sábado, 31 de janeiro de 2015

Uma adenda a Jacques Benveniste



1. Jacques Benveniste morreu em 2004 com 69 anos, na sequência de uma operação ao coração, sem ter visto aceite a sua grande descoberta, nem sequer aceites as provas laboratoriais que fez, como aliás outros laboratórios. Deixou um texto contando a sua história, Ma vérité sur la ‘mémoire de l’eau’ (a minha verdade sobre a ‘memória da água’), que os seus filhos publicaram na Internet (ed. Payot), 120 páginas. É impressionante a guerra que lhe foi feita por cientistas de toda a espécie, mesmo os que com ele colaboraram frequentemente o deixaram para salvarem a reputação. Havendo entre esses adversários gente como Changeux e F. Jacob, é-se levado a pensar que há algo nesta descoberta que põe em questão o paradigma da ciência do sec. XX, aliás Benveniste, médico imunologista, reconhece que lhe faltam conhecimentos de física para compreender os resultados inesperados das suas experiências. A pequena guerra portuguesa no Público contra a homeopatia ilustra bem que está aqui em jogo algo de teoricamente importante de mais.
2. Houve um fenómeno relativamente parecido de desconforto da comunidade científica com Ilya Prigogine, mas este químico obteve o Prémio Nobel, a sua guerra foi mais mansa. Publiquei neste blogue o ano passado um texto intitulado Questão prigogiana sobre a energia, a força e a entropia aonde se encontrará uma hipótese de compreensão possível da questão da ‘memória da água’. Explica-se aí que a Física europeia trata matematicamente de 'diferenças medidas' e não de 'substâncias', como era a Physica de Aristóteles. Quantidades e não qualidades ocultas, reclamou Newton, como se interpretasse a experiência de Galileu - pesando água para medir o tempo por não ter relógios precisos - concluindo que não se sabe o que é a ‘qualidade’ do tempo (a sua substância) mas apenas quantidades medidas, diferenças e proporções, dissera Galileu.
3. A Física é a desconstrução da Physica de Aristóteles, Heidegger e Derrida, recusando oposições exclusivas, descendem de Galileu e de Newton. A proposta implica a revisão do motivo de campo de forças atractivas: as forças fundamentais da Física, nuclear, electromagnética e da gravidade, constituintes dos átomos, moléculas, graves e astros, as únicas das quais há campos, são forças atractivas, e é porventura a razão pela qual não sabemos imaginá-las, como Newton confessou e Feynmann diz que nós também não (a nossa experiência intuitiva é justamente de forças locais, tão importantes na dinâmica newtoniana). Ora, um campo de forças atractivas, de cargas eléctricas ou de planetas, não é substancialmente nada, é resultado das forças das cargas ou dos planetas, substanciais estas e estes, susceptíveis de medidas. A diferença entre o campo das forças e os astros ou graves que o constituem é equivalente, mutatis mutandis, à diferença entre espécie biológica e os seus indivíduos, uma língua e os seus discursos e textos, uma sociedade e as suas populações: uma espécie biológica, uma sociedade, uma língua não são 'nada' de substancial, de observável fenonologicamente, só 'são' nos seus indivíduos (por isso é que a Thatcher dizia que a sociedade não existe). Afirmar num primeiro tempo o primado do ‘campo’ sobre os astros, só se pode fazer apagando-o em seguida para se dizer que são o ‘mesmo’, um não vai sem os outros, mas a proposta desse texto é de afirmar o primado epistemológico do campo, ‘nada’, sobre as suas substâncias.
4. É claro que isto é discutível e não haverá físicos capazes de entenderem a proposta, nem eu tenho estatuto (apesar duma licenciatura em engenharia civil em 1956 no IST) para me bater por ela. Proponho-a aos curiosos que calharem ler isto. Aplicado ao trabalho de Benveniste, isto daria o seguinte. As suas experiências consistiram em fazer dissoluções de moléculas orgânicas à maneira da homeopatia e verificar que, quando se chega além das dissoluções que implicam que não haja mais moléculas na água, esta mantinha um efeito como se lhe ficasse na memória. Como? Talvez que, além da substância molecular, o campo electromagnético se mantivesse na água.
5. Em vez da água por ser um líquido, como fiz erroneamente na última linha do texto do Público, Brian Josephson dá o exemplo de “cristais líquidos, que ao mesmo tempo que fluem como um fluido normal, podem manter uma estrutura ordenada em distâncias macroscópicas”. Não sei que chegue para entender este ‘como’. O físico de Cambridge continua. “não houve, que eu saiba, qualquer refutação da homeopatia que permaneça válida actualmente depois de ter em conta este ponto concreto”

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Ciência e a falsa ciência


1. O confronto entre medicinas que saudei em 16/11 do ano passado afinal não existiu, nada de diálogo científico do lado ‘ciência’ em relação ao outro lado, o testemunho digno de Paulo Varela Gomes e o depoimento da professora da Faculdade de Medicina da Nova Telma Gonçalves Pereira sobre a prática homeopática, nomeadamente sobre a existência de uma pediatria e de uma veterinária homeopáticas que refutam a acusação de ser apenas um efeito de placebo. Com efeito, tratou-se de denegrir uma prática terapêutica com dois séculos de existência, tratando-a sob a forma de slogan, ‘é só água e açúcar’, como uma ‘falsa ciência’ a que, por consequência, se negam efeitos terapêuticos. Dogmaticamente. O que parece certo é que a homeopatia, ao contrário da vacinação, sua prima pelo princípio da semelhança, não teve até agora sucesso nas tentativas laboratoriais da medicina molecular, donde não ser tida como ‘ciência’ por ela; mas isso significa antes demais uma incompatibilidade ‘experimental’, como a que creio existir, muito mais claramente aliás, face à medicina chinesa e à sua acupunctura (que não precisa de se considerar ‘ciência’ à nossa maneira). Levará isso à negação de efeitos terapêuticos ou apenas ao reconhecimento de diversidade de tradições culturais?
2. O que escandaliza o filósofo é a maneira não científica de abordar a questão. Embora talvez por nenhum dos contendores serem médicos, impressiona a inexistência de qualquer preocupação com os eventuais efeitos curativos da homeopatia: não só não lhes interessa, como negam que sejam devidos à medicamentação; não se pode argumentar dum só caso, dizem, mas sem pensarem nos outros milhares que há, que pode haver, que um cientista a sério ponderará como pondo problema, ainda que não seja ciência; aqui, isso fica excluído, é uma ‘falsa’ ciência. Darei um exemplo noutra área que é belíssimo, contado no livro L’influence qui guérit (a influência que cura) do psiquiatra Tobie Nathan (1994, Odile Jacob), confrontado com problemas mentais da sua clientela emigrante africana nos subúrbios de Paris. A teoria psicanalítica não mostrando eficácia nenhuma nesses casos, além de ter auxiliares indígenas a ajudarem-no a compreender as antropologias em causa, foi visitar curandeiros nos países dos seus doentes, aprender-lhes os mitos e os rituais, para vir em seguida utilizar esses rituais, médico e curandeiro, e conseguir as curas que procurava. Isto é que é um cientista que, encontrando limites da sua disciplina, vai além deles, busca compreender o que é curar.
3. Voltemos à homeopatia. Não tendo competência (mas vi uma familiar que começava a perder cabelo largar as injecções sem efeito dum dermatologista por uma homeopatia que lhe recuperou o cabelo em poucos meses), citarei quem a tenha na polémica que existe e que vá além de slogans roçando o fundamentalismo. No prefácio ao livro de Jacques Poncet, Homeopatia pediátrica, o médico J. Jouanny[1] fala da invenção da homeopatia como primeira medicina experimental (antes de Cl. Bernard!) noinício do s. XIX e diz como o livro de Poncet consegue desvencilhá-la da ganga de explicações sobre as causas das doenças, hipóteses filosóficas nunca verificadas, que a envolveu após a morte do inventor, o alemão Samuel Hahnemann (1755-1843). Este definiu a homeopatia como um método terapêutico cuja medicamentação é uma substância susceptível de criar num indivíduo são um sofrimento (pathos) semelhante (homeo). Três condições: conhecer os sintomas experimentais, tóxicos ou farmacológicos, das substâncias vegetais, animais ou minerais; compreender o conjunto das mudanças na maneira de sentir ou de agir do doente devido à sua doença; usar doses fracas ou infinitesimais para estimular as defesas do indivíduo sem lhe agravar os sintomas[2].
4. A correlação entre a medicina molecular e a homeopatia conheceu uma viragem com a proposta em 1988 do médico francês J. Benveniste: a questão de ser a água que guarda a memória da substância homeopática desaparecida na dissolução, o que o Nobel de Medicina (2008) Luc Montagnier recentemente disse consistir na única explicação para fenómenos que ele próprio encontrou (“J. Benveniste”, Wikipédia). Outro Nobel, inglês de física (1973), Brian Josephson, acolhe a proposta de Benveniste em 1997, dada a diferença da estrutura da água enquanto líquido[3]
[esta frase final está errada, como se pode ver pela versão espanhola do físico de Cambridge em anexo; não só a questão é difícil, como quando a escrevi só tinha lido o texto inglês; o meu inglês é dum aluno de liceu de há mais de 60 anos]








[2] Além da pediatria homeopática que este livro francês expõe, existe uma tese integral de homeopatia veterinária em http://theses.vet-alfort.fr/telecharger.php?id=490.

Público, 29 janeiro 2015-01-29


Anexos

13 janvier 2011 15:14, par Vincent Verschoore
Selon le Dr Luc Montagnier et cinq autres chercheurs, certaines séquences bactérienne et d’ADN virale induisent des ondes électromagnétiques de basse fréquence dans des hautes dilution aqueuses. Ce phénomène semble être démarré par le bruit de fond électromagnétique ambiant à très basse fréquence. Nous interprétons ce phénomène dans le cadre de la théorie quantique des champs. Le phénomène concerné pourrait permettre de développer des systèmes de détection extrêmement sensibles pour les infections chroniques bactérienne et virales.
BRIAN D. JOSEPHSON
  University of Cambridge
En relación con sus comentarios sobre afirmaciones acerca de la homeopatía, las críticas centradas sobre la increiblemente pequeña cantidad de moléculas presentes en una solución después de que haya sido diluida repetidamente son algo que no tiene sentido ya que los defensores de los remedios homeopáticos atribuyen sus efectos no a las moléculas presentes en el agua, sino en las modificaciones de la estructura del agua. Un análisis sencillo puede sugerir que el agua, siendo un flúido, no puede tener una estructura del tipo que tal imagen exigiría. Pero casos tales como cristales líquidos, que a la vez que fluyen como un flúido normal, pueden mantener una estructura ordenada en distancias macroscopicas, muestran las limitaciones de tales maneras de pensar. No ha habido, en mi conocimiento, cualquier refutación a la homeopatía que permanezca válida actualmente después de tomar en cuenta este punto concreto. Un tema relacionado es el fenómeno, afirmado por la colega de Jacques Beneviste, Yolene Thomas y otros de la bien establecida experimentalmente, “memoria del agua”. Si demuestra ser válido, esto tendría mayor significado que la homeopatía en si misma y atestigua la visión limitada de la comunidad científica moderna que lejos de apresurarse a probar tales aseveraciones, la única respuesta suya ha sido rechazarlas de plano.
Após leitura parcial do texto de Benveniste (Ma vérité sur la mémoire de l'eau), dou-me conta de que está aqui em questão uma hipótese da desconstrução derridiana: as moléculas [substância] dissolvidas indefinidamente desaparecem, deixam de ser 'fenómeno', e o que Benveniste atribui a efeitos retidos pela água em que as dissoluções se fazem não consiste senão em (um tecido de) 'diferenças', como exprime o seu recurso a ondas electromagnéticas. Seria o campo de forças electromagnético que sobreviveria na água à dissolução das moléculas que o constituiram. 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tecnologia e desemprego


1. É confrangedor ver como o paradigma vigente pode enganar tanta gente. Então não é que uma classe politica dirigente que diz estar empenhada em combater o desemprego encontra como medida politica aumentar o tempo de trabalho da função pública de 35 para 40 horas e acabar com alguns feriados, isto é, tapar alguns empregos possíveis? É óbvio que este tipo de medidas revela uma pura politica de contabilistas, que não tem nada a ver com emprego ou desemprego, já que as contas a acertar são de capitais, não há outras, gentes não contam senão como ‘custos de produção’, isto é, como factores de produção por assim dizer mecanizados, instrumentos, máquinas.
2. Ora, pensando bem nesta linha percebe-se uma lógica diferente de possibilidades politicas, percebe-se por exemplo que grandes empresas que mudam para mãos administradoras que se propõem reformá-las procedam ao despedimento de milhares de trabalhadores sem que isso pareça afectar o funcionamento interno da produção e da burocracia correspondentes, antes pelo contrário. É que isso só é possível porque as novas tecnologias electrónicas substituem as energias musculares e/ou cerebrais desses que são despedidos. Não foram elas que provocaram a grande onda de desemprego que se foi gerando nas últimas três décadas enquanto os números de produção subiam e aumentavam vertiginosamente os lucros das grandes empresas, novas e algumas velhas que se adaptaram?
3. Mas não basta considerar a história recente para encarar duma maneira certa esta questão, é preciso pensá-la à luz da história do Ocidente: porque é que as outras grandes civilizações, da China, da Índia, do Islão, não vieram até onde os nossos antepassados chegaram e só se abriram recentemente à herança para receberem justamente a tecnologia? A questão tem interessado historiadores de competências variadas mas dos que eu conheço nunca têm em conta o factor que originou a diferença, há 25 séculos, a invenção da definição por Sócrates que sobretudo Aristóteles aplicou aos vários saberes da sua época, gerando a lógica que tornou possível a geometria de Euclides 20 anos depois; ele instituiu o texto gnosiológico de argumentos sobre essências intemporais e sem contexto que as escolas de filosofia foram transmitindo e as universidades medievais receberam para transmitirem por sua vez – escolas e livros impressos – a Galileu, Newton e seus contemporâneos, que se consideravam filósofos que usavam geometria. Houve a lendária história de cientistas europeus, tendo um fabricante de instrumentos para os laboratórios deles, James Watt, conseguido enfim inventar um dispositivo que distinguia uma fonte de energia de vapor de água e a possibilidade de a ligar a máquinas de diferentes trabalhos: a máquina que a electricidade e o petróleo depois melhoraram fortemente teve como resultado óbvio substituir o trabalho muscular de produções cada vez mais variadas, multiplicar as possibilidades de emprego e vir a aligeirar a dureza dos trabalhos. Começando com horários enormes e condições pavorosas de ecologia interna em fábricas e minas, a história da redução dos horários de trabalho e da melhoria das suas condições é uma das partes nobres do século XX, juntamente com o desenvolvimento científico e tecnológico.
4. Foi o que a tecnologia electrónica veio ultimar, forçando ainda mais à redução dos horários de trabalho, o que o pensamento único económico-político traduziu em desemprego crescente, tornando flagelo o que é historicamente promessa de vida melhor para todos (já que os maiores lucros são hoje de empresas com pouca gente, haveria quiçá que pensar numa taxa sobre a maquinaria electrónica das empresas com coeficientes segundo os postos de trabalho dispensados). Chegado aqui o filósofo deixa de ter competência para continuar, atento embora à corrente minoritária que propõe o decrescimento para nos salvar mas sabendo da grande dificuldade que lhe põe a globalização. Mas o que há que afirmar claramente é que a história de pensamento que foi evocada faz dos seus grandes heróis os antepassados de todos os humanos (iluminismo) e não apenas dos ‘pobres de espírito’ que só pensam em contas de números a crescer, que são a completa negação das grandes paixões intelectuais e muitas vezes espirituais que fazem, juntamente com os santos e os artistas, o admirável leque dos humanos que valem por nós, nos guiam para cima e para a frente. Dá vontade de chorar pensar que o grande saber que tornou possível a modernidade desaguou no meio social que provocou esta borrasca económica de que Madoff é o símbolo, de ganância.
5. Urgente, urgente, é estabelecer leis europeias que obriguem os capitais a obedecer às eleições democráticas das várias nações da U. E., como as que vêm aí na Grécia, Espanha e Portugal.

Público, 5 de Janeiro 2015

P. S. O argumento de como foi a aventura do pensamento greco-europeu (com o cristianismo, aliás, a relação de criação entre Dus e cada vivo ou coisa tendo reforçado o efeito da definição  como ontoteologia) que gerou a modernidade nas sociedades europeias prova-se também pelo facto de que nenhuma sociedade fora das que lideraram o progresso ocidental e veio depois a beneficiar dele, o pôde fazer sem pôr em primeiro plano a escola para ensinar o que o Ocidente descobriu e inventou.