários. Ora bem, o que é que se aprende? Rotinas, exclusivamente! Porque se parte do não saber fazer, do não ser capaz, para se chegar ao jeito espontâneo e hábil de fazer em circunstâncias diversas: ‘dá cá, que eu sei como é que se faz’, diz quem sabe a rotina. E se se pensa em alguém que quer montar um negócio, fábrica, atelier, escola ou loja, ou o que seja, além das questões de financiamento e de local que enfrenta, só se pode dizer que ‘já está!’, quando uma rotina se instalou entre os vários membros da equipa. Ou julga-se que algum patrão paga salários para cada pessoa fazer o que lhe dá na real gana? Tu fazes isto, e tu encarregas-te daquilo, etc., o organigrama é o mapa das rotinas.
3. Quanto a acontecimentos, tanto podem ser bons como maus, coisas que correm bem quando as rotinas vão funcionando ou correm mal; o acontecimento resulta sempre de rotinas de outros que jogam com estas e dão um resultado que à partida é imprevisível, uma aposta que se ganha ou se perde. O que define acontecimento é que acontece a mais do que um, é a sua imprevisibilidade por efeitos múltiplos, responda ou não a planos que se fazem, pode ser um êxito inesperado ou uma catástrofe qualquer, de clima ou revolução social, doença de alguém decisivo, é sempre surpresa, boa ou má; em ‘surpresa’ há ‘presa’, quem a recebe fica atado momentaneamente na sua reacção ao que lhe vem (‘sur’ como ‘sobre’), ‘preso’ no que a-prendeu, se posso assim brincar com estas palavras. Diante do acontecimento, o que se aprendeu não nos serve imediatamente, há que improvisar.
4. Improvisar é difícil, como todos sabemos. Dar um salto diante dum buraco quando vamos a andar na rua pensando em qualquer assunto complicado, o leite a ferver que transborda para o fogão, reagir a uma má notícia sobre um familiar próximo ou a um insulto despropositado, querer dar a volta numa assembleia que foge em sentido contrário ao que se quer, sei lá. Não se aprende a improvisar, por definição quer de aprendizagem de rotinas, quer de acontecimento. Porque as rotinas que se aprenderam foram, não propriamente improvisadas, mas inventadas, o que é o mais difícil em tudo isto: as invenções são lentas, as mais quotidianas, que nem sabemos quem as inventou ou quando, foram se fazendo ao longo de muitas gerações, as receitas de cozinhas e as regras das falas, como Newton, esse tão grande inventor, dizia citando um medieval que “era um anão aos ombros de gigantes”. Mas as dele também pediram muito tempo de estudo e experimentação, com algumas fulgurações por vezes, como a célebre maçã que viu cair e lhe fez pensar que alguma força a tinha feito cair, a que veio a chamar força da gravidade e disse não saber imaginá-la, e ainda há 50 e tal anos Feynman dizia que os físicos não sabiam o que é uma força de atracção a distância. Inventar é moroso e raros o conseguem, releva do acontecimento e mete também muita sorte, aprender o que eles inventaram torna-se depois mais fácil para muitos, consoante aquilo de que se trata, uma rotina em qualquer caso, mas que pode ser muito complexa, como a do cirurgião.
5. A rotina é feita de pequenas repetições que quase não pedem atenção, que muitas vezes permitem que se vá conversando de outra coisa entretanto, a fazer a sopa ou a guiar um carro. Mas podem sempre oscilar para acontecimentos que a surpreendem e desarmam e pedem improviso; ‘oscilação’ aqui significa que não há oposição entre ambos, uma rotina é uma espécie de acontecimento de grau zero que pode sempre complicar-se e chocar com outras, gerando acontecimentos de graus fracos que podem também oscilar em certas circunstâncias para graus mais fortes. Uma espécie de escala de acontecimentos partirá das coisas que nos sucederam e contamos em casa ao jantar, depois as que contamos também aos amigos a quem telefonamos, enfim as que anos mais tarde ainda contamos; depois há as que vieram como breve notícia num jornal local, as que deram notícias em vários médias, depois em todos, e assim sucessivamente até às que entram na história, em notas de rodapé, depois um capítulo dum livro, até aos acontecimentos históricos que desafiam as escalas.
6. Este motivo de oscilação entre pequenas repetições e acontecimentos mais ou menos inesperados encontra-se também nas disciplinas científicas ditas ‘naturais’. Desde uma pedra que caia a um vulcão que entre em actividade e um sismo, sem contar com todos os movimentos dos vivos na terra, os acontecimentos da cena da gravidade são muito variáveis, assim como as transformações químicas que eles tornam possíveis. Na Biologia, o jogo das células dos variados órgãos dum animal implica as pequenas repetições que os biólogos estudam aos vários níveis da sua anatomia, das quais as mais acessíveis ao leigo são duas automáticas, a da circulação do sangue e a da respiração, esta aliás visando aquela, cujas oscilações homeostáticas entre níveis mínimos e máximos dependem de acontecimentos digestivos entre fome e saciedade; as dificuldades animais em encontrar presas ou o susto de fugir de ser presa de outro mais forte são acontecimentos que oscilam com essas rotinas celulares e anatómicas, enquanto que em nós um banquete de festa joga como acontecimento forte, indigestões ou bebedeiras podendo estragar-lhe o prazer gastronómico. A rotina respiratória mantém-se no sono e no coma, sabemos que alguém adormeceu pela regularidade que lhe ganha o respirar até à oscilação do bocejar matinal, enquanto que os acontecimentos tanto são a tosse e um ambiente irrespirável como um bom charuto ou perfume, o coração que bate no amor ou na entrada em cena, num exame, uma corrida, fuga ou combate... Mas a respiração intensa, que é em geral acontecimento, pode treinar-se – treinar é ganhar rotinas – num atleta, numa cantora de ópera, num trompetista, visando outros acontecimentos, vitórias, recordes, concertos. Mas treinar não ensina a acontecer numa cena entre vários, o acontecimento surpreende, corta o fôlego, faz bater o coração, acelera o sangue, suscita reacções rápidas e intensas sobre as pequenas repetições da rotina que ele revolve, sem que se saiba como.
7. Os usos quotidianos, em família – a higiene, a culinária, a lavagem da louça e da roupa, as refeições – como nos empregos as burocracias e as cadeias de montagem, trata-se de gestos repetitivos em que ‘não se passa nada’, de tarefas sempre a recomeçar, com pequenos acontecimentos da variabilidade dos dias e dos comparsas, cujos acontecimentos mais óbvios e esperados são as férias, de que os fins de semana são um anúncio em ponto pequeno; mas os acontecimentos sociais que dão mais azo à surpresa, são uma greve, uma revolução, um tremor de terra, uma epidemia, uma guerra e os seus desalojados que buscam refúgio. Usos são rotinas aprendidas que, por essa definição, resistem à mudança, às reformas, tanto mais quanto mais velho se for: porque são esses hábitos que outros querem fazer mudar que asseguram a nossa habilidade e o nosso talento.
8. Igualmente a linguagem é feita de repetições, como indica o teclado dos computadores onde estão as letras e outros sinais que se repetem constantemente, uns mais do que outros, é claro, nas palavras que dizemos e escrevemos, assim como estas se repetem, também umas mais do que outras, nas frases que delas são feitas, com regras fortes e outras mais subtis, mas que são condição de entendimento entre os que falam, ouvem, lêem, e ainda se repetem nos paradigmas de todo o tipo de corpus de textos, científicos, administrativos, jornalísticos, e por aí fora. A não consciência por quem fala e por quem ouve, escreve e lê, das múltiplas regras da língua – só se atenta nalgumas palavras e expressões que se repetirá se se quiser resumir o dito – é condição energética da fala e da escrita, essas regras agenceiam-se como que automaticamente na espontaneidade do falar e escrever. Qualquer discurso ou texto, sendo singular, releva do acontecimento, mas na banalidade dos dias jogam como repetições sem grande incidência acima do grau zero, ao contrário do que acontece quando o meu interlocutor me surpreende e o coração se me acelera, engasgo-me sem encontrar logo o que responder: são as pequenas repetições rotineiras que resistem se a rapidez duma resposta à altura não me é dada, não me acontece. Mas os acontecimentos aqui são sobretudo os textos literários, poesia e pensamento, os textos que se veneram e transmitem de geração em geração, o poema sendo uma solução do desafio essencial entre o seu pensamento e a sua música, o seu canto oral, indiscernível a diferença entre o que se busca e o que acontece.
9. Quanto às oscilações no domínio atómico e molecular da Física e Química, a questão é complicada, tratei dela nos §§ 34-41 do cap. 8 do meu Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (l’Harmattan, 2007), em torno dos electrões quânticos, disponíveis a movimentos vários, transformações químicas, hidro e termodinâmica, electricidade e magnetismo, óptica, as suas oscilações permitindo relacionar entre elas estas várias regiões de fenómenos (mas hei-de confessar que quinze anos mais tarde, fora do contexto de leituras que me permitiram essa escrita, tenho dificuldade em acompanhar os raciocínios). De qualquer forma, a oscilação nela mesma, em qualquer um dos domínios científicos que se considere, vida, sociedade, linguagem, é um fenómeno estritamente de ordem física: as pequenas repetições da rotina e do hábito são estádios de despesa energética mínima, de poupança de fadiga, evitando os acontecimentos que, ao contrário, cansam, desgastam, pedem recuperação da energia dispendida em demasia.
10. Os §§ 20-28 do cap. 7 e os citados acima do cap. 8 propõem uma (entre quatro) tese de ontologia desta fenomenologia de filosofia com ciências: todos os entes, materiais, vivos, humanos, linguísticos e outras estruturas sociais, são susceptíveis de oscilações entre rotina e acontecimento, tese que depende do motivo da produção de entropia de Ilya Prigogine, o químico belga de origem russa que foi Nobel em 1977 graças à sua descoberta das estruturas dissipativas, das estabilidades instáveis da bioquímica do metabolismo celular. Essa entropia positiva, que explica a entropia clássica de Clausius como sua degradação, é um fenómeno universal, donde a possibilidade duma tese ontológica que tenha em conta os fenómenos de energia (não esquecer que este termo releva da definição aristotélica de movimento entre dunamis e energeia, vem das origens da filosofia ocidental). Esses entes, que se movem / são movidos em seus estados entrópicos oscilantes, foram tratados nesse texto através da categoria derridiana de duplo laço, um deles formando estritamente um motor fortemente repetitivo, o outro formando um aparelho que assegura a regulação do movimento na cena de circulação, tendo sido esta que lhe deu as regras na sua própria anatomia de aparelho. É este aparelho regulador que é o lugar das oscilações entre rotinas de pouca energia dispendida e acontecimentos que sobrevêm mais ou menos inesperadamente doutros movimentos na circulação, como crise, que tanto pode ser de circunscrição limitada ao pequeno caso local como generalização que afecta uma zona maior da cena.
[no blogue filosofia com ciências, os 30 textos do dia 19/02/2008 expõem um resumo das principais propostas da obra citada]

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Se o problema é o desemprego...



1. Porque faltaram os empregos no Ocidente? Por duas razões: pela deslocação das indústrias que precisam de trabalhadores para as zonas emergentes de salários baixos, pela robotização e computadorização das indústrias e serviços escriturários que ficaram com os despedimentos em massa respectivos e baixa de admissões. A esta razão de organigramas acrescentou-se a da nova teoria económica fortemente nobelizada vinda de Friedman e utilizada por Reagan e Thatcher para fomentar ganhos de capitais susceptíveis de ultrapassar o que ele achava ser a ‘estagnação’ das economias após os 30 gloriosos anos, regidos à maneira de Keynes, entre patronato e sindicatos, entre democracias cristãs e sociais democratas (a sério, não à PSD).
2. Ora, se o problema é o desemprego, não há solução para o P. S., nem aliando-se à esquerda nem à direita, mas também não a há para a direita sozinha, ainda que tivesse a maioria absoluta. Porque é o emprego que decide os votos da dita classe média, a dos que vivem de salários médios ou fracos e a dos que aspiram a eles e não os têm. Como é que se criam empregos, ou se cresce economicamente, com a dívida monstruosa e a mão de ferro do Eurogrupo, dum grupo de contabilistas financeiros a quem as economias locais e as democracias são alheias? Os resultados eleitorais de 4 de outubro mostram, parece-me: 1) que o Bloco jogou como o Podemos ou Syriza que não temos porque o PCP não deixou outra hipótese (além da emigração das tais 4 centenas de milhar de emigrados), 2) que o PS com Costa se salvou do afundamento que porventura teria com o inseguro Seguro e 3) que a direita que tanto castigou quem trabalha ainda apareceu para muitos assalariados como o que poderá garantir segurança de emprego, porque está do lado do capital.
3. A solução possível é democraticamente impossível: não procurar redistribuir as mais valias económicas, o que o alto desemprego torna inviável, mas redistribuir os empregos, diminuindo os horários de trabalho. Não me parece que isso possa fazer-se por uma lei para toda a gente, à maneira das 35 horas semanais de Leonel Jospin, fora dum cenário de catástrofe que tornasse viável tal lei; mas será a sociedade civil – famílias e empresas – que deveria ir resolvendo as questões de forma local, com contribuição municipal e regional, de maneira a aliviar situações gritantes e governos impotentes.

domingo, 18 de outubro de 2015

Porque é que a Economia não é uma ciência exacta ?



1. Os economistas gabam-se de a ciência deles ser a ‘mais matemática’ das ciências sociais, mas enganam-se tantas vezes que não se percebe de que é que se gabam; pior, ultimamente revelam-se impotentes para obstarem às consequências terríveis duma especulação financeira que tomou os freios nos dentes e anda a comprar ao desbarato as economias produtivas mais frágeis, depois de as ter incentivado a desenvolverem-se com base no crédito fácil. Truques dignos duma qualquer fábula de La Fontaine, a inventar se não a há já. E vê-se a multidão de economistas de todo o gabarito a acharem que não há alternativa. Ciência exacta? Ainda que não exacta: que tipo de ciência?
2. Para vislumbrar uma resposta: o que é que faz da Física, Química e Bioquímica ciências exactas? Não é tanto a teoria interpretativa, que tem as suas falhas como qualquer saber de humanos, mas a sua dupla matematicidade: as equações  algébricas que se inventaram para dar conta das medidas de movimentos variados, deslocamentos, correntes eléctricas, transformações moleculares, etc. Ora essas medidas relevam da tradição geométrica que o século XVII algebrizou (curvas em coordenadas cartesianas correspondentes a equações) e têm a propriedade de os seus resultados, em unidades convencionadas, se destinarem a ocupar as variáveis dessas equações e a verificá-las (‘verdade’ duma ‘igualdade’), qualquer que seja a proximidade das interpretações teóricas delas, discutida frequentemente entre os cientistas. As medidas dependem de técnicas diversas (régua, relógio, balança, etc.), consoante a dimensão da experimentação laboratorial, e é usando por sua vez, de forma politécnica, as equações e aplicando as técnicas de medida que a engenharia constrói mecanismos capazes de movimentos concertados segunda as descobertas experimentais. Mas é sempre ao tipo de fenómeno singular, com experimentações científicas repetidas, que corresponde a equação física. Galileu mediu o tempo da bolinha a correr pelo plano inclinado com uma balança que pesava água, dizendo que “as diferenças e proporções” são as mesmas, ainda que com unidades de medida diferentes: a equação é sempre satisfeita com os diversos resultados de qualquer experimentação laboratorial concreta. Isto não existe em Economia.
3. Os fenómenos de cujo saber a Economia se ocupa são os do mercado, compras e vendas, segundo uma ‘língua’ de preços em unidades monetárias, oscilando conjunturalmente, língua que todos os agentes devem conhecer, já que é desses preços que se fazem os custos mais complexos dos orçamentos de cada unidade social, empresa ou família. Se se pergunta em que é que consiste o laboratório da Economia, percebe-se logo uma diferença importante: não há nada de geométrico nele nem de equações algébricas cujas variáveis correspondam a técnicas de mensuração. Essencialmente, o laboratório dos economistas, cuja manipulação lhes dá um saber que mais ninguém tem de outra forma qualquer, consiste nas estatísticas em seus arquivos, os principais sendo oficiais. Elas não podem ter em conta os fenómenos singulares do mercado, com é óbvio, cada compra e venda, cada custo e cada orçamento, e está aí uma primeira diferença em relação às ciências exactas: elas registam somas aritméticas de milhares desses fenómenos, contando com o ‘equivalente’ que a moeda é – outorgando preço – a qualquer mercadoria para não precisar de ter em conta as diferenças entre elas, adentro duma região de fenómenos estatisticamente seleccionados. Na estatística – interesse e limite dela –, os fenómenos económicos encontram-se misturados e quanto mais se subir em generalidade económica, maior é a mistura. E o que é que se sabe que releve de cientificidade? Movimentos sociais económicos, dados pelas diferenças entre estatísticas correspondentes a dois períodos de tempo, comparando as respectivas taxas: estas não têm dimensão, apenas cresceram ou diminuíram. Por definição de ciência social, o ‘singular’ desaparece, donde que nenhuma técnica exacta seja possível aos economistas, cujo saber é sempre de aproximações (nunca há 100%), sempre com uma forte componente de interpretação.
4. Ora, esta é necessariamente politica e a razão é simples. Se alguém preocupado com a solidariedade social pode pensar que o fenómeno crucial da Economia enquanto ciência seria tratar a maneira de decidir a partilha justa do que se ganha com a venda do que abastece o mercado de mercadorias entre os lucros dos que investem o capital na maquinaria e os salários dos que laboram com esta, deverá saber que não há nenhum critério rigoroso, aritmético ou científico para essa decisão: os seus critérios são sempre políticos, de concertação ou de luta social, com intervenção ou não do Estado. Ora, nas estatísticas, os lucros vêm nas rubricas financeiras relativas ao capital, enquanto que os salários não aparecem, vêm na contabilidade dos “custos sociais”, a dimensão politica essencial entre ambos não joga nas interpretações feitas com base nas estatísticas que os economistas fabricam e consultam, fica escondida nelas. O que se chama ‘neoliberalismo’ vive dessa trapaça.
Público, 22 de outubro de 2015 [ligeiramente modificado]

A fecundidade e o poder



       1. É o que há de mais extraordinário, que os vivos dêem vivos, os humanos humanos, o enigma maior do que os Gregos chamaram phusis. Foi a grande descoberta do Heidegger. Dar um bebé e deixá-lo ser, deixá-lo crescer o seu tempo vital, havendo nos mecanismos celulares compondo órgãos anatómicos o que é necessário à sua autonomia adulta, como se vê depois de os pais morrerem; mas já antes deixaram a casa dos pais, munidos duma anatomia de sobrevivência que se foi formando no ventre da mãe, no aleitamento depois do parto e por aí fora, no aprender a mexer na colher e a levar a papa à boca, a gatinhar e a fazer tem-tem, a andar e a dizer palavras ouvidas e depois frases, responder ‘não!’, aprender a saber do que ouve dizer que não viu, a ler mais tarde. É a tribo que é o lugar primacial deste milagre constante, desta possibilidade quase impossível, como mostra a diferença enorme dos resultados, todos singulares, com jeitos e faltas de jeito diferentes.
         (Sobre a "fecundidade espiritual", ver texto no blogue Questions au christianisme)
        2. O que se chama poder, enquanto substantivo, estrutura social, é uma limitação da fecundidade daqueles que lhe são sujeitos, que o sujeito é sempre a um poder que se sujeita, perdendo algumas das suas possibilidades, do verbo poder. Ora, a descoberta heideggeriana, de que o que dá ser deixa ser, permite perceber como é que esta questão do poder pode ser encarada, já que o crescimento das crianças implica o poder paterno e escolar que justamente evita possibilidades anarquistas dando disciplina às possibilidades como condição de ‘ser no mundo’, de que sejam, não apenas possibilidades do ‘ser’ humano mas também do ‘mundo’. Então o poder tribal, da família e da escola, deve ser doação para deixar ser a prazo: consoante aquilo que se trata de aprender assim os prazos da disciplina. A tabuada e as contas são para aprender só com disciplina, evitando a possibilidade de erros, enquanto que muitas aprendizagens são da ordem de se ganhar um estilo pessoal. Nos empregos haverá o mesmo tipo de maneiras de poder, as maneiras de fazer que têm a ver com erros graves para a unidade social e as múltiplas questões em que o estilo do trabalhador nas suas possibilidades ganhas no longo tempo do aprender é uma mais valia para a unidade que favorece quem exerce o poder com responsabilidade sobre o conjunto. Mas é claro que isto só pode ser assim se houver uma compreensão de quem detém o poder sobre os que lhe são sujeitos, uma inteligência das possibilidades de cada qual, e uma concertação justa da partilha dos frutos em termos de salários.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Verdade é relativa mas é a Lei da linguagem



Elíptica e relativa, a linguagem
A crença, base de todo o saber, pois se aprende de testemunhas
Ontoteologia da definição: saber além da crença, até ao universal, ao absoluto
Desconstruir a verdade ‘essencial’, desvelamento do texto singular; a psicanálise
Genealogia e conhecimento fenomenológico de possibilidades
A verdade como lei que fomenta a capacidade de dissimulação
O conhecimento dos movimentos, de Aristóteles à Fenomenologia gramatológica

Elíptica e relativa, a linguagem
1. Suponhamos uma pessoa numa sala que diz qualquer coisa: ‘pode ser o pão que está na mesa’. A quem ouvir a frase, destaca-se a presença do pão na mesa de tudo o resto do que há na sala, o pão veio na fala que o desvelou, diria Heidegger, trouxe-o à atenção daquele que ouviu e deixou-o ser nessa atenção. Mas simultaneamente todas as outras coisas da sala e da mesa, e até mesmo o tamanho do pão, se é de hoje ou já tem vários dias, ficam fora da atenção à presença, podendo uma nova fala trazer tal outra coisa. Qualquer fala tem esta característica de desvelar o que diz e deixar oculto, na penumbra, todo o não dito, na sala ou em outro lugar e momento; por finitude sua, ela escolhe da imensidade de coisas possíveis de dizer: a fala é elíptica, o que se chama ‘subjectividade’ radica-se na decisão do que fala em relação à amplitude do que pode dizer, qualquer que seja a consciência que se tem dessa decisão, que provavelmente só em ocasiões importantes se torna decisiva para quem fala e quem ouve. Há aqui uma relatividade elementar da linguagem, equivalente à das possibilidades dum carro em relação ao destino que o motorista lhe dá: é a relatividade de todos os que circulam numa cena de circulação.
2. Na suposição feita, o ouvinte pode verificar a asserção da frase, a sua ‘verdade’, olhando e até pegando no pão. Mas quando aquele que fala conta algo passado noutro lugar e momento, essa verificação não se pode fazer, trata-se dum testemunho, o ouvinte crê ou não no que ouve, já que o narrador pode ter visto o que diz ou apenas ouvido dizer, em qualquer dos casos pode enganar-se na memória que tem do que conta ou pode mentir deliberadamente, estas duas possibilidades relevando da sua posição ‘subjectiva’ de falante e multiplicam-se com as testemunhas da corrente do ‘ouvi dizer’.
3. Não se trata duma falha da linguagem em relação às suas possibilidades de dizer as coisas, o ser elíptica não é um defeito mas um limite que a torna possível (a escrita matemática, relativa embora a cada problema, não tem esse limite, ela que é exacta, mas tem outros, só serve para contas e medições, não para histórias e conversas). As falhas que haja são dos que falam, mas são uma positividade das línguas (ao contrário da matemática, onde são ‘erros’) já que permitem ficções, sonhos, invenções, conversas com controvérsias, amores e rivalidades. Tudo coisas relativas, é claro, mas, em termos políticos actuais, seguras – já que todos conhecem as regras das frases e as palavras comuns à tribo – e flexíveis, adequando-se às circunstâncias, como um carro à estrada e ao trânsito. Ou seja, a relatividade não empata com a maneira como a linguagem desvela as ‘coisas’, as traz nos seus nomes e verbos. Tanto quanto nos é possível saber, as línguas – segundo Saussure, imotivadas, diferentes segundo as tribos, sem determinação pela maneira ecológica de habitar – estão articuladas com os usos das unidades sociais a quem fornecem as receitas, o par receita / uso sendo essencial em toda a aprendizagem, o que implica que se aprende a falar com as coisas que as palavras dizem. A demonstração encontra-se nos quatro volumes das Mythologiques de Lévi-Strauss, cuja tese consistiu na descoberta de que a lógica dos mitos ameríndios, dos seus códigos narrativos (de histórias impossíveis) é a mesma dos seus usos, mormente culinários: o que chamou a “lógica das qualidades sensíveis”. A invenção das palavras é correlativa da invenção das técnicas e das regras sociais, dos usos e costumes, sem a separação ou oposição palavras / coisas própria à tradição filosófica ocidental. E é sem esta oposição que os garotos e as garotas aprendem a falar, como nós fizemos e continuamos a fazer, como atestam os dicionários que consultamos que dão como ‘significado’ das palavras uma descrição das coisas e gestos correspondentes, que é o que elas trazem às frases das falas e textos.

A crença, base de todo o saber, pois se aprende de testemunhas
4. Atenção: uso o termo ‘tribo’ no sentido da região social em que nascemos e aprendemos os primeiros usos e falas, hoje por regra a família e a escola infantil. Aprender a falar ouvindo outros que já sabem é assim entrar numa corrente de testemunhos dos falantes da tribo e adquirir, com a capacidade de falar por sua vez, a de verificar o que se diz e o que se ouve, a qual verificação vem depois do testemunho e da crença nele: é na base da crença no que ouvimos que falamos e esse processo continua a vida toda, já que estamos sempre a aprender e as possibilidades de verificação são a maior parte das vezes reduzidas, dado que a grande vantagem da linguagem é ela poder trazer-nos o que está fora do nosso alcance imediato, da nossa situação ‘aqui e agora’. Começa-se sempre por aprender por crença em testemunhos que reenviam a testemunhos ancestrais e não há maneira nenhuma de escapar a este assento do nosso saber, que, sendo relativo, é-o de todos os da mesma língua tribal. Enquanto língua dos usos e costumes, a sua relatividade adequa-se bem a eles, na sua reprodução quotidiana da tribo, torna possível a aprendizagem. O que põe questão não são as palavras das receitas que se fazem em gestos e rituais, mas a compreensão das coisas e dos humanos em suas qualidades, a abertura de possibilidades novas, lentas invenções que venham a gerar novos usos e costumes, a afinar os que há. Há palavras designando o que se não vê nem apalpa, mormente o que tem que se fazer e o que não se deve fazer, o que seja bem e o que se deve evitar por ser mal, deslocam-se palavras usuais para metáforas e outras figuras: todas as línguas têm já palavras dessas, polissemias literárias mais ou menos elaboradas, em mitos, contos, provérbios, canções, palavras que falam de coisas que vão além dos chamados cinco sentidos: o ‘sopro’ (pneuma) podendo dizer o ‘vento’ e a ‘respiração’, esta ligar-se à ‘vida’ dos vivos, dizer ‘aspirações’ dos humanos, mais tarde o ‘espírito’ como interioridade, próximo da ‘alma’.

Ontoteologia da definição: saber além da crença, até ao universal, ao absoluto
5. Estas palavras e outras regras das frases são suficientes aos saberes das tribos. Foi o aparecimento de textos escritos, das epopeias homéricas e outras poéticas gregas que veio colocar problemas de ‘verdades a ensinar’ aos Gregos do século V antes de Cristo, o século de Sócrates (morreu em 399). Esses textos, como também a teatralização das tragédias em Atenas, iam muito além das palavras designando coisas, pessoas, lugares e técnicas, já que faziam intervir crenças, motivações, questões éticas, que se tornaram debates em torno do que havia que ensinar aos jovens que começavam a poder ler esses textos e a questionar a partir deles. Foi aonde nasceu a filosofia, juntando-se à geometria e a outros saberes, dando origem a uma tradição do saber que consistiu na tentativa de ir além dos testemunhos e das crenças recebidas, cuja recusa ilustra o “só sei que nada sei” de Sócrates. A importância que este ganhou veio da sua invenção da operação de definição, destinada a ajudar os jovens com quem dialogava a definirem tal ou tal virtude de forma a serem capazes de a praticar interiorizando o ‘sentido definido’ a que chegassem, só que os textos em que Platão conta estas tentativas do mestre terminam sempre na dificuldade de o conseguirem, no impasse. Donde que ele seja levado a criar uma instituição de aprendizagem, uma escola, com o intuito de ajudar os jovens a conhecerem os eidê, as formas ideais definidas, do bem, do belo, do justo, das virtudes, eidê esses concebidos como eternos e imutáveis no céu divino, isto é, unívocos, univocamente verdadeiros, longe de todas as figuras poéticas e retóricas que essas palavras tinham nos textos. ‘Univocamente verdadeiras’ significa que a verdade das formas ideais era indiferente aos lugares e aos momentos, às circunstâncias (relativas) donde eram arrancadas e às opiniões de cada um, o que virá a ser dito ‘universal’ na tradição latina cristã, indiferente também às línguas e usos e costumes antropológicos, às tradições. A noção de Deus, misturando o Criador bíblico com o Demiurgo de Platão, o Primeiro Motor de Aristóteles, o Um de Plotino, adequou-se a este ‘universal’, caucionando a ‘verdade’ dos definidos filosóficos e depois também a dos dogmas teológicos.
6. Permita-se-me uma digressão sobre a noção de ‘universal’ (adjectivo), que não é grega, pela razão simples de que os gregos não se preocupavam com o que se passava com os povos bárbaros, o seu pensamento era ‘regional’ (Heidegger), kosmos sendo o mundo celeste, organizado e belo (donde ‘cosmético’). Costuma-se traduzir o kath’olon de Aristóteles por ‘universal’ quando de facto se trata nos seus textos de considerar o que quer que seja ‘segundo o todo’, o ‘geral’ duma tragédia, por exemplo, na Poética, cap. 17. O cristianismo é que propôs uma mensagem de salvação válida acima de todas as línguas e nações, universal assim, o que valeu que a Igreja fosse designada como ‘católica’, que então significou ‘universal’: foi a tradução desse ‘católico’ que deu nos autores cristãos do século V o termo universal como adjectivo (de que apenas haverá ocorrência em Quintilião, no sec. I). Escrevi sobre esta questão no e.book Da Natureza à Técnica, construção, desconstrução, reconstrução (capítulos 2 e 3).
7. Uma verdade universal, supra línguas e usos antropológicos, caucionada por um Deus, transcendente a esses usos antropológicos incluindo as línguas, atraindo para si as ‘almas’ inteligíveis, teve como consequência desligar o pensamento das línguas, por exemplo em Agostinho de Hipona – algo de inadmissível por Platão e por Aristóteles, em quem o pensamento é do logos, é discurso, como diz expressamente o Sofista. Assim se cristianizou a ontoteologia grega de forma radical: a noção de ‘verdade absoluta’ tem origem na teologia cristã donde passou à filosofia medieval e europeia. É típica a maneira como o Discurso do Método, após o Cogito, ergo sum, tem que passar pela existência e veracidade de Deus para poder chegar a ideias claras e distintas válidas para todos os outros (do que o ego do Cogito). Entre Kant, Hegel, Marx e Nietzsche se questionou este ‘absoluto’ e o seu Deus, assim como no último o seu ‘sujeito’: é flagrante a afirmação de que “o pensamento vem quando ele quer e não quando eu quero”, em que o ‘eu’ do sujeito é subordinado ao ‘pensamento’, como se se retomasse o dito do evangelho de João (cap. 4), “o vento sopra onde quer”, recusando que o ‘vento’ (pneuma) seja traduzido por ‘espírito’ e retornasse às línguas. Isto apesar das suas sintaxes, mal vistas pelo pensador alemão (logocentrismo!), apesar do seu ataque à razão socrática: “as redes da linguagem” em que ele crê o humano prisioneiro, as palavras que o filósofo tem que abandonar por outras suas (quem as entenderá? Wittgenstein demonstrou que não há língua privada, nem sequer para si, ver a tese do Manuel Lourenço). É que ele estava tentando a desconstrução da ‘verdade absoluta’, a proeminência da relação do som articulado à coisa sobre a diferença, em Sócrates intuía o prevaler da definição filosófica sobre a literatura e a sua polissemia textual.

Desconstruir a verdade ‘essencial’, desvelamento do texto singular; a psicanálise
8. A filosofia, assim como a teologia e as ciências, não podia exercer-se como pensamento fora de qualquer circunstância e sujeito sem as palavras ‘univocamente verdadeiras’ produzidas pela definição, arrancadas em grego ao contexto que as polissemizava, traduzidas em seguida em latim já como palavras do jargão escolar, sem curso fora dos textos gnosiológicos. Mas se Saussure tem razão no seu aforismo de que “na língua não há senão diferenças” entre sons e sua dupla articulação (diferenças de fonemas entre palavras vizinhas: certo e cento; diferenças de palavras na frase e nas outras frases do texto e do paradigma), há que concluir que as definições – sem cujo triunfo não haveria o Ocidente, para o melhor e o pior – não triunfaram de forma ‘absoluta’ como a definição preconizava, já que os contextos gnosiológicos se alteravam e as definições com eles, reabrindo-se o processo definitório, sem o quê não teria havido progresso do pensamento desde os Gregos até hoje, e logo de Platão para Aristóteles. Desconstruir significa – qualquer que seja a maneira como se procede, variável com os textos em leitura e as suas questões – indagar, em relação aos termos definidos, da fronteira deles com o contexto de escrita e depois de leitura em contextos historicamente diferentes, indagar da violência desse gesto de arrancar e de fixar um único sentido ‘verdadeiro’, restituir o contexto de escrita tanto quanto possível. É que justamente, quando se escreve ou fala, é no contexto que se desvela a verdade da coisa, donde vem, o que a sustenta como coisa que perdura, com quem/quê convive e por aí fora, tudo coisas ‘acidentais’ do ponto de vista da definição que busca a verdade de ‘essências’ de coisas da mesma espécie, tribo, língua... Esta verdade essencial, sem a busca da qual não teria havido o Ocidente que há, não se trata de ‘dizer mal da definição’, só se dá recobrindo a verdade singular das coisas antes de definidas. O desvelamento heideggeriano é o contraponto da definição socrática: por um lado, a espécie cavalar e por outro, tal cavalo desvelado no seu estilo peculiar.
falei da minha maneira de fazer leitura textual, semiótica dum só texto, de fazer desconstrução sem saber muito bem como é que Derrida a fazia (mas não creio que ninguém o imite, nem ele pretendia discípulos que o imitassem). As diferenças e as suas repetições, os códigos (Barthes, Lévi-Strauss), lidas para começar, como não pode deixar de ser, a partir da competência de falante do leitor, segundo as significações correntes das palavras, dicionários à mão, esses códigos permitem encontrar sentidos diferenciados para tais e tais palavras e expressões: é o jogo textual das diferenças em seus códigos que reproduz os ‘signifiés’ (Saussure) dessas palavras e expressões no texto, é o que a leitura busca restituir. Da significação corrente ao ‘signifié’ literário, o sentido nesse texto, nesse lugar do texto. E para quê se busca? Só se sabe quando se descobrir uma ilógica textual desses códigos, pondo em questão a ‘grelha’ que se foi construindo a partir dos dicionários, quando se chega a uma ‘contradição’ que abra para uma lógica escondida que se compreenderá ser o que dinamizou a escrita desse texto, a sua ‘verdade’, em suma. Foi assim que se me deram os textos do Evangelho de Marcos, da Poética de Aristóteles, do Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche, encontrando coisas neles que ninguém lera antes (para não falar no 4º capítulo do Discurso do Método de Descartes, em Linguagem e Filosofia, anexo).
9. A psicanálise faz algo de parecido, uma semiótica do texto falado e sonhado dum paciente, cuja memória é um texto compósito de sedimentações temporais variadas segundo a incidência da lei social (lei da guerra e lei da verdade) que retém sofrimentos desse processo, impede que sejam falados por via de associações de ideias relaxadas em relação a essas leis. Buscam-se ilógicas que se repitam estruturalmente em momentos de ‘crise’ – engana-se, cala-se, denega o que disse, chora, ri, sei lá!, matéria dos sonhos que se tenta desvendar – onde o paciente dá a ler ao psicanalista o que ele próprio não sabe e que lhe atolhe as relações. Aliás, a psicanálise percebeu que a verdade pesa em todos os que somos seus ‘sujeitos’ e que é por isso que gostamos de rir, para alijar um pouco a carga. Foi o que Freud mostrou no livro de 1905, O dito espirituoso nas suas relações com o inconsciente, descobrindo que a verdade é a lei da linguagem.
10. Voltando à questão da verdade, ela em geral não se põe nos usos quotidianos, cuja verdade é a da respectiva receita. Quanto às narrativas de acontecimentos, os casos de mentira implicam ou omitir algum troço da narrrativa ou trocá-lo, por engano ou por mentira deliberada, e há nas diversas especializações hermenêuticas, jurídicas e policiais, regras de aproximação lógica a eventuais contradições, ainda aí sendo a verdade dos usos que orienta essas regras, creio (bastaria indagar junto de romances policiais), se for verdade (cá está!) que os acontecimentos, improváveis por definição, são feitos de aglomerados de usos que concorrem para a improbabilidade devido ao choque provocado pela diversidade de actores. Escrevi sobre estas questões em A conversa, linguagem do quotidiano (Presença, 1991).

Genealogia e conhecimento fenomenológico de possibilidades
11. O problema da verdade filosófica (além da questão do recuo da noção ontoteológica de ‘absoluto’, com a morte de Deus e o questionamento da oposição sujeito / objecto) é o da validade da operação de definição, quando se põe em questão a intemporalidade da ‘essência’ definida, como uma verdade estática indiferente à contingência dos textos em que ela é reproduzida. A história sendo o continente da contingência, da relatividade, e toda a definição sendo histórica, como tudo na vida, a operação de genealogia (Nietzsche, Foucault) corresponde justamente à averiguação dessa história e a avaliá-la, não necessariamente para a negar, mas para a relativizar nessa historicidade. Mesmo um motivo teológico como “isto é o meu corpo” pode ser avaliado nas transformações que sofreu historicamente, como tentei em texto anterior.
12. É em relação às ciências que a questão é susceptível de reflexão, já que a noção de verdade é nelas capital e a sua relativização provoca mossas filosóficas (e fundamentalismos também). É frequente hoje haver cientistas que se contentam com a noção de ‘verdades provisórias’ que seriam no fundo erros adiados de verdades futuras, igualmente provisórias. Ora, se ‘verdade relativa’ me parece inerente ao motivo de verdade enquanto histórico, creio que ‘verdade provisória’ atinge a própria noção de ‘verdade’, a qual é indispensável à própria busca científica: ninguém se pode contentar – receber um prémio Nobel – com uma verdade provisória, à maneira dos recordes em atletismo. Nestes, á o atleta que é magnificado, mas nas descobertas de Newton é a verdade física que conta, relativamente à história, da filosofia e da física ocidental, bem como ao contexto dos seus laboratórios, das suas técnicas de medição. Os resultados experimentais preenchem as variáveis que ‘verificam’ a equação física respectiva e essa ‘veri’ficação continua válida, ainda que o discurso teórico conheça alterações, como a física newtoniana continua verdadeira para muitas especialidades de engenharia. O busillis desta questão está no determinismo que se acrescentou ao triunfo destas novas e emocionantes verdades no século XVIII, na noção de previsão que a verdade científica augurava. Se esta pode suceder em astronomia, ela é por regra limitada aos muros do laboratório (onde as equações se verificam), não fora deles. Assim como os engenheiros de automóveis não ‘prevêem’ os percursos deles mas apenas as suas possibilidades na cena do tráfego, igualmente a espécie biológica dos cavalos é conhecimento verdadeiro, não de cada cavalo ou égua, mas das suas possibilidades nas cenas ecológicas aonde circulam. Essa ‘espécie’ conhecida existe em cada cavalo e égua, mas estes excedem-na enquanto indivíduos concretos, suas genealogias e tratamentos recebidos. A noção de possibilidade é central em Ser e Tempo, sem que Heidegger se desse conta, ela fornece uma solução fenomenológica à questão da verdade científica.

A verdade como lei que fomenta a capacidade de dissimulação
13. Não há pois verdades absolutas, mas ninguém falaria ou escreveria se não estivesse certo do que diz ou escreve, ou pelo menos da sua aproximação, que as línguas abundam em termos para dizer a incerteza, a verdade difícil entre o saber e a ignorância: afirmar, declarar, pensar, crer, duvidar, confiar, achar, imaginar e por aí fora, com os seus negativos. Elíptica, e portanto podendo dizer alguma coisa e nunca tudo, a grande potência da linguagem é dizer o que está longe e passado ou por vir, sujeita ao testemunho, como se disse, desde o início da sua aprendizagem: é ela que, submetida à lei da verdade, estrutura o sujeito enquanto falante consciente de si no mundo, consciente também de que há mais mundo além do que se vê e em que se mexe em cada situação. A lei exerce-se desde que a aprendizagem enraíza como fala da criança, através das correcções dos seus erros e atrapalhações, elogiada ou castigada consoante, o que implica a criação de distância entre si e o mundo, fugir ao risco de se ser tido por idiota (fechado no seu idion, em si ‘próprio’, sem mundo) ou por louco: é esta distância que a verdade fomenta – lei da linguagem – que virá a ser cultivada como foro de pensamento pessoal, intimidade mais ou menos secreta de si a si. Ora, esta ‘distância’ é a capacidade de dissimulação, de não dizer o que vem à cabeça, é o reverso do ganho de pertinência, competência, pensamento, liberdade, sabendo que não se pode confiar sempre nos outros, neste ou naquele, que há que fomentar cumplicidades e rivalidades. A fala dirige-se a outrem, arranca o falante ao seu contexto de situação (que é deixado como ‘esquecido’) para o colocar no contexto daquilo que está a dizer, algo de inédito que o torna senhor único do que diz, fala ‘só por si’, ab-solus, absoluto, só ele sabe o que está a dizer, porquê e para quê (tanto quanto, já que se aprende também a ganhar distância em relação ao que se diz, a qualidade de cada um é por aí, havendo segredos, ‘verdades sagradas’). É aonde se ganham convicções, certezas verdadeiras que abrem possibilidades, permitem, entre outras coisas, inventar novas ‘verdades’. Tal como a habilidade de fazer coisas com as nossas mãos, também esta habilidade de falar num estilo pessoal a língua da nossa tribo e alargá-la, faz parte do nosso enigma, enquanto humanos e enquanto tal humano singular.
14. Compreende-se assim que a linguagem, que nos dá contextos e nos arranca a eles, nos solidariza com outrem da mesma língua, seja o lugar da desconstrução: é o que significa a fórmula de Derrida que muito escandalizou ao dizer “não há fora de texto”.
(http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/07/o-que-e-que-ha-fora-do-texto-nada-tudo.html) O grande espanto, grande sintoma também da ‘verdade’ desta gramatologia, é o silêncio da tradição filosófica sobre a linguagem: os filósofos espantaram-se sobre a espontaneidade do pensamento dos (grandes) pensadores, sem insistirem no que ela pressupunha de aprendizagem, no que lhe vinha dos outros.

O conhecimento dos movimentos, de Aristóteles à Fenomenologia gramatológica
15. Resumindo e concluindo (para dizer que não sou derridiano, mas nada do que faço seria possível sem ele). No que diz respeito à questão do conhecimento filosófico e da contribuição das ciências para ele (e não às questões estéticas, éticas e outras), a Verdade ocidental fez-se como conhecimento do movimento, desde a Physica de Aristóteles, que deixou de fora os “acidentes” singulares de cada coisa, dadas aos ‘sentidos’ no quotidiano delas, até à Fenomenologia gramatológica (heideggerridiana) que delas conhece as possibilidades de movimentos, dos movimentos que lhes podem acontecer com outrem. O Nietzsche de Deleuze dizia que as forças que movem os vivos vão até ao fim que elas podem. Eu, que também não sou nietzschiano, acho que o que nos maravilha nas grandes biografias são aquelas e aqueles que vão além do que podem, que lhes vem justamente de encontros com outrem, assinalado esse ‘mais do que se pode’ quando se invocam as graças dos deuses, a sorte que os favoreceu.