segunda-feira, 18 de maio de 2015

O pensamento que vem sem se querer e a sua verdade



1. Há aquela frase de Nietzsche, uma das suas fulgurâncias como não quer a coisa, ele está a criticar o motivo europeu de ‘sujeito’: “um pensamento vem quando ‘ele’ quer e não quando ‘eu’ quero” (Para além do Bem e do Mal, § 17). Eu tenho há muito o pressentimento de que é esta experiência, com pensamentos de alta qualidade, que está na base do que se chama ‘idealismo’ em filosofia, em Platão e Descartes por excelência, já que a ambos se deve a atitude moderna extrema, a de recusar tudo o que se aprendeu, “sei que não sei nada” recebido de Sócrates, a dúvida metódica: a modernidade é o gesto de escolher na tradição, avaliá-la, guardar umas coisas e procurar prescindir de outras. Nesses dois iniciadores, um da escola grega, outro da europeia, não se quer guardar nada, mas inventar de novo tudo o que for para ensinar na academia. Dito assim, é algo que parece tremendo – tudo treme – e quase néscio, como disse alguém: quem não quiser repetir nada do que os outros disseram dirá coisas que ninguém repetirá. Elementar. A não ser que tenha havido uma experiência de pensamento de tal forma envolvente que o que se sabia, aprendera, apareceu (de repente ?) mesquinho, ridículo. Algo veio e, gente de qualidade tal que esse vir se pôde manifestar, perceberam logo que não veio do ‘querer’ deles, que se tratava de algo que os ultrapassava: a divindade era a hipótese da origem de tão forte vinda.
2. A nós hoje não nos é permitida já essa derivação para o divino, porque sabemos bem que só de muito ler bons pensadores acedemos a um modesto pensar e que a vaidade do próprio pensamento é sintoma de que ele é mesquinho, insignificante, se não se lhe pode dar alguma genealogia, alguma ‘influência’ deste ou daquele, como se dizia dantes, que muita energia se consumia à procura das influências em tal ou tal escritor. Mas isso não significa que não possamos ter experiências como a que Nietzsche refere, quem as não tem ainda estará verde nestas coisas de pensar, seja em que arte for. A questão: é possível compreender essa experiência da vinda dum pensamento tal que eu sei, indubitavelmente, que ele não veio de mim ? Em teoria, na minha maneira fenomenológica de compreender, julgo que ela faz parte do enigma irredutível de cada humano, nem o próprio nem um ‘especialista’ do autor poderão ‘explicar’ este fenómeno. Mas poder-se-á colocar a questão de forma geral, desde que o enigma faça parte dessa colocação. Eis o que quereria tentar, se algum pensamento quiser vir.
3. Ao ponto de partida, linha nevrálgica da argumentação, tenho aludido por vezes: é a passividade própria da aprendizagem – começar por não saber – que se tornará actividade depois de aprendido, não sabia, agora sei. Quem nos ensinou, retirou-se, porventura morreu, o saber que ensinou continuará, se o merecer, é certo, pode-se esquecer por irrelevância, como acontece a tanta coisa aprendida no liceu por exemplo e que dura pouco mais depois do exame. A hipótese da morte daqueles com quem se aprendeu a falar e a pensar (e usos vários) ajuda a perceber o estatuto do ‘mestre’ no ‘aluno’, que não está ‘presente’ nem ‘ausente’, já que deu o que estrutura a actividade e que, retirado embora, continua nos efeitos do que ensinou, que perdura em boa parte a vida toda. É este o estatuto do antepassado: nem presente nem ausente. O que é que provoca esse ‘retiro’ do mestre de quem se aprendeu? Ele e outros ensinarem coisas novas que se acrescentam ao saber anteriormente recebido. Seja o exemplo extremo duma criança que viva com uma só pessoa que a única coisa que lhe diz é uma dada oração, essa criança não saberia dizer mais nada do que repetir essa oração, tal o papagaio da vizinha que repetia as lengalengas do terço que ela dizia em voz alta: quando a senhora morreu, os vizinhos que herdaram o papagaio e não eram crentes, não percebiam nada do que ele papaguiava. Para aprender a falar por si, tem que ouvir coisas muito variadas, de preferência de várias outras pessoas, que não apenas de uma. É este leque de variabilidade, em que as falas ouvidas se substituem umas às outras em sucessão temporal, que permite que as regras da língua se cruzem de frases em frases, conversas em conversas, sejam aprendidas, isto é, façam a criança dizer coisas dela mesma, não ouvidas tais quais. Espantemo-nos um momento de estas regras não serem ensinadas gramaticalmente ou como num dicionário mas duma maneira inacreditável, isto é, que não me parece possível de qualquer explicação teórica, já que essas regras nunca se manifestam por elas mesmas (as morfologias dos verbos, os acordos de singular e plural, feminino e masculino, preposições e conjunções, etc. etc.): aos 5 ou 6 anos já lá estão, activas, a dar o que dizer e a deixar dizer, aprendidas heideggerianamente. E são as mesmas regras das dos outros falantes da tribo, heteronomia (a lei dos outros todos) que foi dada por esses outros falantes cujo retirar deixa a autonomia do falante. Ora bem, quando o retiro? Logo que a conversa acaba, ou quando outra começa. Falar e pensar vão juntos nisto, voz e discurso. E a variedade dos que dão as palavras e as regras e o seu retirarem-se permitem que o que é assim doado se cruze na fala da criança à sua maneira (mistérios da sua química cerebral) tendendo para estabelecer um estilo de falar e de pensar que a pouco e pouco – o aprender a falar e a pensar nunca pára numa vida – se estabilizará tanto quanto for possível com as oscilações das novas aprendizagens, das descobertas de saber. Mas é condição de todo este processo de aquisição de saber que o mundo da tribo – trata-se de seres no mundo – seja o mesmo para todos e aquele que ‘aprende’ aprende a tornar-se ser nesse mundo que ele aprende, com todas as dificuldades que os usos e os conflitos e as alianças colocam e que intervêm nas várias falas tribais.
4. Saltemos da tribo à aprendizagem filosófica. Grosso modo, o processo é equivalente, em mais complexo, equivalente ao de qualquer adulto que é envolvido por vários paradigmas de ‘saber’, de ‘pensar’, um é doméstico consoante a sua tribo social (classe, região), outro é profissional mais ou menos especializado, outro faz ponte entre ambos, se se pode dizer, de ordem cultural ou outra: eis o que se presta à singularização maior do estilo em relação aos familiares como aos colegas de profissão, presta-se à variedade de ocupações de lazer favoritas, empenhos sociais, políticos, espirituais, e por aí fora. Mas tais paradigmas, distintos, não são ilhas, conectam-se na singularidade do dizer / fazer de cada um, onde a experiência da citação de Nietzsche pode ocorrer: quantas vezes não se descobre a pólvora nessa procura de compreender-se a si e ao mundo em que se é, e que bem isso não é, ainda que possa fazer rir à volta quem anda noutra: mas é um bom sintoma em quem assim se dirige para aprender a pensar segundo a tradição filosófica ocidental. Há várias escolas de pensamento nessa longa tradição, há vários domínios de questões filosóficas; aliás, além da filosofia há literaturas e outras artes, e há problemáticas sociais e politicas, há questões de civilização, umas maiores do que outras, algumas despontando, outras desaparecendo. Há pois muita escolha (em grego, ‘heresia’), e em consequência será grande a variedade dos caminhos seguidos pelos professores que se vão encontrando, como a da literatura filosófica que se lê. Como quem navega entre escolhos, o processo de aprendizagem tem uma dose grande de aleatório, consoante os encontros que se fazem, de professores, de livros, de colegas. Claro que quando se escolhe estudar filosofia, já se tem algumas questões, mas essas em geral são tragadas mais ou menos rapidamente com a aprendizagem que se vai acentuando, substituídas por questões mais elaboradas a que se vai tendo acesso; não impede que o estilo que se foi ganhando desde criança será dominante, será ele que ganhará uma vertente filosófica. Pode até inverter-se, por certo, como aconteceu a muitos esquerdistas do Maio 68 e do 25 de Abril que viraram à direita, por vezes onde era negro passou a branco e o que era branco a negro, mas o estilo manteve-se.
5. Encontram-se com frequência leitores dum só livro, fans- de fanáticos, da Bíblia, de Marx ou de Friedman, são como a criança fictícia que só aprendeu uma oração, como o papagaio da vizinha. ‘Pensamento único’ é contraditório – como ‘partido único’, uma parte implica sempre outras – com as variedades que houve e há, não é pensamento. Sem dúvida que o estilo que se foi ganhando implica que haja escolas ou correntes que sejam deixadas de lado sem grande cultivo, já que é ele que serve de guia ao leitor que se é e que, do que lê, aprende ou critica. Mas tal como a criança que ouve gentes diferentes de diferentes saberes e daí se vai estruturando melhor ou pior, é de crer que a variedade relativa das leituras seja, juntamente com uma certa teimosia do estilo, a condição da possibilidade dum pensamento inesperado, que agora não seja já descoberta da pólvora como as da adolescência. Os autores que se lêem e os professores que se escutam ‘agarram’ a passividade do aprendiz que, mais do que só memorizar, vai ligando o que vem daqui e o que vem dali, mais ou menos explicitamente mas também porventura justapondo sem se dar conta da ligação, e muito menos da ligação a coisas que vieram muito antes e que nem sempre vêem à consciência do leitor, a não ser quando escreve. Ora, é na escrita que o milagre do pensamento ocorre melhor, escrevo num sentido, uma frase e outra frase e delas resulta uma terceira inesperada, sem ser por querer, sem que eu saiba como. Outras vezes, a escrita emperrou e é na pausa, quando nos deitamos ou de manhã nas primeiras higienes, ou quando se vai a guiar, vagueando o pensamento, é quando se não espera que vem uma solução para o que estava emperrado, surgem uma ou duas frases que continuam as que tinham parado. Esta creio ser a situação mais frequente, onde os peripatéticos, que discutiam passeando, tinham razão: mudar a posição do corpo que escreve ou fala, que busca e emperra, é muitas vezes boa receita em casos desses.
6. Mas a mais interessante e rara, a que Nietzsche sem dúvida mencionava como quem não quer a coisa, é o pensamento que vem a alguém que não anda em busca dele, ou se anda, não sabia que andava. É algo que está perto das narrativas de conversão espiritual que mudam vidas, instauram um antes e um depois. É aonde é mais óbvio, a quem recebe tal pensamento e o reconhece (talvez apenas algum tempo depois), que não sabe explicar como é que isto lhe veio à cabeça, como se tivesse sido apanhado por um laço que, de tanto que a-prendeu, o prendeu e não o deixa mais. A Paul Valéry que lhe perguntava se andava sempre com um caderno para notar os pensamentos que lhe vinham à cabeça, Einstein terá respondido com algum desprezo que nunca tivera senão duas ou três ideias na vida e que essas nunca mais o largaram. A questão é: se aquele a quem assim veio um pensamento muito mais forte do que ele – como provavelmente terá sucedido aos que veneramos como grandes pensadores, filósofos ou escritores e artistas outros – sabe que tal pensamento não veio dele nem do que aprendeu dos autores seus antepassados de leituras, como compreender o fenómeno? Não penso que haja que recorrer ao motivo psicanalista de ‘inconsciente’, mas o que de leituras diversas, que para ele se mantinham desligadas, nele se ligou e manifestou-se como pensamento inédito sem ele saber como: essa ligação fulgurante deu-se a um nível de memória esquecida, onde estratos diversos se mantinham diversos, sem que possa talvez dar um nome certo a uma influência predominante, ou talvez sim. Maravilha-se da sua sorte, como Heidegger aproximou Denk (pensamento) e Dank (agradecimento): o pensamento é gratuito.

A questão da verdade
7. Que o pensamento assim nos rapte, por muito arrebatador que seja, como se diz, que seja ele a ‘querer’ e não eu, que venha como dom, como graça, não significa porém que ele tenha um selo de verdade. Nem sequer que se revele fecundo como paradigma, sobretudo de multidões, já que pode se tratar de fãs entusiastas. A questão da verdade é bem difícil, já que um pensamento verdadeiro pode vir só a um, por onde sempre começa aliás, sem se comunicar significativamente na sua época, como sucedeu a Copérnico, por exenplo, que nem ele nem Kepler nem Galileu demonstraram o heliocentrismo, apenas Newton um século e meio após a morte de Copérnico: é uma bela demonstração, que ilustro noutro texto deste blogue, mas que nos custou os olhos da cara, já que se impõe contra a verdade deles, destes olhos que a terra há-de comer, a fonte de todas as nossas verdades mais elementares, entre as quais ver o sol a andar de nascente para poente. Assim começou a relatividade, embora então só a Igreja tenha estado perto de dar por esse preço imenso. Há em todo o caso, há um terreno em que a verdade se comprova de forma geral, a das equações físicas corroboradas pelos resultados experimentais que preenchem as respectivas variáveis, e a partir daí a técnica prova a física europeia – a aventura do espaço, no caso do movimento da terra –, como possivelmente não há outra verdade tão comprovável.
8. Todavia, fora do campo da física e da técnica, a verdade relativizou-se dado que no século XIX muitas ciências, da terra (paleontologia), da vida (evolução), das línguas (comparação das línguas indo-europeias), dos textos clássicos (edições criticas), da economia (industrialização e luta de classes), descobriram a historicidade dos seus campos de estudo e portanto a variabilidade da consideração deles segunda as épocas. O pensamento de Hegel, no alvor desse século, buscou integrar a história das civilizações no seu sistema de pensamento e, como na tradição vinda dos Gregos, a história era o lugar do singular e do acidental, só soube defrontá-la nessa sua relatividade recorrendo ao ‘absoluto’ da teologia cristã (que Kant tinha deixado fora da filosofia). Foi o que Nietzsche diagnosticou, anunciando o relativismo que viria (e que veio) como niilismo. Hoje qualquer filósofo que se preze desconfia da noção de verdade, é o mínimo que se pode dizer. Porém, a lei geral que regula as relações humanas por via da linguagem é, não pode deixar de ser, a lei da verdade, sem a qual nenhuma confiança é possível naquilo que outro diz, mesmo o erro só se descortina em contraste com a verdade de que é o erro, ou seja, a noção de erro implica necessariamente a de verdade, assim como a mentira só vinga se tiver as aparências de verdade que não levante desconfianças nos outros, a ficção precisa de verosimilhança (Aristóteles) do seu contexto para ser legível (fora dum ‘contrato’ com o leitor de leitura fantástica).
9. ‘Qualquer filósofo que se preze’, disse, mas houve uma excepção, a do que exerceu a maior reviravolta no pensamento europeu do século XX, Heidegger que propôs uma leitura diferente da ‘verdade’ como a-lêtheia, des-velamento do que velava a coisa que se des-cobre e manifesta a sua verdade ao humano que cuida dela com desvelo. Ora, duma forma que me encheu de espanto e de alegria, este motivo deslocado para as principais descobertas científicas do século XX, permitiu uma luz nova para essas descobertas, religando-as ao respectivo contexto donde os laboratórios haviam arrancado os fenómenos analisados. E então esse contexto revelou-se cena de produção e circulação dos fenómenos dessas ciências (graves, vivos, discursos, unidades sociais, psiquismos), cena de heteronomia (as regras de todos os fenómenos da ciência) que dá os fenómenos como autónomos, retirando a força dessa sua doação para deixar que haja autonomia. Ora, estes fenómenos jogam numa cena aleatória, o que significa que as regras deles que as ciências descobriram são para lhes permitir circular em condições aleatórias, a que têm que se adequar. Então necessidade das regras e aleatório de cada singular tornam possível uma verdade relativa qque mantém a exigência moderna de relatividade de todas as coisas. O longo capítulo 13 do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida chama-se “demonstração da tese da verdade”.
10. O pensamento que esteve na origem das 1000 páginas destes dois volumes veio-me inesperadamente, arrumava o carro ao chegar a casa num fim de tarde da primavera de 1985. As 5 ciências, que até aí considerava de forma dispersa, vinham já no quadro que guardaram depois, em composição devida ao motivo derridiano de duplo laço, e com elas também a técnica no seu espécimen decisivo da civilização industrial, a máquina (exemplificada pelo automóvel). O guião inicial apurou-se em complexidade, mas não se desmentiu na dezena de anos que demorou a escrever-se. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Os Passos que o Tempo dá



            1. Propus num texto anterior deste blogue – há vários sobre o tempo – contra a noção corrente, desde Agostinho de Hipona, pelo menos, de que não se sabe dizer o que é o tempo, não há uma definição dele, propus que a de Aristóteles na Physica “o tempo é o número [a medida] do movimento segundo o anterior e o posterior” (IV, 219 b 1) – desmente esse cepticismo, é mais do que a melhor definição possível, é uma definição excelente: ela implica que o tempo é derivado do movimento (como também o espaço, a distância). Só há tempo porque há movimento, mudança, o que significa que ele/a é o sujeito oculto das frases que têm a ver com o tempo, e não este, embora substantivado. Então, como disse noutro texto do blogue, são as coisas que são temporais, cada uma tendo o seu tempo, mais ou menos complexo, o tempo da sua vida ou duração, como parece comprovar este termo, ‘duração’, um dos raros que pode substituir tempo, com o verbo ‘durar’ e a preposição ‘durante’.
            2. Propriamente falando, não há um verbo derivado de tempo, para dizer a sua acção, não existe ‘tempar’ nem ‘intempar’, ‘destempar’, ‘retempar’, e por aí fora. ‘Temporizar’ ou ‘temporalizar’ são verbos com sentido mais restrito do que seriam esses verbos gerais que não há, e é possível que se passe algo de semelhante com ‘espaço’. As formas mais próximas de ‘tempar’ (ou ‘espaçar’, criar espaço) serão talvez ‘dar tempo’ (e ‘dar espaço’), já que ‘durar’ não se diz com tempo como sujeito: ‘o tempo dura’, ‘durou’, ‘durará’, mas ‘o tempo que isso dura’, ‘isso’ reenviando a um movimento, a algo de temporal, um ser vivo, uma reunião, um presidente, uma paisagem...
            3. Numa conferência do físico francês Étienne Klein (“Le temps existe-t-il?”, 12/06/2006), ele sugere o que pode ser uma boa maneira de abordar a questão, a análise do que os linguistas chamam a polissemia da palavra ‘tempo’ (ele diz “polifonia”), os usos diversos numa dada língua que lhe conferem sentidos diferentes que não são substituíveis (comutáveis, em calão linguístico) pelas mesmas palavras. Uma tal análise, mais do que uma competência por aí além, pede muito tempo, razão pela qual me limito a um exemplo de Klein que ele não desenvolve: o tempo passa.
            4. Com efeito, depressa ou devagar, o tempo passa. E ao tempo que fica para trás, chamamos passado, o tempo que passou: a passagem do tempo é uma expressão recorrente. O verbo ‘passar’ estará mais perto, ou tão perto, de ‘durar’, ambos são verbos que dizem o tempo como duração, como passagem. Enquanto que ‘durar’, com raiz em ‘duro’, consistente, parece dizer o que permanece na existência além do tempo, apesar do tempo quiçá, sem conotação ao espaço, o ‘passar’, tão temporal que é, é igualmente espacial, passar dum lado para outro. Isto é, o passar do tempo parece ser uma metáfora do movimento humano de andar, como constituído por uma sucessão (temporal, portanto) de passos que se repetem, ora o pé direito ora o pé esquerdo tomando a dianteira sobre o outro, um passeio.
            5. Poder-se-ia dizer que o passo é uma forma elementar do movimento humano que cobre distâncias, como confirma a maneira inglesa de usar o ‘pé’ como unidade de comprimento: o passo será uma metáfora de distância espacial, comparável com a clássica ‘linha’ geométrica utilizada para dizer e medir o tempo duma sucessão de instantes, de ‘pontos’. Mas o passo vai mais longe do que a linha, já que serve também para caracterizar a diferença num passeio entre, por um lado, o que se já andou, já ‘passou’, o anterior da definição aristotélica, o ‘passado’ sendo os passos que se deram até chegar ao tempo de agora, de hoje, e, por outro, o tempo presente; os passos não andam para trás, se se volta atrás são outros passos mudaram de frente, mas sempre para o posterior, o futuro. E presente, passado e futuro é a maneira da morfologia dos verbos, das ‘acções’, classificar e repartir as suas diversas e tão ricas formas, em línguas como o grego, o latim e o alemão, face à indigência morfológica dos verbos ingleses.
            6. Ao ganharem importância devido ao verbo ‘passar’ ter passado a dizer o tempo substantivado como passagem – para o que provavelmente a física europeia, o progressismo iluminista, o lugar do tempo nas ciências do século 19, o uso dos relógios na regulação da vida diária, foram decisivos enquanto reforço –, ‘passado’, ‘passar’ e ‘passagem do tempo’ esqueceram (como diria Heidegger) a sua relação etimológica com os ‘passos’: ‘passar tempo’ deixou de ser ‘dar passos’, ninguém quando fala no ‘tempo que passa’, em passado ou em passatempos pensa em passear, enquanto que a linha geométrica mantém-se claramente metáfora do tempo linear. O passo e o passeio é todavia provavelmente a melhor maneira de des-substancializar o tempo e de o restituir às coisas, à imensa variedade das suas temporalidades, à complexidade dos seus passos.
            7. A conferência de E. Klein é inteligente, um físico que se abalança a filosofar sobre o tempo. Nomeadamente sublinha que o princípio da causalidade, essencial em física, implica que a causa seja anterior ao efeito; que o passado (que não a sua leitura por nós, acrescente-se) não pode ser modificado; que a física de relatividade deu cabo da noção de simultaneidade (para velocidades próximas da luz apenas, creio). E é sua questão fundamental a do laço entre o tempo e os fenómenos temporais, os acontecimentos. Há sem dúvidas outras observações interessantes, mas o filósofo não consegue deixar de reparar em como a filosofia de Klein, a que recebeu no liceu, como todos os físicos e cientistas, “a filosofia espontânea dos sábios” de que falava Althusser, é inadequada ao tema. Distingue entre pensamento e linguagem e acha que esta sobredetermina aquele, como se ele pensasse fora da gramática e da semântica francesas ou inglesas. Como bom físico, opõe pensamento (e linguagem implicitamente) às coisas da realidade: a função do tempo, diz, não é passar mas fazer passar a realidade, donde a conclusão que tudo passa excepto o tempo; a certa altura mostra como a sua concepção de tempo é a da linha como sucessão de instantes, em que o instante presente se renova, sem que tenha sentido falar em velocidade do tempo. Acabei por não perceber se ele acha ou não que existe o tempo.
            8. Ora, ele recusou logo ao princípio “como facilidade” recorrer a Aristóteles, não consegui perceber porquê, não parecia o preconceito contra este filósofo que os cientistas clássicos tiveram durante alguns séculos, já que também não quer recorrer a Kant, filósofo de que, por regra, os cientistas gostam. Mas se tivesse olhado com atenção para a definição da Physica, poderia perceber que ela faz a ligação entre o tempo e os fenómenos temporais que ele queria, isto é, entre o tempo e o movimento, mas dando prioridade a este, ao contrário do que Klein faz ao longo de todo o seu discurso: chega a dizer que há muitas temporalidades diferentes no mesmo tempo, o que dá a entender que este é o tempo dos físicos (dos relógios), aliado do espaço na teoria da relatividade (espaço-tempo), prioritário por isso mesmo que é uma dimensão privilegiada da sua ciência, juntamente com o espaço. Ora, não só Aristóteles trata o tempo como segundo em relação ao movimento, questão doutro texto deste blogue, como também precisa como: é o seu número, isto é, a sua medida! Ora, nem uma só vez a noção de medida (que o tempo é dado em números) foi evocada por Klein como essencial ao tempo, este como período (dia e ano, os mais óbvios, números dos dois movimentos da terra), como diferença numérica entre tempos. Além disso, a definição acrescenta algo que a linearidade do tempo, a linha geométrica ignora, a noção de anterior e posterior, que é a posição no tempo do que o avalia e mede, como a metáfora dos passos ajuda a perceber. O velho Aristóteles deu uma bela definição de tempo, o problema é compreendê-la. Falta acrescentar que à 'distância' como medida do espaço, a 'duração' é a medida do tempo.
            9. E do espaço, que acrescentar? Se os passos vão dum lugar para o outro, o movimento espacial é o percurso entre dois lugares que se mede como distância, como diz a etimologia de geo-metria. Porquê este privilégio do lugar sobre o espaço? A física do século XX ajuda a perceber: o núcleo de cada átomo, protões e neutrões ligados por força nuclear, é o que resiste a toda a penetrabilidade, a todo o movimento de outro átomo que queira ocupar o seu lugar. É esta impenetrabilidade, que até os átomos das moléculas dos gases, da atmosfera, têm, que obriga a que qualquer movimento seja a passagem do átomo dum lugar para outro, o percurso duma distância espacial, seja uma transformação química, seja uma queda devida à gravidade.

            10. Resumindo e concluindo. O tempo e o espaço são (as duas) maneiras de medir  (com números) os movimentos e as diferenças entre eles. O tempo é a duração medida entre dois momentos (acontecimentos). O espaço é a distancia medida entre dois lugares. Nem acontecimento nem lugar têm números enquanto tais. Datas e longitudes / latitudes / cotas de altitude são diferenças entre acontecimentos e entre lugares, respectivamente.

P.-S.  um ano depois, a 7 de maio de 2016, a ler um livro de Paulo Varela Gomes, entretanto falecido ainda novo mas valente, O verão de 2012, encontro esta passagem.
"A questão do tempo cronológico era outra das suas obsessões: o calendário, disse, não é uma trajectória em si, mas apenas um instrumento que permite medir regularmente a trajectória dos dias e das estações do ano. O calendário, bem como o relógio, são instrumentos de uniformização da medida de todas as trajectórias e de todo o movimento, e a tal uniformização chamamos tempo, a dimensão não física mas hermenêutica na qual o movimento acontece" (p. 19). Muito bom!

segunda-feira, 4 de maio de 2015

A Cultura, a partir de A. J. Saraiva



1. Foi uma crónica recente de Pedro Mexia no Expresso, “Provocação”, que me provocou, ao expor como António José Saraiva concebia a cultura como “o costume, a norma, a integração da subjectividade, e portanto a direita; ao passo que a esquerda representa as ‘ideias’, ou seja, a contestação à cultura”. A noção provocatória de esquerda / direita interessa-me menos do que a noção de ‘cultura’ (oposta às ‘ideias’), “a estabilidade de convicções e símbolos colectivos”, esclarece Mexia, que me parece corresponder ao motivo de ‘tradição’, a que ‘progresso’ se opõe.
2. Aconteceu-me propor o motivo de ‘cultura’ duma forma que pode parecer próxima desta e foi á diferença que fui provocado, é ela que me importa aqui marcar. Essa estabilidade de costumes foi tradicionalmente garantida pelas religiões, em sociedades em que a economia e a riqueza eram essencialmente de tipo agrícola, sujeitas à fecundidade das plantações e dos rebanhos (como hoje à produtividade): a religião era uma instância holística, integrava todos, vinha dos Antepassados, de quem se receberam os usos e costumes e que, estando ausentes, sepultados, têm efeitos no presente, o que as entidade sobrenaturais e imortais atestam em mitos e rituais: há que fazer como os nossos pais sempre fizeram, explicavam aos antropólogos e aos missionários. Tendo a ver com a fecundidade incerta, dom dos deuses, o sagrado intervinha de múltiplas formas na vida de todos os dias.
3. O que chamamos cultura afirmou-se nas sociedades cosmopolitas que misturaram as populações e portanto os antepassados e as religiões, e afirmou-se justamente rompendo com este sagrado religioso: o seu gesto decisivo é o da modernidade por excelência, a critica parcial da herança das tradições, incluindo a religião. Atestam-no os fundadores dos dois pilares da cultura europeia. Sócrates: “só sei que nada sei” significa que tudo o que me ensinaram de ancestral não vale como saber; o que explica que tenha sido condenado à morte por impiedade em relação aos deuses. Jesus: “aprendeste que foi dito aos antepassados [...] ora bem, eu vos digo que”, esta fórmula de contestação de Moisés aparece 6 vezes no cap. 5 do evangelho de Mateus; também ele foi condenado à morte pelo poder religioso. Nenhum deles escreveu uma linha mas os escritos dos seus discípulos contribuíram poderosamente para abrir espaços cosmopolitas, o do helenismo pelas escolas filosóficas, nomeadamente as se reclamando de Platão; ambos foram decisivos na fundação das universidades medievais sem as quais não teria havido Europa; e ainda a reforma protestante e o lugar da leitura do livro evangélico nela foi decisiva na diferença entre o espaço norte da Europa onde o capitalismo e a industrialização medraram e o sul que ficou fechado às sete chaves da religião.
4. O que significa que o motivo cosmopolita moderno de cultura com o lugar essencial da escrita nela, implica o motivo de escolha critica na tradição (‘escolha’, em grego, dizia-se ‘heresia’): pouco importa com quem ela começa, é a sua propagação que a torna ‘cultura’, mas apenas cultura de uns tantos, muitos talvez, mas não todos; já a Antiguidade grega e romana foi ‘moderna’. Como a religião, a cultura também reenvia para Antepassados, só que agora eles têm nomes e datas das suas obras, invenções, textos, quadros, músicas, homens e mulheres de acção, e por aí fora. Foi a escola que se tornou a instituição holística (que veio substituir as igrejas, tornadas minoritárias), a escola obrigatória para todos, que estabelece as bases das tradições culturais. Mas basta ver como ela, à medida que aprofunda os graus de conhecimento, os vai especializando e eliminando os que não aguentam a pedalada, para se perceber que não há nenhuma cultura geral, para toda a gente, afora as bases escolares, o ler, escrever e contar e pouco mais. Mesmo a língua, que permanece com a gastronomia, a melhor candidata ao holismo cultural, só o é ao nível dos primeiros graus escolares, que permite a todos os cidadãos entenderem-se; acima começa uma iliteracia que se tornará regra, até entre especialistas de especialidades diversas: somos todos mais ignorantes do que sabedores do saber que hoje se sabe.