domingo, 18 de outubro de 2015

A fecundidade e o poder



       1. É o que há de mais extraordinário, que os vivos dêem vivos, os humanos humanos, o enigma maior do que os Gregos chamaram phusis. Foi a grande descoberta do Heidegger. Dar um bebé e deixá-lo ser, deixá-lo crescer o seu tempo vital, havendo nos mecanismos celulares compondo órgãos anatómicos o que é necessário à sua autonomia adulta, como se vê depois de os pais morrerem; mas já antes deixaram a casa dos pais, munidos duma anatomia de sobrevivência que se foi formando no ventre da mãe, no aleitamento depois do parto e por aí fora, no aprender a mexer na colher e a levar a papa à boca, a gatinhar e a fazer tem-tem, a andar e a dizer palavras ouvidas e depois frases, responder ‘não!’, aprender a saber do que ouve dizer que não viu, a ler mais tarde. É a tribo que é o lugar primacial deste milagre constante, desta possibilidade quase impossível, como mostra a diferença enorme dos resultados, todos singulares, com jeitos e faltas de jeito diferentes.
         (Sobre a "fecundidade espiritual", ver texto no blogue Questions au christianisme)
        2. O que se chama poder, enquanto substantivo, estrutura social, é uma limitação da fecundidade daqueles que lhe são sujeitos, que o sujeito é sempre a um poder que se sujeita, perdendo algumas das suas possibilidades, do verbo poder. Ora, a descoberta heideggeriana, de que o que dá ser deixa ser, permite perceber como é que esta questão do poder pode ser encarada, já que o crescimento das crianças implica o poder paterno e escolar que justamente evita possibilidades anarquistas dando disciplina às possibilidades como condição de ‘ser no mundo’, de que sejam, não apenas possibilidades do ‘ser’ humano mas também do ‘mundo’. Então o poder tribal, da família e da escola, deve ser doação para deixar ser a prazo: consoante aquilo que se trata de aprender assim os prazos da disciplina. A tabuada e as contas são para aprender só com disciplina, evitando a possibilidade de erros, enquanto que muitas aprendizagens são da ordem de se ganhar um estilo pessoal. Nos empregos haverá o mesmo tipo de maneiras de poder, as maneiras de fazer que têm a ver com erros graves para a unidade social e as múltiplas questões em que o estilo do trabalhador nas suas possibilidades ganhas no longo tempo do aprender é uma mais valia para a unidade que favorece quem exerce o poder com responsabilidade sobre o conjunto. Mas é claro que isto só pode ser assim se houver uma compreensão de quem detém o poder sobre os que lhe são sujeitos, uma inteligência das possibilidades de cada qual, e uma concertação justa da partilha dos frutos em termos de salários.

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