quinta-feira, 9 de abril de 2015

A Constituição pode defender-nos do Capital sem pátria


1. É o que explica o texto do Público de 2 de Abril, Trinta e nove anos da Constituição de 1976: entre a tradição socialista e a deriva liberal”, assinado por Francisco Alves Rito, mestre em Direito Constitucional (UL). Pela primeira vez vejo alguém abordar uma questão que me preocupa há bastante tempo: a do controle do capital electrónico sem pátria por via politica, pelos Estados. Esta crise desmedida que, vinda da banca dos Estados Unidos, caiu sobre a Europa e condenou ao empobrecimento acelerado, sob o nome de austeridade (palavra de que gosto) os países que andavam a querer crescer à custa do crédito, condenação essa feita em nome das dívidas a capitais preguiçosos que andam à caça de presas incautas, como os vampiros do Zeca Afonso, mas não castigam os ‘incautos’, antes o povo miúdo, como de costume.
2. Primeira citação: “no texto original da Constituição de 1976 [...] é afirmada ‘a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno’ ”. Segunda: “a crise económica e financeira, que ainda estamos a viver, constitui um ataque sem precedentes à legitimidade material do nosso direito constitucional, colocando em xeque a sua autoridade moral (como a define Luís Pedro Pereira Coutinho)”, jovem professor de Direito da U. Lisboa. A primeira permite-lhe comentar como a direita vem pretendendo rever a Constituição em termos liberais quando a crise actual mostra que, pelo contrário, a revisão deverá ser feita em ordem ao social; ao que eu acrescentaria uma observação: ‘sociedade socialista’ não é hoje mais do que ‘sociedade social democrata’, isto é, dotada dum sólido Estado social que proteja os cidadãos mais vulneráveis, justamente os que foram vítimas da austeridade empobrecedora de quem já era bastante pobre. A segunda citação põe a questão de fundo, a da defesa, face aos ataques financeiros “sem precedentes”, vinda da “autoridade moral” da Constituição, que ainda de alguma coisa nos valeu, como o autor refere, mas, terceira citação: “a verdade é que, na vastidão dos seus 32 mil vocábulos, a CRP não encontrou respostas para a generalidade dos problemas supervenientes, suscitados por uma nova realidade político-económica ultraliberalizada pela financeirização extrema da economia; não assegurou o primado da política sobre a economia [artigo 80.º alínea a)], princípio basilar que deveria ter a força jurídica das normas preceptivas, de aplicabilidade directa e eficácia imediata, e, com esta fraqueza, meteu o lobo de Wall Street dentro do galinheiro dos direitos fundamentais, tanto dos sociais como dos de liberdade”.
3. Quarta citação. “Ao demitir-se de ter mão na economia, [...] o direito constitucional — o nosso, assim como o do mundo dito "ocidental", em geral — perdeu a guerra às externalidades, designadamente o combate ao desemprego e a batalha pela afirmação plena e universal da dignidade da pessoa humana. Chegámos ao ponto de, perante um desemprego real da ordem dos 30%, não percebermos que o problema, embora mascarado pela crise, é estrutural e não meramente conjuntural (eu subl). As taxas de desemprego socialmente aceitáveis e economicamente suportáveis são coisa do passado, mas entretanto continuamos a procurar mecanismos para aumentar o horário de trabalho e o período de vida activa, não querendo ver que a solução necessária e adequada é outra, que passa pela valorização do trabalho e pela sua justa repartição como factor principal, nos nossos dias, da redistribuição da riqueza”. Foi aqui que rejubilei!
4. Se, por um lado, pensarmos que o Direito foi, durante os tempos da consolidação da revolução industrial, a disciplina científica capaz de se focar sobre a globalidade de cada sociedade moderna e que as constituições exibem como ocupou esse lugar e, por outro, que a Economia veio substituí-lo como o discurso global que hoje ela é de facto, a globalização dando-lhe uma eficácia de ‘números científicos’ que a faz intimidar qualquer outro discurso, desvalorizado enquanto ‘moral’ ou ‘humanista’, percebe-se que há um confronto entre o global das economias e o local de cada Estado e sua população e constituição, que faz destes parte fraca, complexa em suas regras e conflitos, face àquela, aos seus números e à rapidez electrónica com que eles se movem eficazmente. Ora, a economia dependendo muito do sistema bancário e este duma dimensão de ‘confiança’ (‘crédito’ implica ‘crença’) que as crises põem à prova de maneira vertiginosa e irrecuperável (como mostra o triste caso do BES), parece incapaz, enquanto ciência social do mercado, de conseguir que os mercados nacionais de compra e venda de mercadorias sejam relativamente imunes às especulações financeiras vadias.
5. O que Francisco Alves Rito explicitou foi como o papel do direito constitucional continua a ser fundamental e que para isso tem que ser reformulado em ordem à mudança estrutural que provém da tecnologia e que provavelmente vai implicar menos tempo de trabalho e mais tempo de actividades livres, quiçá solidárias. Ora, isso só será possível com a revisão dos critérios da distribuição da riqueza: sendo esta produzida por máquinas e outros inventos de ordem científica que são produto da história do saber humano, este por sua vez relevando da aventura dos sábios europeus, do ‘universal’ e do ‘humanista’, isto é de todos, antes da sua apropriação empresarial. Ou seja as populações e o seu direito a viver, à habitação na Terra (Heidegger), têm preponderância sobre os lucros do capital, os quais aliás também necessitam do poder de compra, dos salários e pensões dessas populações, como os economistas nos ensinam.
6. Última citação: “é certo que o novo paradigma constitucional, de efectiva regulação económica, face ao fenómeno da globalização, depende de uma nova ordem internacional e desde logo europeia, que passa por uma nova concepção de Estado, assente nas pessoas, que implica novos modelos de organização do trabalho e de fruição social e cultural do exponencial aumento da capacidade tecnológica e produtiva, mas não é menos verdade que apenas o direito constitucionaal comparado é insuficiente para avaliar da aptidão de qualquer lei fundamental”. Interdisciplinaridade entre Economia e Direito, portanto. Mas também que as coisas andem já pelos conflitos e tentativas de solução, de que o caso da Grécia e das instâncias ‘comunitárias’ da Europa é um exemplo que parece mal encaminhado, mas precisará com certeza duma solução adequada à população grega. Já Mª de Lourdes Pintasilgo clamava por “um novo paradigma”.

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