1. A todos os níveis das coisas,
nossas humanas e históricas e sociais, nossas biológicas com plantas e animais,
e as dos astros e as da nossa Terra tão única e rara, rochas e vulcões, chuvas,
rios, mares oceânicos, atmosferas que respiramos, em todos esses níveis o que
há foi doado por algo que não sabemos dizer – Ser, Ereignis ou Acontecimento, disse Heidegger no singular –
onde há energias que trazem (e são trazidas por) diferenças repetidas que jogam a fazer lugares (de espaços) e momentos (de tempos), ou seja movimentos
muito variados, evoluções crescentes e minguantes, nascimentos de pequeninos
que se tornam grandes e acabam morrendo. O retiro de tais doações, eis o que
singulariza o que assim vem como acontecimento que continua a acontecer; o seu
plural infindável impede de as divinizar em panteísmos: enigmas incessantes de
jogos inacreditáveis que fazem a felicidade de artistas, cientistas, de todos
os que se deixam arrebatar pelo inexplicável.
2. A doação retira-se, dissimula-se,
como condição da fecundidade do que é doado: retira-se a força do outro doador
(heteronómico), deixando ao
rebento autonomia de crescer, deixando ao que nasce a sua fecundidade na cena
em que veio à luz, fecundidade de vir também a doar fecundidades. Quando se lê
o primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia hebraica, percebe-se que a
‘criação’ que ele conta é justamente a doação da fecundidade, dita ‘bênção’, e
que o doador ao sétimo dia se retirou, deixando as fecundidades fecundarem-se,
como se não precisassem dele. Assim como a leitura do primeiro capítulo do
segundo livro da Physica de
Aristóteles por Heidegger (Questions II) é a redescoberta da phusis (natureza em latim) como movimento fecundo, tendo no final o pensador ido
buscar a Heraclito ("a natureza gosta de se esconder", aforismo 123) o motivo do retiro do poder (archê) da phusis, que vem assim completar Aristóteles, o qual
aliás já deixara o seu primeiro Motor retirado do que doara. Termos chegado com
a biologia do século findo a compreender, no que aos vivos diz respeito, o
segredo molecular da sua fecundidade que doutras vem indefinidamente,
permite-nos prescindir de qualquer primeiro, criador ou motor, na origem, como
descobriu por seu turno Derrida, sendo a repetição, ou seja, toda a origem é mítica, a começar, em
cada um de nós, o nosso nascimento de que só sabemos o que nos contaram, nosso
mito inacessível.
3. A Terra é fecunda pois, de vida
pois, que lhe veio dos mares em que ela se formou e dos ares que jogam na
doação (fotossíntese e respiração) da complexidade evolutiva. Mas também os
seus vulcões lhe fecundaram as rochas e os solos da crosta, tal como os físicos
reconhecem as estrelas como que fecundas em suas combustões que produziram
átomos e moléculas da grande variedade terrestre que a tabela periódica gloriosamente
organizou. E voltamos ao problema da origem, da repetição originária, à questão
de saber como foi antes desses primeiros astros, das estrelas. Acho que
ninguém sabe, não percebo como
nuvens de partículas sejam susceptíveis de doação retirada, de evolução
fecunda. Aceito a data que os físicos calculam para o big Bang, mas deste desconfio,
é mono-teológico demais: é o mito dos físicos.
Sem comentários:
Enviar um comentário