domingo, 29 de novembro de 2015

O sonho do califado



1. O que os diversos fundamentalismos religiosos que se manifestam no nosso mundo actual – extrema direita americana evangelista, integrismos católico, judaico e islâmico – têm em comum é a recusa global dos excessos libertários, mormente em matéria de costumes sexuais, que as televisões exibem como depravação do mundo ocidental desenvolvido. Uma questão prévia aos massacres desde o 11 de setembro ao 13 de novembro é a de saber porque é que apenas o mundo árabe muçulmano tem fornecido a forma terrorista-bomba que nos assombra desde as torres de Nova Iorque, que imola igualmente os que a provocam juntamente com as vítimas inocentes indiscriminadas, o horror ético de ‘darem a vida’ para matar criminosamente. Não tenho resposta para ela, nunca estudei o Corão nem a história que ele iniciou, apenas uma sugestão arriscada que permite gizar a noção de Califado, reclamada como meta politica pelos guerrilheiros da Síria e Iraque.
2. Semelhante à Cristandade medieval como forma religiosa unificadora de várias sociedades, o Califado difere dela por representar o que foi o auge da civilização muçulmana sem rivais na época, enquanto que a Cristandade, que aliás beneficiou da cultura árabe, foi apenas um início de que a modernidade se afastou. Durante os seus Séculos de Ouro, ignoraram os bárbaros europeus, até estes aparecerem a barrar-lhes os caminhos dos negócios e sobretudo quando, já modernos, manifestaram uma capacidade tecnológica que eles ignoravam e muito os surpreendeu. Diferença também e sobretudo na organização antropológica a que Germaine Tillion chamou “o harém e os primos”, visando as comunidades familiares endogâmicas (E. Todd, O terceiro planeta), com prioridade do casamento entre primos de primeiro grau, criando conjuntos vastos sem ‘cunhados’ entre eles. Este patriarcado fortemente machista (as burkas femininas são uma defesa contra os homens de fora) dificulta os acordos entre as ‘ilhas’ familiares, é talvez o que dificulta o regime democrático de discussão e eleições em ordem a Estados modernos: oscilam entre formas de liderança ditatorial laica ou de fraternidades islâmicas, a Turquia, de tradição imperial e não árabe, está a voltar para trás.
3. Reclamar o Califado como vasta unidade politico-religiosa, exprimiria uma homogeneidade de costumes muçulmanos opostos aos modernos ocidentais, sonhando integrar nela as técnicas ocidentais (sem saber que estas são parte essencial da desconstrução dessa homogeneidade, conforme sucedeu na Europa), excluindo as relações com o Ocidente desmoralizado e ateu; mas exprimiria também um ressentimento histórico, o dos ‘homens’ muçulmanos face aos europeus que conseguiram desenvolver-se mais do que eles. A pulsão agressiva (machista, o prémio são as virgens no céu) que vitima também os seus portadores teria aí raízes antropológicas e históricas, a que a grande maioria da população muçulmana é obviamente alheia, querendo uma vida melhor, a que vêem nos écrans das televisões.
4. Há já alguns anos que pensava que não haveria, pelo menos tão cedo, uma 3ª guerra mundial, que de vez em quando há quem anuncie. Numa sociedade globalizada, os poucos que possam decretar uma guerra mundial têm interesses em todo o lado que lhos impedem. Há, sim, a guerra económica, de que temos sido vítimas, nós todos que dependemos da banca. Mas este ‘acto de guerra’ (Hollande) parece significar que uma guerra mundial começou com o 11 de setembro e com os Bush-Blair a invadirem o Iraque, continua com a França, os EUA e a Rússia a bombardearem a Síria, a que ‘eles’ ripostam em Paris. Bagão Félix, no Público de sábado, 21, citava o Papa Francisco em junho deste ano, em Sarajevo, a falar na “3ª guerra mundial travada por pedaços”: será este um novo tipo de guerra na história. E dá alguma razão a Huntigton, não que seja guerra de civilizações, mas tem algo disso, já que vinda dos que parecem incapazes de se modernizarem e detestam a ‘imoralidade’ ocidental, que fazem esta guerra não para conquistar o que quer que seja (Loureiro dos Santos) mas por pura raiva, explodindo-se. É a esta raiva que o ‘sonho’ do Califado dá um título ‘nobre’.

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