terça-feira, 27 de outubro de 2015

Rotina e Acontecimento


1. A rotina tem má fama, como repetição monótona para quem a faz, a suporta, ou até quem a paga, em contraste com a inovação, a mãe de todos os progressos, das surpresas boas, das boas razões de viver. E no entanto... andar é uma rotina das pernas, ora uma ora a outra a tomar a dianteira e a deixar a outra para trás, o avanço dependendo de ambas sem que nenhuma tenha primazia, a rotina da cozinha em que se faz uma sopa é necessária para não se demorar uma hora à espera que se acerte com o resultado de que esfomeados estão à espera, guiar um carro implica uma rotina de gestos de que muitas vezes nem se dá conta de que se os fez, o cirurgião que tem um caso complicado não salta rotinas nem o grande cozinheiro que prepara um menu de banquete real. A mais engraçada das rotinas nós nem damos por ela ainda que o quiséssemos, é como ao escrever isto, ou ao falar, as regras das frases se encadeiam umas nas outras para que elas saiam com o sentido que move a escrita ou a conversa, ainda que se trate de descobertas inéditas. Estes poucos exemplos que se podem multiplicar indefinidamente implicam todos, se se reparar bem, que as rotinas correspondem ao resultado conseguido satisfatoriamente de aprendizagens, algumas longas de experiências repetidas, de longas rotinas de especialistas pois, outras vindas desde os alvores da infância a toda a minha gente.
2. Tenho insistido muito, nestes meus textos, sobre o motivo da aprendizagem, sobre esta maneira espantosa de os usos da tribo se fazerem os usos de cada um dos seus indígenas, da passividade que recebe e se torna actividade que age, sem dois tempos nem oposição entre contrários. Ora bem, o que é que se aprende? Rotinas, exclusivamente! Porque se parte do não saber fazer, do não ser capaz, para se chegar ao jeito espontâneo e hábil de fazer em circunstâncias diversas: ‘dá cá, que eu sei como é que se faz’, diz quem sabe a rotina. E se se pensa em alguém que quer montar um negócio, fábrica, atelier, escola ou loja, ou o que seja, além das questões de financiamento e de local que enfrenta, só se pode dizer que ‘já está!’, quando uma rotina se instalou entre os vários membros da equipa. Ou julga-se que algum patrão paga salários para cada pessoa fazer o que lhe dá na real gana? Tu fazes isto, e tu encarregas-te daquilo, etc., o organigrama é o mapa das rotinas.
3. Quanto a acontecimentos, tanto podem ser bons como maus, coisas que correm bem quando as rotinas vão funcionando ou correm mal; o acontecimento resulta sempre de rotinas de outros que jogam com estas e dão um resultado que à partida é imprevisível, uma aposta que se ganha ou se perde. O que define acontecimento é que acontece a mais do que um, é a sua imprevisibilidade por efeitos múltiplos, responda ou não a planos que se fazem, pode ser um êxito inesperado ou uma catástrofe qualquer, de clima ou revolução social, doença de alguém decisivo, é sempre surpresa, boa ou má; em ‘surpresa’ há ‘presa’, quem a recebe fica atado momentaneamente na sua reacção ao que lhe vem (‘sur’ como ‘sobre’), ‘preso’ no que a-prendeu, se posso assim brincar com estas palavras. Diante do acontecimento, o que se aprendeu não nos serve imediatamente, há que improvisar.
4. Improvisar é difícil, como todos sabemos. Dar um salto diante dum buraco quando vamos a andar na rua pensando em qualquer assunto complicado, o leite a ferver que transborda para o fogão, reagir a uma má notícia sobre um familiar próximo ou a um insulto despropositado, querer dar a volta numa assembleia que foge em sentido contrário ao que se quer, sei lá. Não se aprende a improvisar, por definição quer de aprendizagem de rotinas, quer de acontecimento. Porque as rotinas que se aprenderam foram, não propriamente improvisadas, mas inventadas, o que é o mais difícil em tudo isto: as invenções são lentas, as mais quotidianas, que nem sabemos quem as inventou ou quando, foram se fazendo ao longo de muitas gerações, as receitas de cozinhas e as regras das falas, como Newton, esse tão grande inventor, dizia citando um medieval que “era um anão aos ombros de gigantes”. Mas as dele também pediram muito tempo de estudo e experimentação, com algumas fulgurações por vezes, como a célebre maçã que viu cair e lhe fez pensar que alguma força a tinha feito cair, a que veio a chamar força da gravidade e disse não saber imaginá-la, e ainda há 50 e tal anos Feynman dizia que os físicos não sabiam o que é uma força de atracção a distância. Inventar é moroso e raros o conseguem, releva do acontecimento e mete também muita sorte, aprender o que eles inventaram torna-se depois mais fácil para muitos, consoante aquilo de que se trata, uma rotina em qualquer caso, mas que pode ser muito complexa, como a do cirurgião.
5. A rotina é feita de pequenas repetições que quase não pedem atenção, que muitas vezes permitem que se vá conversando de outra coisa entretanto, a fazer a sopa ou a guiar um carro. Mas podem sempre oscilar para acontecimentos que a surpreendem e desarmam e pedem improviso; ‘oscilação’ aqui significa que não há oposição entre ambos, uma rotina é uma espécie de acontecimento de grau zero que pode sempre complicar-se e chocar com outras, gerando acontecimentos de graus fracos que podem também oscilar em certas circunstâncias para graus mais fortes. Uma espécie de escala de acontecimentos partirá das coisas que nos sucederam e contamos em casa ao jantar, depois as que contamos também aos amigos a quem telefonamos, enfim as que anos mais tarde ainda contamos; depois há as que vieram como breve notícia num jornal local, as que deram notícias em vários médias, depois em todos, e assim sucessivamente até às que entram na história, em notas de rodapé, depois um capítulo dum livro, até aos acontecimentos históricos que desafiam as escalas.
6. Este motivo de oscilação entre pequenas repetições e acontecimentos mais ou menos inesperados encontra-se também nas disciplinas científicas ditas ‘naturais’. Desde uma pedra que caia a um vulcão que entre em actividade e um sismo, sem contar com todos os movimentos dos vivos na terra, os acontecimentos da cena da gravidade são muito variáveis, assim como as transformações químicas que eles tornam possíveis. Na Biologia, o jogo das células dos variados órgãos dum animal implica as pequenas repetições que os biólogos estudam aos vários níveis da sua anatomia, das quais as mais acessíveis ao leigo são duas automáticas, a da circulação do sangue e a da respiração, esta aliás visando aquela, cujas oscilações homeostáticas entre níveis mínimos e máximos dependem de acontecimentos digestivos entre fome e saciedade; as dificuldades animais em encontrar presas ou o susto de fugir de ser presa de outro mais forte são acontecimentos que oscilam com essas rotinas celulares e anatómicas, enquanto que em nós um banquete de festa joga como acontecimento forte, indigestões ou bebedeiras podendo estragar-lhe o prazer gastronómico. A rotina respiratória mantém-se no sono e no coma, sabemos que alguém adormeceu pela regularidade que lhe ganha o respirar até à oscilação do bocejar matinal, enquanto que os acontecimentos tanto são a tosse e um ambiente irrespirável como um bom charuto ou perfume, o coração que bate no amor ou na entrada em cena, num exame, uma corrida, fuga ou combate... Mas a respiração intensa, que é em geral acontecimento, pode treinar-se – treinar é ganhar rotinas – num atleta, numa cantora de ópera, num trompetista, visando outros acontecimentos, vitórias, recordes, concertos. Mas treinar não ensina a acontecer numa cena entre vários, o acontecimento surpreende, corta o fôlego, faz bater o coração, acelera o sangue, suscita reacções rápidas e intensas sobre as pequenas repetições da rotina que ele revolve, sem que se saiba como.
7. Os usos quotidianos, em família – a higiene, a culinária, a lavagem da louça e da roupa, as refeições – como nos empregos as burocracias e as cadeias de montagem, trata-se de gestos repetitivos em que ‘não se passa nada’, de tarefas sempre a recomeçar, com pequenos acontecimentos da variabilidade dos dias e dos comparsas, cujos acontecimentos mais óbvios e esperados são as férias, de que os fins de semana são um anúncio em ponto pequeno; mas os acontecimentos sociais que dão mais azo à surpresa, são uma greve, uma revolução, um tremor de terra, uma epidemia, uma guerra e os seus desalojados que buscam refúgio. Usos são rotinas aprendidas que, por essa definição, resistem à mudança, às reformas, tanto mais quanto mais velho se for: porque são esses hábitos que outros querem fazer mudar que asseguram a nossa habilidade e o nosso talento.
8. Igualmente a linguagem é feita de repetições, como indica o teclado dos computadores onde estão as letras e outros sinais que se repetem constantemente, uns mais do que outros, é claro, nas palavras que dizemos e escrevemos, assim como estas se repetem, também umas mais do que outras, nas frases que delas são feitas, com regras fortes e outras mais subtis, mas que são condição de entendimento entre os que falam, ouvem, lêem, e ainda se repetem nos paradigmas de todo o tipo de corpus de textos, científicos, administrativos, jornalísticos, e por aí fora. A não consciência por quem fala e por quem ouve, escreve e lê, das múltiplas regras da língua – só se atenta nalgumas palavras e expressões que se repetirá se se quiser resumir o dito – é condição energética da fala e da escrita, essas regras agenceiam-se como que automaticamente na espontaneidade do falar e escrever. Qualquer discurso ou texto, sendo singular, releva do acontecimento, mas na banalidade dos dias jogam como repetições sem grande incidência acima do grau zero, ao contrário do que acontece quando o meu interlocutor me surpreende e o coração se me acelera, engasgo-me sem encontrar logo o que responder: são as pequenas repetições rotineiras que resistem se a rapidez duma resposta à altura não me é dada, não me acontece. Mas os acontecimentos aqui são sobretudo os textos literários, poesia e pensamento, os textos que se veneram e transmitem de geração em geração, o poema sendo uma solução do desafio essencial entre o seu pensamento e a sua música, o seu canto oral, indiscernível a diferença entre o que se busca e o que acontece.
9. Quanto às oscilações no domínio atómico e molecular da Física e Química, a questão é complicada, tratei dela nos §§ 34-41 do cap. 8 do meu Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (l’Harmattan, 2007), em torno dos electrões quânticos, disponíveis a movimentos vários, transformações químicas, hidro e termodinâmica, electricidade e magnetismo, óptica, as suas oscilações permitindo relacionar entre elas estas várias regiões de fenómenos (mas hei-de confessar que quinze anos mais tarde, fora do contexto de leituras que me permitiram essa escrita, tenho dificuldade em acompanhar os raciocínios). De qualquer forma, a oscilação nela mesma, em qualquer um dos domínios científicos que se considere, vida, sociedade, linguagem, é um fenómeno estritamente de ordem física: as pequenas repetições da rotina e do hábito são estádios de despesa energética mínima, de poupança de fadiga, evitando os acontecimentos que, ao contrário, cansam, desgastam, pedem recuperação da energia dispendida em demasia.
10. Os §§ 20-28 do cap. 7 e os citados acima do cap. 8 propõem uma (entre quatro) tese de ontologia desta fenomenologia de filosofia com ciências: todos os entes, materiais, vivos, humanos, linguísticos e outras estruturas sociais, são susceptíveis de oscilações entre rotina e acontecimento, tese que depende do motivo da produção de entropia de Ilya Prigogine, o químico belga de origem russa que foi Nobel em 1977 graças à sua descoberta das estruturas dissipativas, das estabilidades instáveis da bioquímica do metabolismo celular. Essa entropia positiva, que explica a entropia clássica de Clausius como sua degradação, é um fenómeno universal, donde a possibilidade duma tese ontológica que tenha em conta os fenómenos de energia (não esquecer que este termo releva da definição aristotélica de movimento entre dunamis e energeia, vem das origens da filosofia ocidental). Esses entes, que se movem / são movidos em seus estados entrópicos oscilantes, foram tratados nesse texto através da categoria derridiana de duplo laço, um deles formando estritamente um motor fortemente repetitivo, o outro formando um aparelho que assegura a regulação do movimento na cena de circulação, tendo sido esta que lhe deu as regras na sua própria anatomia de aparelho. É este aparelho regulador que é o lugar das oscilações entre rotinas de pouca energia dispendida e acontecimentos que sobrevêm mais ou menos inesperadamente doutros movimentos na circulação, como crise, que tanto pode ser de circunscrição limitada ao pequeno caso local como generalização que afecta uma zona maior da cena.
[no blogue filosofia com ciências, os 30 textos do dia 19/02/2008 expõem um resumo das principais propostas da obra citada]

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