segunda-feira, 4 de maio de 2015

A Cultura, a partir de A. J. Saraiva



1. Foi uma crónica recente de Pedro Mexia no Expresso, “Provocação”, que me provocou, ao expor como António José Saraiva concebia a cultura como “o costume, a norma, a integração da subjectividade, e portanto a direita; ao passo que a esquerda representa as ‘ideias’, ou seja, a contestação à cultura”. A noção provocatória de esquerda / direita interessa-me menos do que a noção de ‘cultura’ (oposta às ‘ideias’), “a estabilidade de convicções e símbolos colectivos”, esclarece Mexia, que me parece corresponder ao motivo de ‘tradição’, a que ‘progresso’ se opõe.
2. Aconteceu-me propor o motivo de ‘cultura’ duma forma que pode parecer próxima desta e foi á diferença que fui provocado, é ela que me importa aqui marcar. Essa estabilidade de costumes foi tradicionalmente garantida pelas religiões, em sociedades em que a economia e a riqueza eram essencialmente de tipo agrícola, sujeitas à fecundidade das plantações e dos rebanhos (como hoje à produtividade): a religião era uma instância holística, integrava todos, vinha dos Antepassados, de quem se receberam os usos e costumes e que, estando ausentes, sepultados, têm efeitos no presente, o que as entidade sobrenaturais e imortais atestam em mitos e rituais: há que fazer como os nossos pais sempre fizeram, explicavam aos antropólogos e aos missionários. Tendo a ver com a fecundidade incerta, dom dos deuses, o sagrado intervinha de múltiplas formas na vida de todos os dias.
3. O que chamamos cultura afirmou-se nas sociedades cosmopolitas que misturaram as populações e portanto os antepassados e as religiões, e afirmou-se justamente rompendo com este sagrado religioso: o seu gesto decisivo é o da modernidade por excelência, a critica parcial da herança das tradições, incluindo a religião. Atestam-no os fundadores dos dois pilares da cultura europeia. Sócrates: “só sei que nada sei” significa que tudo o que me ensinaram de ancestral não vale como saber; o que explica que tenha sido condenado à morte por impiedade em relação aos deuses. Jesus: “aprendeste que foi dito aos antepassados [...] ora bem, eu vos digo que”, esta fórmula de contestação de Moisés aparece 6 vezes no cap. 5 do evangelho de Mateus; também ele foi condenado à morte pelo poder religioso. Nenhum deles escreveu uma linha mas os escritos dos seus discípulos contribuíram poderosamente para abrir espaços cosmopolitas, o do helenismo pelas escolas filosóficas, nomeadamente as se reclamando de Platão; ambos foram decisivos na fundação das universidades medievais sem as quais não teria havido Europa; e ainda a reforma protestante e o lugar da leitura do livro evangélico nela foi decisiva na diferença entre o espaço norte da Europa onde o capitalismo e a industrialização medraram e o sul que ficou fechado às sete chaves da religião.
4. O que significa que o motivo cosmopolita moderno de cultura com o lugar essencial da escrita nela, implica o motivo de escolha critica na tradição (‘escolha’, em grego, dizia-se ‘heresia’): pouco importa com quem ela começa, é a sua propagação que a torna ‘cultura’, mas apenas cultura de uns tantos, muitos talvez, mas não todos; já a Antiguidade grega e romana foi ‘moderna’. Como a religião, a cultura também reenvia para Antepassados, só que agora eles têm nomes e datas das suas obras, invenções, textos, quadros, músicas, homens e mulheres de acção, e por aí fora. Foi a escola que se tornou a instituição holística (que veio substituir as igrejas, tornadas minoritárias), a escola obrigatória para todos, que estabelece as bases das tradições culturais. Mas basta ver como ela, à medida que aprofunda os graus de conhecimento, os vai especializando e eliminando os que não aguentam a pedalada, para se perceber que não há nenhuma cultura geral, para toda a gente, afora as bases escolares, o ler, escrever e contar e pouco mais. Mesmo a língua, que permanece com a gastronomia, a melhor candidata ao holismo cultural, só o é ao nível dos primeiros graus escolares, que permite a todos os cidadãos entenderem-se; acima começa uma iliteracia que se tornará regra, até entre especialistas de especialidades diversas: somos todos mais ignorantes do que sabedores do saber que hoje se sabe. 

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