segunda-feira, 15 de junho de 2015

O que a Terra dá – breve reflexão ecológica




As ciências da matéria e da energia
As ciências dos vivos
As ciências antropológicas
As ciências do saber
A poluição: fora do laboratório
Os inertes e as células
Ecologia e economia
Apocalipse e regionalização

Eu sou devedor à Terra
A Terra me está devendo
A Terra paga-me em vida
Eu pago à Terra morrendo
(cante alentejano)



1. Pressuposto deste texto, as ciências modernas deram-nos a conhecer quatro grandes histórias cujas problemáticas incidem na crise ecológica: a cosmológica dos astros, incluindo a Terra onde essas ciências se situam, e três terrestres, a da evolução dos vivos, a das sociedades humanas e a do saber greco-latino-europeu, cada uma sendo envolvida pela precedente donde desabrochou. A Filosofia com Ciências (uma nova fenomenologia) é um nível de filosofia entre a filosofia teórica e as ciências, de modo equivalente ao que foi a Physica de Aristóteles entre a Metaphysica e as várias ciências aristotélicas.
2. O motivo heideggeriano de diferença ontológica articula o que o pensador designa como Ser e os entes, aquele doando estes e retirando-se; ora, em 1962, na conferência Tempo e Ser, esse Ser foi substituído pelo motivo do Ereignis, Acontecimento de nível ontológico – o que havia de ‘unidade’ em Ser cede a uma ‘multiplicidade’ doadora – donde os entes serem, em seu ‘ser’ e ‘tempo’, doação retirada desse Acontecimento ontológico. Ora é destes entes, segundo critérios específicos, que se ocupam as diversas ciências[1]. Entre estes dois níveis, o do Acontecimento ontológico e o das ciências dos entes, esta Fenomenologia descreve, a partir das descobertas das diversas ciências, os mecanismos fenomenológicos que o motivo da doação que se retira do Acontecimento ontológico permite descortinar nesses domínios científicos: é isso que a expressão o que a Terra dá explicita de forma geral. Esta expressão pertence à linguagem corrente das actividades agrícolas, aonde aponta para a fecundidade das plantas, mas, na Origem da obra de arte, Heidegger ao reflectir sobre a phusis, a natureza, chama-lhe Terra, o que permite alargar – ao nível da descrição fenomenológica dos mecanismos dos diversos entes – o dom da Terra à doação retirada do Acontecimento ontológico. O que se vai tentar dizer é como em cada um dos domínios científicos tidos em conta (Física Química, Biologia, Ciências das sociedades, Linguística, Psicanálise) se efectua essa doação retirada da Terra, ou seja, indagar como são dados os minerais e os animais, as sociedades dos humanos e as suas invenções em ordem a habitarem a Terra que os dá: sendo mecanismos de autonomia com heteronomia apagada, a autonomia é dada (doação da Terra) pela heteronomia que se apaga (retiro da doação) para que a autonomia seja possível, tendo as mesmas regras do que as outras (heteroi) autonomias equivalentes.
3. Permita-se-me uma pequena digressão sobre a questão de saber se estes mecanismos fenomenológicos são ônticos ou porventura ôntico-ontológicos. Trata-se dum nível que não é o das ‘regras’ que as ciências descobrem, mas que tem (deve ter) incidência no paradigma que descreve a cena de produção e circulação dos entes ou fenómenos (cena da gravitação e da química, ecológica dos vivos, habitação tribal em sentido genérico, cena escolar e laboratorial). O paralelo com a Physica aristotélica diria que esses mecanismos (com a metáfora ‘motor / aparelho’) correspondem ao motivo da ousia e da sua panóplia de motivos, que a Metaphysica trata em termos não fenoménicos, dos entes já não enquanto se movem mas enquanto entes. Seria este o nível do pensamento heideggeriano da doação e retiro do Ser e depois do Ereignis, enquanto que o Dasein, o “ser no mundo” de Ser e Tempo com a sua estrutura da “afeição, compreensão e interpretação discursiva” e do “cuidado”, relevariam do nível da Physica. Enquanto que a différance derridiana, a meu ver, com o seu enigma da indissociabilidade da economia do Mesmo e do excesso do Outro e a sua maneira de ler desconstruindo os textos na sua singularidade, não permite discernir níveis de fenomenologia e de metafenomenologia. Mas é ‘a meu ver’.

As ciências da matéria e da energia
4. A ciência da matéria e da energia é, de todas as ciências que os humanos inventaram, a única que extravasa da Terra e se estende a todos os astros, o que tem uma consequência óbvia: esta Terra, que dá tudo o que é terrestre, é ela própria dada por outros astros, quer as estrelas que criaram os átomos, as moléculas, os graves de que a Terra é feita, quer o Sol e os outros planetas do sistema a que ela pertence. Pouco sei desta matéria, mas presumo que há na geologia uma riqueza de diversidade de minerais, em rochas, oceanos e atmosferas, embora em quantidades muito diferentes, desde a tão abundante sílica e do hidrogénio e oxigénio aos minérios mais raros, riqueza comparada com o que se vai sabendo dos áridos planetas que nos rodeiam.
5. Doada pois ela mesma, antes de se tornar doadora, poder-se-á dizer que a Terra é também doadora de toda essa mineralidade, sólida, líquida e gasosa, vulcânica, sedimentada e metamórfica, que a constitui, com um centro sem acesso ao conhecimento directo? Os vulcões e os sismos que nos aterrorizam por vezes (o ‘terror’ da Terra) assinalam os movimentos que ela sempre conheceu ao ser constituída; também os jogos da energia solar (luz e calor), das marés e inundações, dos ventos e tempestades, sempre produziram fenómenos de erosão e transformação química, de que Lavoisier deu a regra geral: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Esta fórmula diria como a Terra não foge à doação que outros astros dela fizeram e que continuam, mais ou menos perto da Gaia de Lovelock: como astro autónomo doado pela heteronomia astral, continua a ser feita e a fazer-se, e também a fazer doando-se do que lhe foi e é doado, passiva do que recebeu e recebe, activa do que faz doação por sua vez. É que entre matéria e energia a Terra nunca deixou de se transformar, na sua temporalidade de quatro biliões e meio de anos.

As ciências dos vivos
6. Como é que a ciência dos vivos releva da doação da Terra? O que se cria e o que se perde traduz-se nos vivos em nascimento e morte, em reciprocidade relativa: cada vivo nasce de outros vivos e a esmagadora maioria dos cadáveres destina-se a servir de alimento a outros vivos, segundo esta feroz lei da selva[2] que resulta da doação justamente e coloca na mesma lógica geral plantas e animais, a lógica da alimentação. Enquanto que a reprodução sexuada se processa pela geração, entre progenitores e rebentos, a reprodução de cada vivo como crescimento e maturidade faz-se pela alimentação que, nas plantas (que nunca estudei) implica a Terra e o Sol: sabe-se que elas recebem moléculas de carbono em glicose que resulta da fotossíntese com o CO2 atmosférico, da iluminação solar assim, enquanto que os outros átomos de que ela necessita lhe vêm da água e doutros minerais que as raízes colhem do solo da Terra. Este processo de alimentação dá assim às células das plantas as hiper-complexas moléculas de carbono e outros átomos que são próprias dos vivos.
7. Ora, os animais, desde os invertebrados com um mínimo de órgãos digestivos e neuronais, não têm outra fonte dessas moléculas complexas de que as suas células são feitas que não sejam essas plantas que, herbívoros, eles encontram no seu espaço ecológico, enquanto que os carnívoros os caçam a eles, herbívoros, para o mesmo efeito. Pode-se pensar esta alimentação animal através de aparelhos digestivo e circulatório[3] como um fenómeno de redução progressiva dos ‘bocados’[4] comidos até se tornarem nos aminoácidos que chegam às células para aí serem sintetizados nas proteínas de que elas necessitam. A Terra que faz doação é o conjunto de espaços ecológicos com plantas ou animais.
8. Neste sentido fenomenológico, a Terra, incluindo a atmosfera que lhe pertence e a luz recebida do Sol, corresponde à phusis de Aristóteles, o seu archê, o seu ‘poder’ (do verbo que pode, não do substantivo) residindo nesta fabulosa doação de mecanismos que, por alimentação de outros, crescem como entes autónomos que receberam numa célula inicial (ovo: o metabolismo do protoplasma com um núcleo de ADN); é esse mecanismo que lhes permite circular na sua cena ecológica, buscando que comer e capazes de fugirem a serem comidos: recebidos da doação dos progenitores, continuam quotidianamente a receber a doação alimentar na selva ecológica. Os animais são pois capazes de movimento por si mesmos (Aristóteles), auto-móveis, mecanismos autónomos com heteronomia apagada, doação pela Terra que os deixa ser autónomos ‘retirando-se’. E é claro que essa doação também é feita às sociedades de mamíferos bípedes, cuja etologia se tornou de tal modo complexa que deu lugar a ciências autónomas da Biologia, a Antropologia, a História e a Sociologia, além de numerosas ciências sociais relativas a estruturas específicas (nomeadamente a Linguística, ciência das línguas, e a Economia, ciência dos mercados). Mas esta bipartição entre Biologia e Ciências do social, teve e tem um grave inconveniente de ordem fenomenológica (e ecológica, lá iremos mais adiante), o de manter mais ou menos dissimuladamente a oposição platónica e cristã entre corpo e alma, as ciências separando-se assim entre elas. Ao contrário da abordagem de Aristóteles, cujo tratado Da alma é um texto ‘biológico’ que vai até à ‘alma intelectiva’, depois de tratar da ‘vegetativa’ (referente à nutrição) e da ‘sensitiva’ (referente aos órgão dos sentidos e à mobilidade).

As ciências antropológicas
9. A Biologia molecular tornou-se em boa parte uma bioquímica, guardando assim relação com a ciência da matéria e da energia, mas, como disse, as ciências das sociedades humanas padecem de terem cortado com as ciências biológicas e etológicas, apesar de as suas unidades de habitação terem um problema principal que lhes vem da reprodução biológica: garantirem a alimentação quotidiana dos seus vários membros humanos e velar pela geração e aprendizagem dos que virão tomar o lugar da geração actual. E é a Terra – e não o ‘território’! – que dá procriação e alimento, tal como já aos outros animais e plantas, acrescentando-se uma nova exigência, a de garantir pela aprendizagem que os vários usos de prover à recolha dessa doação que os antepassados foram inventando continuem a ser sabidos: esse saber do seu mundo envolvente, achado pela curiosidade, tanto engenho como necessidade, acumulou-se, ensinou-se, cresceu.
10. A invenção da agricultura trouxe um domínio relativo das sociedades humanas sobre a lei da selva (deixaram de ser ‘selvagens’). Além disso, o excedente de alimentação permitiu a formação de especializações artesanais variadas em vilas rodeadas de campos agrícolas e de gado, mas também a formação duma casta de guerreiros que desenvolveu a lei da guerra que já havia entre tribos (aliada então à lei da selva) com o fabrico de armas metalúrgicas e domesticação de cavalos. Pode-se dizer que o núcleo geográfico destas sociedades consistiu em regiões duma vila com casas de artesanato rodeada de casas agrícolas que a alimentavam: provavelmente essa estrutura é o esqueleto da evolução social cuja base de riqueza consiste na (agri) cultura do que a Terra dá. A escravatura terá aí a sua lógica, a de aumentar os benefícios da Terra em latifúndios a favor dos guerreiros que conquistaram / compraram esses escravos.
11. As invenções dos humanos relevaram do fazer (técnicas e rituais) e do seu dizer (receitas e mitos). Com as cidades, os fazeres ganharam instrumentos e os dizeres técnicas de escrita, o que estará no cerne da lógica que levou a grandes reinos e impérios, tendo a difusão de textos copiados dado origem a unidades sociais inéditas, as escolas destinadas à educação dos filhos dos patrícios ricos; na Grécia dos séculos V e IV a. C. e em Roma depois gerou-se uma civilização cosmopolita que desaguou, se dizer se pode de guerras de conquista, no império romano que dominou a geografia mediterrânica durante alguns séculos. Após um bom milénio de regressão das cidades, a dita Cristandade, com o desenvolvimento de artesanatos e comércio em vilas bem como de universidades recuperando saberes antigos, gerou-se lentamente uma nova civilização cosmopolita que veio a desaguar na modernidade europeia, ainda durante alguns séculos com base no trabalho de escravos, vindos de África. A escravatura também era uma doação da Terra, à mercê das armas de fogo que entretanto se inventaram, em má hora para os conquistados, reduzidos a uma espécie de ‘animais domésticos’, lei da guerra que continuou a sobrepor-se à lei da selva. Que a lei da guerra seja predominante na história das sociedades humanas, lei das vontades de poder (substantivo: poder sobre as outras vontades que assim podem menos)[5], não implica pessimismo de concepção da história, já que o que esta conta de optimista é justamente o incessante trabalho de ‘educação’ (em sentido etimológico, o que busca trazer -duc- para fora e- ) como domínio relativo sobre a lei da guerra pelo que em geral merece o termo de cultura, em certo paralelo com o termo agricultura no que à lei da selva se refere. Espiritualidades e religiões, literaturas e filosofia, leis por justiça e direito, artes variadas e desportos, tantas formas de visar conter as rivalidades aonde elas largam o estímulo da concorrência entre quem ‘pode’ – como se diz ‘concurso’ – para o ‘poder’ sobre os outros, para que eles ‘não possam’. O lindo verbo ‘poder’ e o seu nefasto substantivo. Também aqui a Terra dá retirando-se, isto é, nunca as coisas estão acabadas, a cultura implica sempre busca de saber e recomeço com o ensino das novas gerações.

As ciências do saber
12. Houve três momentos decisivos na história greco-latina-europeia do saber, além do que diz respeito ao direito romano e que eu desconheço: o momento grego foi o da invenção da definição (Sócrates, Platão, Aristóteles), o momento cristão foi o da assunção do discurso cristão pelo platonismo (Orígenes, Agostinho, reviravolta aristotélica de Tomás de Aquino), o momento europeu foi o da invenção do laboratório científico (Galileu, Newton entre outros); este último articulou duma forma singular em todas as histórias de humanos que se conheçam, as duas achegas medievais, a do saber universitário filosófico aristotélico e a do labor artesanal das comunas.
13. O laboratório é pois o ‘labor’ ao serviço do ‘saber’. Mas também o seu preço ecológico, que se manifesta na diferença entre o sentido antigo da palavra ‘physica’ e o da nova ‘física’, aquele visando os vivos como os que de si se movem e este medindo as diferenças de movimentos em inertes, isto é, em substâncias que não se mexem delas mesmas, só forças de fora as fazendo mover. Ora bem, esta diferença corresponde à que na geografia evocada há entre os campos – humanos, animais, plantações, tudo se afirmando pela fecundidade que a Terra lhes dá, ela se encolhendo como paisagem – e as cidades, que se organizam com outras lógicas de habitação, de construção e artesãos, de comércio e de negócios, de discussões e de decisões dos que ‘podem’, ou do chefe que ganhou o ‘poder’. Claro que as cidades são de gente viva, a lógica da vida manifesta-se quotidianamente nas refeições – quando há festa, há banquete – e nos dejectos (primeiras poluições em cidades grandes), mas as preocupações citadinas são no fabricar e no trocar, no discutir e estudar, ler, compreender, escrever, ou seja o que nela se afirma merecerá o nome de razão, que vem de ‘ração’ como resultado de partilha: nas grandes cidades modernas os vivos como que estão a mais, árvores, cães e gatos, gente sem abrigo ou sem papeis. Pelo contrário, as casas da agricultura tendem à auto-subsistência, do que colhem da Terra com usos que implicam saberes antigos cuidadosamente guardados como condição da fecundidade, dos campos como das casas. É que também as ‘tradições’ são alvo de critica nas cidades que privilegiam o novo e que, quando não é possível, inventam modas para fingir que é novo. Ora, inventa é sempre modifica o antigo recebido, reduzindo, deixando cair, a parte desse recebido que é recusada pelo novo. Quem inventa não esquece completamente esse reduzido contra o qual se bate, mas a geração que aprende com ele a invenção não saberá já desse reduzido que foi substituído. Há pois esquecimento social dos saberes tradicionais que vão sendo substituídos pelos inventos, a história ‘moderna’ é feita desse esquecimento / inovação, as sociedades antigas pelo contrário recusando as alterações modernas, as querelas Antigos / Modernos renascem constantemente. O que é reduzido e esquecido não se perde todavia necessariamente, é sempre susceptível de ser recuperado posteriormente segundo a outra perspectiva que a inovação trouxe, aonde esta fizer doer: a ecologia joga-se estruturalmente assim, procurando recuperar mais do que conservar, em ordem a compensar prejuízos resultantes das inovações. Pode-se aliás dizer que a psicanálise oferece, ao seu nível de terapia individual, um modelo de saber em que justamente se recuperam memorias esquecidas que fazemfalta, cujo esquecimento provoca sofrimentos.

A poluição: fora do laboratório
14. Só em cidades é que o laboratório podia ter sido inventado. Ele é filho da também já citadina definição, como esta delimita o que nela entra para ser medido, reduzindo o contexto em que as coisas são dadas (pela Terra, pois), reduzindo portanto as forças e efeitos todos que essas doações implicam de maneiras complicadas de compreender: o laboratório só sabe, e quanto bem isso não é, do que mede dentro dos seus muros; para extrapolar esse saber para fora dele ‘especula teoricamente’ que as coisas, sob as tais ‘forças e efeitos todos’, obedecem às leis que o laboratório descobriu. E se se diz que a ciência ‘especula teoricamente’, é para assinalar que muita coisa fica por saber do que se passa fora dos muros. Ora bem, quando a nova Física desaguar na invenção da máquina um ou dois séculos depois, haverá juntamente com as novidades de grande espanto das inauditas indústrias também efeitos perniciosos igualmente inauditos, o que se chama poluição não sendo mais do que efeitos fora dos laboratórios daquilo que só pôde ser inventado dentro deles: os ditos efeitos secundários, os que não se previram e que nem sempre se sabe explicar. O que chamamos automóvel é ao mesmo tempo tanto a admirável invenção dum mecanismo que se move por si mesmo, que até aí só os animais e os humanos (veio substituir a carruagem e a carroça!), como a poluição das atmosferas das cidades, em que a lógica predominante não é a das regras dos vivos, mas a da construção, da produção, do comércio. É onde está a raiz do problema ecológico.
15. A poluição com origem nos vivos, própria das grandes cidades sobretudo, resolve-se com esgotos e reciclagem de detritos orgânicos, não é onde haja problemas difíceis, como a que consiste nos efeitos de produção sobre a atmosfera (explosões de motores e centrais energéticas), substâncias radioactivas, efluentes químicos (insecticidas, pesticidas, venenos), plásticos e por aí fora, que se expandem nos rios e águas freáticas, fontes de águas potáveis, oceanos, e intervêm pois na chamada cadeia alimentar, além dos efeitos nas saúdes. Que lógica fenomenológica se esconde neste tão grave problema?

Os inertes e as células
16. Há duas formas elementares de matéria terrestre, ambas se encadeando a dimensões microscópicas, a dos átomos e suas moléculas minerais, e a das células feitas de moléculas orgânicas (com base de carbono), as quais chegam à nossa vista desarmada respectivamente como inertes e como vivos. A fenomenologia dos átomos, dentro dos limites de temperatura e pressão do planeta, pode ser descrita como resistindo à desintegração por efeito das forças nucleares e oferecendo-se às forças da gravidade, por um lado, e, por outro, à transformação química na proximidade molecular, esta jogando melhor com gases e líquidos ou pastosos. A violência geológica da terra em seus cataclismos tem a ver com estas propriedades. É a fenomenologia dos vivos que mais interessa a ecologia. O segredo deles é a fecundidade, o que já tanto espantou Aristóteles, que eles cresçam (em grego phuô, donde phusis) e se reproduzam, o preço é a sua vulnerabilidade, de que a morte é a consumação. Esta fragilidade é-lhes intrínseca, resulta de que a fecundidade, o moverem-se por si num ambiente ecológico que os dá, implica que as moléculas orgânicas, as da bioquímica, sejam muitíssimo mais complexas dos que as dos inertes, compostas de aminoácidos mais simples e aguentam-se mal, degradam-se facilmente em suas partes, donde que, além da geração, cada célula necessite constantemente de se alimentar de aminoácidos (que ela sabe ‘sintetizar’ no metabolismo através destes mecanismos extraordinários operados pelos ARNs e pelos ADNs), necessite de os encontrar na cena ecológica. Em termos de entropia, a bioquímica representa uma produção entrópica, como mostrou Prigogine, mas a qual sendo uma estabilidade instável, precisa de ser mantida e acaba finalmente por ser vencida como entropia de Clausius. Mas que a Terra dê a fecundidade como a coisa mais forte do mundo terrestre, não significa pacifismo, já que há duas formas de violência da busca da fecundidade enquanto busca de crescimento: uma releva das plantas, é a que faz as selvas e os matos, com uma verdadeira luta entre plantas, raízes e troncos, sei lá, para conquistarem lugares, sementes excessivas para que outros rebentos rebentem, como a linguagem traduz tal violência; a outra releva dos animais, como acima se referiu que estes se alimentam de outros vivos nessa inacreditável lei da selva que não vejo os biólogos darem por ela, obnubilados pelo nível da bioquímica.
17. Ora, a evolução que se desenvolveu das consequências desta lei violenta seleccionou, entre modos de muitas astúcias, formas de dimensão maior e os respectivos músculos e bocas predatórias. Sendo a lógica inerente aos vivos a busca de crescimento e nos animais ela precisando de complexidade neuronal crescente, os humanos receberam da lei da selva os músculos e a dissimulação engenhosa que os levou ao deslocamento da lei da selva para lei da guerra enquanto lei da história, da evolução das sociedades humanas. Vivemos numa época cosmopolita e ecuménica, pacifista e anti-racista, o que impede de se perceber que as necessidades do próprio crescimento, do pequeno para o grande, implica que as unidades sociais se estruturem segundo uma privacidade protegida que olha todos os outros como ‘estranhos’, como se fossem a priori rivais, fenómeno que se repete nas aldeias, nos bairros das cidades e seus clubes, nas regiões, enfim nos países de línguas e usos diferentes, em que os estranhos são estrangeiros. São os paradigmas do que gera o ‘próprio’ (que cresce dentro da propriedade) que, para conter as rivalidades entre os seus indígenas, é levado a fomentar a unidade deles através da rivalidade para os de fora. A lei da guerra manifesta-se aí de forma clara e não há maneira de a impedir de se jogar, apenas tentar dominá-la por alianças, leis, tratados, etc. Porque é que isto é assim? Porque a doação pela Terra dos animais como mecanismos autónomos implica que estes a recebem passivamente mas em simultâneo (devido ao retiro da doação aquando da sua inscrição) apropriação activa dela, dinamismo da autonomia (desejo, vontade), destinado a circular na selva ou na tribo, devendo, para se alimentar, afirmar-se violentamente face aos outros. Donde que a história se tenha traduzido quase sempre em guerra pelo crescimento, os poderosos ocupando sempre mais e mais lugares, guerra de conquista: reinos e impérios, escravos e colónias. E por aqui voltamos à ecologia, aos efeitos dos inertes industriais sobre os vivos.

Ecologia e economia
18. A ecologia (etimologicamente, o discurso da habitação) nasceu da constatação da contradição entre as duas lógicas inerentes à economia (etimologicamente, a regra da habitação), a da produção e a da vida, no que há de efeitos excessivos numa que se revelam nefastos à outra. Heidegger, ainda não se falava de ecologia, disse que “o humano habita como poeta na Terra”, a poesia sendo o cume do discurso, acima do da ciência porque devendo nortear a civilização além do que ela produz, “nem só de pão vive o humano”, dizia a tradição bíblica. A grande dificuldade é que ecologia e economia, para já não falar de poesia nem de espiritualidade, não se encontram, na raiz que lhes é comum, ‘eco’, não têm nada em comum. Eis a distância entre elas: primeiro, a lógica ‘física’ da matéria / energia, segundo, a lógica ‘técnica’ da máquina e da produção química, terceiro, a lógica ‘empresarial’ da produção, entre financiamento, custos, salários e lucros, quarto, a lógica ‘mercantil’ das lojas, quinto e último, a lógica dos ‘vivos’ que comem e respiram. É claro que do ‘primeiro’ ao ‘quarto’, todos comem e respiram, mas só dão por isso depois, mais tarde, muito tarde, quando os ecologistas clamam ‘poluição!’.
19. São todos, somos todos especialistas de um segmento qualquer anterior ao comer e respirar, ninguém sabe do percurso todo, ainda que o discurso ecológico se encha também de números, globais e apocalípticos. Não tenho experiência de discussões entre especialistas diferentes, apenas de constatar que o que proponho sobre ‘ciências’ não é entendido por cientistas com quem busque conversar. Mas ainda que se chegasse a um entendimento relativamente consensual (a politica é feita disso!), há o problema do que a Terra dá, está a dar sem cessar (aquilo que Heidegger chamou Ge-stell), as instituições todas que laboram e trocam e poluem: se tudo é dado pela Terra e de tal maneira que ela retira a sua doação como condição do movimento mesmo das instituições que se foram criando, não é possível, já não digo ‘parar o funcionamento’ das coisas todas, mas alterar esse funcionamento de forma significativa em termos ecológicos. A contradição actual pode resumir-se assim: o que a Terra dá implica crescimento e ocupação de lugares e inevitavelmente rivalidades e conflitos, mas o crescimento tem sempre limites, entre máximos e mínimos, equilíbrios homeostáticos; ora, estamos a chegar a um limiar máximo de produção, em que é o próprio crescimento que se torna prejudicial ao conjunto dos vivos mas a grande ‘máquina’ continua quase cegamente. Ninguém sabe o que é que haveria que fazer, não pode haver senão achegas para atender a tal ou tal poluição, para ir diminuindo tal e tal produção nefasta. O que se pode deduzir destas dezenas de anos de movimentação ecológica, é que há questões que se vão conseguindo dominar, mas que há factores gerais, digamos, que fogem a todo o controle, excepto quando acidentes muito graves obrigam a decisões radicais, como acabar com as centrais nucleares no Japão por causa de Fukushima. O que indicaria que serão as crises ecológicas que provavelmente obrigarão a correcções drásticas que ainda possam vir a tempo.
20. Mas há questões a que sou mais sensível e que fogem, creio, a este tipo de lógica de correcção progressiva. Uma delas é a que desabou sobre nós, Europeus do Sul, vinda do sistema financeiro americano, que devastou economias (que se basearam demais no crédito, à instigação do próprio sistema financeiro). Os mecanismos relativos à moeda funcionam com um elemento de irracionalidade, de desejo de ganhar que vira facilmente ganância, a regulação do sistema financeiro que havia desde os tempos da crise de Roosevelt tendo sido deitada aos ventos pelos neoliberais, Freadman, Reagan e Thatcher tanto mais grave quando os meios de transferência electrónica geram velocidades impressionantes, que só multiplicam a irracionalidade do sistema e os seus efeitos devastadores. É a própria ciência económica que precisa de se tornar ecológica na sua racionalidade científica, de ter em conta os efeitos políticos sobre a habitação dos humanos.

Apocalipse e regionalização
21. Viemos do anidrido carbónico como condição da origem da vida dos organismos animais e chegámos ao anidrido carbónico como poluente predominante da vida animal: a atmosfera antes da invenção da vida não tinha oxigénio, era o anidrido carbónico que nela predominava e onde a evolução das plantas foi buscar, por via da fotossíntese, o carbono necessário às suas células, despejando na atmosfera o oxigénio que tornou possível a evolução dos animais. As combustões de carvão e petróleo estão a devolver a atmosfera aos seus inícios, eis o paradoxo. Hans Jonas explicitou o apocalipse desta forma serena. “Assim a festa cheia de sorte (happy-go-lucky) de alguns séculos industriais será paga com milénios de alterações na natureza terrestre, por um acerto de contas cósmico não injusto, uma vez que nesses séculos ter-se-ia esbanjado a herança de milhões de anos de vida passada”[6]. Poucas centenas de anos a deitarem fora os 600 milhões de anos da história dos organismos! Após as três histórias terrestres de que se partiu, a Terra volta de novo a ser um astro no meio de outros, quase árido como eles, despojada tudo o que ela deu! Lembra-me uma fabulosa fábula de Nietzsche, um século antes da de Jonas. “Num canto qualquer do universo espalhado no flamejar de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da ‘história universal’: mas foi apenas um minuto. Mal se deram alguns suspiros da natureza e a estrela congelou, os animais inteligentes tiveram que morrer”[7].
22. Mas poderá ser menos drástico, o apocalipse deixar alguns restos. Teríamos uma lição da história a elucidar-nos como seria, a maneira como ao longo dos séculos V e VI da nossa era, o império romano do Ocidente tomado por populações ‘bárbaras’ viveu um apocalipse ‘imperial’: as super-estruturas do império, administração e exército, implodiram e a Cristandade medieval foi uma geografia de regiões, como se evocaram os alvores da agricultura, que durou uma boa dezena de séculos até outra coisa se engendrar a prenunciar a Europa. Tudo dependerá desses restos, dos saberes que restarem aos novos ‘bárbaros’, que não tenham que reinventar a máquina e a electricidade. Ou então, em menos drástico, para dar para as próximas gerações: tratar-se-á de, em vez de continuar a querer crescer até à demência, aproveitar o flagelo do desemprego para partilhar os empregos que há entre todos e diminuir o tempo de trabalho a favor de tempos de autonomia e liberdade, de jogos e de cultura, de invenções de formas de viver, sei lá! A electricidade, as energias renováveis, a agricultura, a internet, são muito favoráveis a formas descentralizadas de organizar a sociedade, anti-hierarquias e com menos burocracias. Seja como for, aprendemos com esta crise que nada se fará sem algum apocalipse: este, para nós, evoca catástrofe, mas em grego significa ‘revelação’. Da Terra e das suas doações, a serem melhor aproveitadas.



[1] Obviamente que cada Dasein humano também releva dessa doação retirada, sem que Heidegger todavia dê o menor sinal, nos seminários de Questions IV, posteriores à conferência de 62, de ter atendido a essa consequência.
[2] A que raros escapam, como os incinerados, por exemplo da actualidade.
[3] Ao invés das formas simples dos unicelulares e primeiras colónias deles, que recebem da água envolvente as moléculas de que necessitam.
[4] Em sentido etimológico, os pedaços que cabem numa ‘boca’.
[5] Adulteração do motivo de Nietzsche, em que o ‘pode’ era de pujança.
[6] Hans Jonas, O princípio de responsabilidade, 1979, versão ingl. 1984, p. 190 (citado da tese de Marília Carrilho, A fundamentação filosófica das noções de cuidado e de responsabilidade no pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo, Univ. de Évora, 2015)
[7] Início de “Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral”, in O livro do Filósofo [póstumo de 1873]. É a mesma fábula de H. Jonas, mas com um zoom de escala mais pequena.

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