quarta-feira, 22 de abril de 2015

Diminuir a TSU, ou aumentá-la?




1. Aqui vai uma reflexão sobre política económica por quem não é de economia, que por isso não usa números. Leio Bagão Félix que explica o que é “aumento de produtividade, ou seja, do [numerador] do rácio que define os custos unitários de trabalho, ou através da redução do custo energético” (Público 18 / 04, corrijo ”denominador”, que é um lapso). Pretendo propor uma reflexão sobre a existência destes dois factores da produtividade, antagónicos desde o início da industrialização: cada máquina introduzida, claro claríssimo com robots e computadores, diminui o número de trabalhadores que são precisos, e é provável que esteja aí, na maquinaria electrónica, a razão mais forte para o crescimento do desemprego estrutural nas últimas 3 décadas, que não o conjuntural da crise financeira que nos desvastou a economia. Se for assim, é provável que o progresso tecnológico de tipo electrónico galopante desde o neo-liberalismo à Friedman, Tatcher e Reagan, venha a  criar simultaneamente crescimento económico e a expulsar trabalhadores dos postos em que a máquina intervém, já que é isso desde o princípio o progresso tecnológico, o aumento da produtividade e o planeta está exibindo os seus limites, o que obrigará a partilhar os horários de trabalho dos postos que sejam afectados por essa melhoria electrónica, o que parece contrariar a expectativa de crescimento do emprego com o progresso tecnológico. Talvez se posa testar esta tese estudando as correlações entre custos energéticos e salários, em ciclos e zonas de produção adequados.
2. Mas o ponto actual é outro e tem a ver com a questão da Segurança social e da contribuição do capital, de que fala o PS. Que se encontre uma maneira de relacionar os dois factores do aumento da produtividade de que falava Bagão Félix, homem didáctico, inteligente e sabedor daquilo de que fala, e se calcule a TSU em função de quocientes desses dois factores da produtividade, da quantidade de energia gasta (índice da maquinaria usada) e dos salários que são precisos para o funcionamento dela. Este factor, o que se usa hoje em dia, justifica directamente a TSU, enquanto que o que tem a ver com a maquinaria, a introduzir para compensar a baixa do primeiro por a máquina gerar desemprego, justificar-se-ia com a função social da propriedade das empresas mas também com a correlação máquina / desemprego e despesa social. O aumento estrutural deste tem como consequência a diminuição do tempo de trabalho o que se deve generalizar para toda a gente segundo os sectores respectivos. Com efeito, isso tem sucedido ao longo da história da industrialização devido às lutas sindicais, porque as máquinas resultam da epopeia das descobertas científicas, que foi a condição das invenções tecnológicas, resultam das ciências serem o Bem da humanidade, não apenas dos proprietários, mas de todos os cidadãos. Delas mesmas, as ciências não proporcionam ‘propriedade intelectual’, patentes rentáveis, como as invenções técnicas dos engenheiros com engenho, não têm proveito próprio, nem sequer a fama na maioria dos casos, são altruístas por estrutura. Como bem sabia o engenheiro que virou cientista Mariano Gago, que tive o gosto de ter como aluno de liceu in illo tempore, e de seguir o seu notável percurso de fomentador do desenvolvimento das instituições científicas em Portugal.
3. O problema é que  em vez de a diminuir, vai ser preciso aumentar a TSU! Henrique Neto já pôs o dedo na ferida: as empresas com poucos trabalhadores e capital intensivo, isto é, com a produção devida sobretudo, ou quase só, a máquinas e robots, deverão aumentar a TSU. Ele é empresário socialista, espécie mui rara, merece ser ouvido.

P. S. Ana Vicente era gente. Feministas católicas é uma espécie muito rara, são dois termos antagónicos, católicas tendem ao anti-feminismo e feministas ao anti-catolicismo.

Os neurologistas não aprendem uns com os outros



Faz confusão ao filósofo – que de laboratórios não sabe nada e só atenta na parte teórica dos paradigmas que pensa as experiências e onde a filosofia está subrepticiamente – ver que os neurologistas acham que o cérebro é um armazém de memórias, umas aqui outras ali em regiões especializadas (Público, de 14/04). A especificidade dos neurónios enquanto células, o que os torna diferentes dos outros 200 tipos de células dos vertebrados, é afectarem-se mutuamente entre eles e serem afectados peloo exterior, criando uma rede de sinapses, cada neurónio com centenas ou milhares de ligações a outros. Essa rede é memória, o cérebro é inteiramente memória do que se aprendeu. É o que permite deduzir uma tríade de livros: E. Kandel (À la recherche de la mémoire) mostrou com os seus vermes do mar como uma pancada forte cria uma sinapse, esta vem pois duma aprendizagem; J.-P. Changeux (O homem neuronal) mostrara como essas sinapses formam grafos de aprendizagem, A. Damásio (O livro da consciência) como os neurónios são o que o humano, qualquer animal, sabe de si, a sua mente, consciência, com acesso só do próprio, na sua internalidade, por assim dizer, a que a maquinaria laboratorial não tem acesso. (No admirável livro de Kandel, ele conta como esteve um ano em Paris e fala de Changeux como um excelente amigo e excelente neurólogo, mas não lhe passa pela cabeça que a sua grande descoberta possa aliar-se de forma muito fecunda com a do amigo!) O que torna claro que os neurólogos ganhariam em saber o que é aprender: por exemplo, a guiar automóvel, a criar grafos que irão dos olhos, ouvidos e tactos, atravessam o duplo cérebro, o antigo cortex das emoções e o novo cortex das estratégias (não dois cérebros, mas um duplo, ensinava Changeux), e vão até aos músculos que geram os gestos do volante e dos pedais. E sempre que se guia, esses grafos reforçam-se como habilidade espontânea. Toda a nossa vida de mais ou menos habilidosos é aprender usos muito variados, de mexer nisto e naquilo, cozinhar ou fazer cadeiras, falar e ler, e por aí fora, esses usos sociais devem corresponder a grafos bem complexos em que toda a rede neuronal é activada do que recebe desse social, da sua tribo (doméstica, escolar, emprego, convivências...). O cérebro é essa rede, um órgão biológico e social, em que certas zonas estão activadas (consciência) e a maior parte do resto se apaga (memória) até ser precisa e ‘vir’ (‘souvenir’, diz-se em francês) ajudar à consciência. Este conjunto de memória e consciência, a esmagadora maioria imersa, é o nosso saber, tanto do nosso corpo como do mundo por onde singramos desde o ventre materno. Dito isto, é certo que não deve ser nada fácil imaginar hipóteses de experimentações laboratoriais adequadas, vê-se com Kandel, tão clara a leitura na época dos vermes do mar e tão perdido quando chegou aos ratinhos.

terça-feira, 14 de abril de 2015

O que é fazer / pensar, à Heideggerrida



O que é o ‘fazer’ um uso que se aprendeu?
Sem oposição entre activo e passivo
Pensamento e palavras
O pensamento segundo Nancy


O que é o ‘fazer’ um uso que se aprendeu?
1. Se, com uma faca na mão, descasco uma batata para fazer uma sopa, mão e faca são activas, enquanto que a batata sofre (em francês subit) o perder a casca, mas há nessa actividade a passividade de ter aprendido e muitas vezes repetido o gesto, o que se reflecte na habilidade que ele manifesta; mas esse gesto insere-se numa sequência – no caso, a de fazer tal sopa – que supõe uma receita aprendida e repetida, com retenções e diferimentos (como descascar batatas), cada gesto, como laço simples entre  a mão-faca e a batata, sendo enlaçado pela sequência-receita da sopa, a qual por sua vez desdobra outro duplo laço com os fazeres dos outros pratos do jantar, este mais largo duplo laço pertencendo ao paradigma da unidade social, recebido ancestralmente por aprendizagem. O que esta fez foi tornar alguém que come recebendo a comida de outros em alguém capaz de colaborar nesse fazer a comida de todos.
2. A receita releva da linguagem, é o respectivo pensamento, é dita e mostrada por outrem e aprende-se ouvindo e vendo fazer. Em termos neuronais, estes dizeres ouvidos e fazeres vistos de outros – literalmente antepassados assim, isto é, que passaram (voz activa do verbo ‘passar’, passivo este?) – gravam-se cerebralmente em sinapses (que abrem para serem repetidas futuras passagens); esta passividade só será suficiente sem a actividade que esses grafos dão? isto é, há uma diferença temporal, primeiro receber depois fazer, ou o passivo (grafado) é já activo? Indecidível, já que grafar é uma passividade (um ‘sofrer’, subir) que activa (criação duma sinapse que repete a gravação) como resposta à actividade do outro que se grava. Na experimentação de E. Kandel com os seus vermes de mar, sendo um golpe brusco que provoca a criação duma sinapse (“Memória em fenomenologia neurológica”, neste blogue), parece óbvio que tal diferença temporal praticamente não existe, ao invés do que será aprender a falar uma língua, por exemplo, bebé ou estrangeiro. O exemplo da batata e da sopa tem a vantagem de deixar testemunho fenomenológico, susceptível de ser avaliado (bem descascada, boa sopa ou nem por isso) e de enlaçar dizer e fazer, receita e uso, por um lado, mas também de esse laço se ligar aos laços biológicos que nos fazem buscar comer todos os dias.
3. Estes duplos laços são sempre espácio-temporais, se dizer se pode, ‘horizontais’ – em seus reter e diferir incessantes – e complexos, da complexidade de que se fazem os saberes adquiridos a pouco e pouco e da habilidade respectiva, em contraste com a concepção ontoteológica que opõe o cozinheiro à batata, a cada uma delas, depois à sopa em cada um dos seus gestos, que opõe o ‘sujeito’ ao ‘objecto’ e naquele, o pensamento ao fazer, à faca e à batata, que esquece assim como tudo isto se reproduz de há muitos séculos a esta parte através das gerações, que ensinam às que vêm e crescem. Pressupõe-se a ‘verticalidade’ dum Criador (‘teo’) do ‘sujeito’ e sua alma (‘logos’) e do ‘objecto’ batatas (‘onto’), uma doação dividida que, ao prescindir do divino desde Kant, já nem sabe da doação – o humanismo como autonomia, afirmação activa conquistada contra ela, esquecendo-a –, ignora que esta fenomenologia da sopa não faz mais do que continuar uma fenomenologia da evolução dos mamíferos, duma lei social que busca dominar a lei da selva e evitar a lei da guerra: é isso o paradigma, parte estrutural do primeiro estádio da razão social-humana, uma cooperação que se manifesta na sopa comida por todos os indígenas da unidade social.

Sem oposição entre activo e passivo
4. A oposição ontoteológica entre o activo e o passivo, este subordinado àquele, como a mulher ao homem por exemplo tradicional, a criança ao adulto, o trabalhador manual ao seu patrão, não só ignora como a mulher é fortemente activa sem que o homem suposto activo possa prescindir dela, como a criança é fortemente activa no seu aprendizado que a tornará adulta, como o trabalhador mete activamente a mão ao machado e ao arado, como denega a passividade do activo homem, adulto e patrão, deslocando-a para a que ele tem face ao Criador, com a vantagem óbvia de esse dom ser feito, como ‘graça’, a ele pessoalmente, em sua alma, saber e força. É que ao homem compete a razão do paradigma e ele sabe que este lhe escapa por todos os lados, os da fecundidade das plantas cultivadas e dos rebanhos, os da habilidade de cada um (ele próprio incluído, ele o activo) e os da não passividade (dos outros em face dele), da conflitualidade sempre possível, como resposta, de todos os que pertencem ao paradigma.
5. Esta oposição esquece (Heidegger) que a habilidade foi aprendida, recebida, parece agora só activa, esquece que a sua espontaneidade mais não é do que deixar vir o que se aprendeu já sem o lento esforço activo e atento que lhe foi temporalmente necessário, deixar vir a passividade na actividade, o que justamente torna esta fecunda, a fecundidade sendo a capacidade de melhorar o que se recebeu até ao ponto duma eventual invenção que transforme o uso em questão, altere num dado ponto a receita ou lhe sobreponha outra, altere o paradigma. É certo porém que as alterações paradigmáticas, em sociedades já não-autárcitas mas de especialização, vêm de fora.

Pensamento e palavras
6. Se o fazer usual, que outro não há – os acontecimentos são encontros entre vários fazeres que se obrigam a mutuamente se adequarem, mas raramente inventam usos novos –, for assim passivo activo, espontânea habilidade, deixar vir o que se aprendeu quase como quem já nem repara, pode-se pensar o pensamento como um fazer usual sobre escrita pensada, que se aprendeu ou se lê, quer em textos, quer em inscrições orais como são os provérbios em sociedades iletradas, quer ainda em resposta ao que se ouve. Nestes casos, pode parecer que os acontecimentos, que geram novos pensamentos, sucederão mais facilmente. E há um sentido em que isso frequentemente acontece, sempre que se inventa a pólvora na nossa aprendizagem, descobrimos – auto-didactismo que se infiltra em escolaridades e outras leituras – luminosamente o que já antes outros descobriram mas nós ainda não sabíamos. Mas a noção de haver maior frequência no mundo do pensar do que no do fazer releva da concepção ontoteológica do pensar, do logocentrismo que privilegia a espontaneidade do falar ou a ‘inspiração’ do escrever, o papel do pensador ou escritor sobre o jogo ‘horizontal’ da língua em que se pensa, que se aprendeu mas tal aprendizagem necessariamente se esqueceu, inevitável esquecimento devido justamente à espontaneidade hábil que se foi ganhando em falar, pensar, discutir, fazer. É a nossa própria auto-avaliação, misto de narcisismo e de auto-confiança sem o qual não se avança nos percursos e relações com outros, mesmo que sem vaidade, é a nossa habilidade de falar e de pensar que esquece que as palavras são regras: sem esse esquecimento não falaríamos.
7. As regras das palavras são pelo menos de três níveis: as dos fonemas / letras que as constituem (diferença entre ‘claro’ e ‘caro’), as das frases em que intervêm (morfologia, mormente dos verbos, sintaxe e semântica), as dos códigos dos paradigmas textuais. São essas regras e diferenças entre elas que permitem que nos entendamos na mesma língua e aí está um primeiro ponto: os erros, que os outros nos corrigem e que implicam que não podemos falar à toa, sem desconsideração social. Entre as regras da sintaxe das frases e a semântica das palavras há uma relação forte e muitas vezes subtil que se impõe ainda que não se dê por isso, ainda que não se possa dar por isso. Porque quando falamos ou pensamos, fazemo-lo sempre habilmente, isto é rapidamente, e as tais regras vêm com a espontaneidade de não se poder dar por elas, de apenas haver atenção, escolha, ao que os escolásticos chamavam categoremas (substantivos, adjectivos, verbos e advérbios), os sincategoremas (preposições, artigos, conjunções, sufixos das formas morfológicas, plurais, género, etc) vindo pré-fabricados nas frases, se dizer se pode.
8. Dois exemplos importantes que resultam disto. Um deles tem a ver com a polissemia dos tais categoremas, que não são apenas as figuras de tipo metafórico, mas também cruzamentos entre tipos diferentes de textos. Maurice Gross analisou as polissemias estruturais dos 3000 verbos franceses mais frequentes, ao mostrar os que se repetiam em quadros sintáctico-semânticos diferentes. Ora bem, a invenção grega da definição foi justamente uma decisão anti-polissémica e o seu alcance manifesta-se nomeadamente na expulsão dos verbos dos textos gnosiológicos (filosofia, lógica, ciências), guardando apenas a cópula (é / são) ou formas equivalentes de alguns verbos, o que significa retirar todas as morfologias verbais (tempo, modo, pessoa, género, voz), além dos deícticos (que referem à situação de fala: interlocutores e seu contexto). Foi uma quase matematização da língua, como se as palavras definidas deixassem de ter fonemas. O outro exemplo é oposto a este, é o da poesia, cuja especificidade advém da importância igual que têm os níveis do § 7, o primeiro, o dos fonemas, sendo decisivo no ritmo e nas sonoridades, por assim dizer na musicalidade das frases, enquanto que os outros dois são decisivos do pensamento do poema, nomeadamente buscando-se multiplicar os jogos polissémicos que a filosofia e a lógica repudiam. Ora, sendo as regras da língua, quer as que dizem respeito aos fonemas das palavras, quer as dos sincategoremas, pré-fabricadas, não conscientes, o acordo entre musicalidade e pensamento dum poema só pode resultar dum difícil trabalho de experimentação, já que fonemas e frases são indissociáveis e inconciliáveis: um poema é sempre um acontecimento trabalhado, alguma habilidade vinda com a experiência e algum talento podendo gerar a espontaneidade que se presta à noção de ‘inspiração’. Parece óbvio que a poesia contemporânea, paralela à pintura não figurativa, abriu um caminho de subversão das regras das frases e por vezes dos fonemas também, como Mia Couto.
9. As palavras fazem parte da história duma língua, mas não apenas da sua história linguística, também o que aqui se buscou, da história do pensamento nessa língua, na sua literatura como na sua filosofia e textos de saber, de receitas, narrativas, provérbios e por aí fora. E como as palavras são iguais para todos dentro da mesma condição social (de língua), se impõem a todos como condição de se  entenderem, elas são a matéria prima do pensamento, e como qualquer matéria prima, o que obsta, o objecto que faz objecção, a dificuldade oferecida pela aprendizagem na sua faceta de passividade ao pensamento como faceta de actividade, que tem que deixar vir as frases com os categoremas escolhidos e a respectiva pré-fabricação. Nunca nos admiraremos suficientemente desta habilidade que temos de falar e de, apesar dela, ser tão difícil pensar bem.

O pensamento segundo Nancy
10. Com este texto a meio caminho, li o livro do francês Jean-Luc Nancy e do alemão Daniel Tyradellis, filósofos conversando em Berlim, Qu’appelons-nous penser?[1] e gostaria de citar algumas passagens de Nancy, numa perspectiva diferente desta que aqui se expôs, à minha maneira de conjugar as minhas leituras de Heidegger e de Derrida, leituras infieis que se quereriam fieis a ambos. Um dos pontos é o do comum do sentido: “o sentido não pode ser senão comum, e não há o comum senão no elemento do sentido. [...] o sentido, somos nós” (p. 73). Antes, Nancy tinha dito: “Na sua época, Heidegger introduziu pela primeira vez em toda a história da filosofia a palavra Mitsein (ser com). E o facto de que a palavra Mitsein entre assim em cena, é igualmente um acontecimento importante. Creio verdadeiramente que não havia uma palavra assim desde Thales. Dito de outra maneira, isso nunca tinha sido uma questão. Interrogava-se sobre a maneira de construir, de fundar a política. [...] Heidegger diz que não se deve tomar o Mitsein como um categorial, mas como um existencial [...] o que significa que é uma parte real e essencial do Dasein enquanto tal, portanto da existência enquanto tal. Existir quer dizer co-existir. [...] E quando se chega à História [...] aprende-se enfim que o Mitsein realiza-se como comunidade” (p. 48-9).
11. Um outro ponto tem a ver com a psicanálise, em que apenas se interessou com “o que, da psicanálise, foi o frayage (o romper) duma nova via de pensamento” (p. 56). Com Spinoza e Deleuze contra Lacan, Jean-Luc Nancy pensa o desejo não como cumular algo que falta (um manque), antes como “devir mais ser” (être davantage) (p. 53), uma força que quer ir além dela própria, diria eu. Segundo Hegel, “o saber absoluto é o transbordar do saber sobre si próprio. Freud chamou a isto ‘inconsciente’, uma palavra muito incómoda porque faz pensar numa outra camada da ‘consciência quando ele designa a própria experiência da ‘consciência’, ou do être-soi (‘ser-se a si’). A experiência de ser animado por ‘pulsões’ que são a nossa própria ‘alma’ e que ‘pulsionam’ a... (a tudo, a nada, a si mesmo como ao outro, à identidade como à diferença, enfim ao ‘sentido’ em todos os sentidos). Isto é um grande acontecimento na história da nossa ‘consciência de saber’ – na história da ciência, da filosofia, da arte” (p. 57). “ ‘Pensar’ é um nome para a pulsão à prova de si mesma, para a pulsão pesando (‘pensare / pesare’) sobre si, ou ainda ‘pensar’ é uma palavra para dizer o encontro da ‘coisa’ (Dinge / Denken[2] soa a Hegel). O encontro da coisa pela coisa: há alguma coisa e não nada, e a alguma coisa torna-se questão em função do seu ser dada. A questão é ela própria um pedaço da alguma coisa que é dada. A questão ou a demande[3]” (p. 58).
12. “ […] ‘pensar’ significa ‘ressentir’ (sentir em si), ‘éprouver’ (ter uma provação), ‘receber’ impulsos, afectos, excitações, incitações… (p. 74), é a última palavra da conversa. Nancy é um pensador do ‘corpo’ fora da oposição ontoteológica alma / corpo. Se se pensa que a rede neuronal acompanha todos os órgãos que são assim ligados ao cérebro, nomeadamente ao velho córtex das emoções, enquanto que o novo córtex dos mamíferos e das aves é um seu desdobramento que transborda para as questões de táctica e estratégia na lei da selva e depois no mundo tribal dos humanos e que é neste que se desenvolve o que chamamos correntemente ‘pensamento’, vê-se como o pensador francês busca justamente fugir à oposição sensível (corpo, emoções) / inteligível (alma, pensamento), mostrar como pensar é, digamos assim, um global anatómico que se joga no comum tribal, deste vindo a doação do sentido, da língua e dos usos.
13. Mas bizarramente, nunca o diálogo entre os dois filósofos fez alusão ao papel da linguagem no pensamento[4], como se fosse algo de adquirido em que já nem é preciso falar. E pergunto-me se a proposta de ‘pensar’ ser um nome para ‘a pulsão à prova de si mesma’ não tem o inconveniente de ‘interiorizar’ o pensamento: como química, trieb em Freud, mas contendo neste também, além duma fonte e dum alvo, um ‘objecto’, palavra infeliz sem dúvida, mas que tem a grande vantagem de introduzir na pulsão algo de ‘exterior’, de tribal. Ora, só por via da língua, ou melhor da fala, o primeiro grande motivo da aprendizagem (e sê-lo-á a vida toda), é possível, me parece, a intrusão do químico pelo paradigma tribal: há um lento deslocamento do bebé para a criança, do ‘ser na mãe’ para o ‘ser no mundo’ (da unidade social), que supõe um ‘não!’ a impor-se à pulsão enquanto repetição pura (pulsão de morte, em termos de Freud, ou autismo), a torná-la justamente pulsão deslocável adentro do ‘mundo’ do paradigma que se lhe abre lentamente, pulsão que seja ‘devir mais ser’, como acima se citava o desejo com Spinoza e Deleuze. Porque se trata dum ‘não!’ que, paradoxalmente, não é negativo, que é incitação a aprender, a ‘devir mais ser’. É a tribo que penetra o pulsionar do pensar e do fazer, dizendo e mostrando como ser. E se aí tem sentido lamentar que este pulsionar tenha sido remetido para o ‘não’ inconsciente, não creio todavia que se trate apenas da ‘pulsão à prova de si mesma’, porque também à prova do paradigma tribal, onde se situa a grande descoberta de Freud[5], relacionando jusatamente a líbido com efeitos de retorno (après coup) devidos à lei tribal[6]. A descoberta do ‘impossível’, como numa tribo humana se consegue disciplinar os seus rebentos sem se saber como, através de efeitos de retenção das pulsões, que vão lá atrás no tempo, como que à origem, deslocando-as pelas aprendizagens para o comum tribal, introduzindo as regras que ensina nas raízes duma espécie de mecanismo autónomo, cuja habilidade tornada espontânea é a exibição ‘feliz’ dessa pulsão domesticada. O ‘não! que não é negativo será a muito lenta obra das regras da aprendizagem dos usos! Que por se terem tornado espontâneas, não são susceptíveis de serem explicitadas pelo pensamento de que elas são a condição, os alicerces.
14. O que assim proponho, à minha maneira de filosofia com ciências em jeito de Heideggerrida, não se opõe ao que Nancy propõe, que o seu texto mostra bem a fecundidade da autonomia do discurso filosófico, digamos assim. Ora, a fecundidade é o timbre do pensamento, transbordar os limites recebidos, como de tudo o que é-vivo-com, que do menos faz o mais: crescer, eis o espanto, o enigma dos enigmas, passivo social que se activa como singular com singulares. Tanto espantou que lhe chamaram alma, sôpro, espírito.




[1] A que chamamos pensar?, ed. diaphanes, 2013
[2] Coisa / pensamento.
[3] Termo técnico em francês para dizer o ‘pedido’ de fazer uma psicanálise.
[4] E muito menos dos usos, para o que não creio haver sequer tradição filosófica.
[5] Que não transparece em Nancy. É claro que se trata dum tratamento limitado da questão, dum pequeno episódio no desenrolar duma conversa.
[6] Derrida lendo Freud (“Freud et la scène de l’écriture” in L’écriture et la différence, Seuil, 1967, p. 303). Que acontecimentos posteriores venham inscrever-se na memória como se das ‘origens’ se tratasse; os sonhos repetem por vezes este processo de retorno, oferecem assim ao terapeuta uma via real de acesso a essa antiga infância quando esta faz doer. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A Constituição pode defender-nos do Capital sem pátria


1. É o que explica o texto do Público de 2 de Abril, Trinta e nove anos da Constituição de 1976: entre a tradição socialista e a deriva liberal”, assinado por Francisco Alves Rito, mestre em Direito Constitucional (UL). Pela primeira vez vejo alguém abordar uma questão que me preocupa há bastante tempo: a do controle do capital electrónico sem pátria por via politica, pelos Estados. Esta crise desmedida que, vinda da banca dos Estados Unidos, caiu sobre a Europa e condenou ao empobrecimento acelerado, sob o nome de austeridade (palavra de que gosto) os países que andavam a querer crescer à custa do crédito, condenação essa feita em nome das dívidas a capitais preguiçosos que andam à caça de presas incautas, como os vampiros do Zeca Afonso, mas não castigam os ‘incautos’, antes o povo miúdo, como de costume.
2. Primeira citação: “no texto original da Constituição de 1976 [...] é afirmada ‘a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno’ ”. Segunda: “a crise económica e financeira, que ainda estamos a viver, constitui um ataque sem precedentes à legitimidade material do nosso direito constitucional, colocando em xeque a sua autoridade moral (como a define Luís Pedro Pereira Coutinho)”, jovem professor de Direito da U. Lisboa. A primeira permite-lhe comentar como a direita vem pretendendo rever a Constituição em termos liberais quando a crise actual mostra que, pelo contrário, a revisão deverá ser feita em ordem ao social; ao que eu acrescentaria uma observação: ‘sociedade socialista’ não é hoje mais do que ‘sociedade social democrata’, isto é, dotada dum sólido Estado social que proteja os cidadãos mais vulneráveis, justamente os que foram vítimas da austeridade empobrecedora de quem já era bastante pobre. A segunda citação põe a questão de fundo, a da defesa, face aos ataques financeiros “sem precedentes”, vinda da “autoridade moral” da Constituição, que ainda de alguma coisa nos valeu, como o autor refere, mas, terceira citação: “a verdade é que, na vastidão dos seus 32 mil vocábulos, a CRP não encontrou respostas para a generalidade dos problemas supervenientes, suscitados por uma nova realidade político-económica ultraliberalizada pela financeirização extrema da economia; não assegurou o primado da política sobre a economia [artigo 80.º alínea a)], princípio basilar que deveria ter a força jurídica das normas preceptivas, de aplicabilidade directa e eficácia imediata, e, com esta fraqueza, meteu o lobo de Wall Street dentro do galinheiro dos direitos fundamentais, tanto dos sociais como dos de liberdade”.
3. Quarta citação. “Ao demitir-se de ter mão na economia, [...] o direito constitucional — o nosso, assim como o do mundo dito "ocidental", em geral — perdeu a guerra às externalidades, designadamente o combate ao desemprego e a batalha pela afirmação plena e universal da dignidade da pessoa humana. Chegámos ao ponto de, perante um desemprego real da ordem dos 30%, não percebermos que o problema, embora mascarado pela crise, é estrutural e não meramente conjuntural (eu subl). As taxas de desemprego socialmente aceitáveis e economicamente suportáveis são coisa do passado, mas entretanto continuamos a procurar mecanismos para aumentar o horário de trabalho e o período de vida activa, não querendo ver que a solução necessária e adequada é outra, que passa pela valorização do trabalho e pela sua justa repartição como factor principal, nos nossos dias, da redistribuição da riqueza”. Foi aqui que rejubilei!
4. Se, por um lado, pensarmos que o Direito foi, durante os tempos da consolidação da revolução industrial, a disciplina científica capaz de se focar sobre a globalidade de cada sociedade moderna e que as constituições exibem como ocupou esse lugar e, por outro, que a Economia veio substituí-lo como o discurso global que hoje ela é de facto, a globalização dando-lhe uma eficácia de ‘números científicos’ que a faz intimidar qualquer outro discurso, desvalorizado enquanto ‘moral’ ou ‘humanista’, percebe-se que há um confronto entre o global das economias e o local de cada Estado e sua população e constituição, que faz destes parte fraca, complexa em suas regras e conflitos, face àquela, aos seus números e à rapidez electrónica com que eles se movem eficazmente. Ora, a economia dependendo muito do sistema bancário e este duma dimensão de ‘confiança’ (‘crédito’ implica ‘crença’) que as crises põem à prova de maneira vertiginosa e irrecuperável (como mostra o triste caso do BES), parece incapaz, enquanto ciência social do mercado, de conseguir que os mercados nacionais de compra e venda de mercadorias sejam relativamente imunes às especulações financeiras vadias.
5. O que Francisco Alves Rito explicitou foi como o papel do direito constitucional continua a ser fundamental e que para isso tem que ser reformulado em ordem à mudança estrutural que provém da tecnologia e que provavelmente vai implicar menos tempo de trabalho e mais tempo de actividades livres, quiçá solidárias. Ora, isso só será possível com a revisão dos critérios da distribuição da riqueza: sendo esta produzida por máquinas e outros inventos de ordem científica que são produto da história do saber humano, este por sua vez relevando da aventura dos sábios europeus, do ‘universal’ e do ‘humanista’, isto é de todos, antes da sua apropriação empresarial. Ou seja as populações e o seu direito a viver, à habitação na Terra (Heidegger), têm preponderância sobre os lucros do capital, os quais aliás também necessitam do poder de compra, dos salários e pensões dessas populações, como os economistas nos ensinam.
6. Última citação: “é certo que o novo paradigma constitucional, de efectiva regulação económica, face ao fenómeno da globalização, depende de uma nova ordem internacional e desde logo europeia, que passa por uma nova concepção de Estado, assente nas pessoas, que implica novos modelos de organização do trabalho e de fruição social e cultural do exponencial aumento da capacidade tecnológica e produtiva, mas não é menos verdade que apenas o direito constitucionaal comparado é insuficiente para avaliar da aptidão de qualquer lei fundamental”. Interdisciplinaridade entre Economia e Direito, portanto. Mas também que as coisas andem já pelos conflitos e tentativas de solução, de que o caso da Grécia e das instâncias ‘comunitárias’ da Europa é um exemplo que parece mal encaminhado, mas precisará com certeza duma solução adequada à população grega. Já Mª de Lourdes Pintasilgo clamava por “um novo paradigma”.