sexta-feira, 20 de março de 2015

Paul Feyerabend : um empirismo desatado, mas simpático



1. Comprei uma versão francesa do Contra o método (1975, ed. Seuil, 1979) há muitos anos e de vez em quanto lembrava-me da minha vontade de ler o texto, com curiosidade pela maneira como ele tratava a relação de Galileu com Copérnico mais do que pelo anarquismo que antecipava um pouco quixotesco. Com efeito, para um filósofo das ciências as suas análises de história da ciência são inexcedíveis, tantos são os aspectos a que dá importância. Nomeadamente, tem em conta a atenção (quase impossível) ao que Galileu e os seus contemporâneos não sabiam da física posterior: tendo morrido no ano em que nasceu Newton, ele ignorava-o, claro, mas é a nós que é difícil ignorá-lo, embora uma análise minuciosa dos textos (à maneira do Barthes de S/Z e de Derrida) tenha justamente essa vantagem de nos aproximar dessas ‘ignorâncias’ dos seus autores, embora pedindo um conhecimento histórico razoável dos contextos. Ora, apesar de estar nas antípodas destas maneiras de ler os textos, Feyerabend puxa o seu empirismo ao máximo para descortinar os variados aspectos da maneira como Galileu agiu em relação a Copérnico, sem método, claro. Não sendo fácil para mim dar uma ideia do livro, cito o resumo que ele faz dos 6 capítulos em que se ocupa destes dois astrónomos da Renascença.
2. “Resumo o conteúdo dos seis últimos capítulos. Quando a ‘ideia pitagórica’ do movimento da Terra foi ressuscitada por Copérnico, ela encontrou dificuldades que excediam mesmo as dificuldades encontradas pela astronomia ptolomaica da época. Em termos estrictos, dever-se-ia considerá-la como refutada. Galileu, que estava convencido da verdade do sistema coperniciano, e que não partilhava a crença totalmente espalhada, mas de maneira nenhuma universal, muma experiência estável, procurou novos tipos de factos para podendo validar Copérnico e no entanto podendo ser aceites por todos. Esses factos, obteve-os de duas maneiras diferentes. Primeiro, pela invenção do seu telescópio que transformou o núcleo sensorial da experiência quotidiana e substituiu-o por fenómenos problemáticos inexplicados; e em seguida pelo seu princípio de relatividade e a sua dinâmica que transformaram as componentes conceptuais da experiência. Nem os fenómenos telescópicos nem as ideias novas sobre o movimento eram aceitáveis para o senso comum (ou para os aristotelicianos). Alem disso, podia-se facilmente demonstrar que as teorias associadas eram falsas. No entanto, estas teoria falsas, estes fenómenos inaceitáveis foram deformados por Galileu e transformados em validações poderosas de Copérnico. Todo o rico reservatório de experiência quotidiana e de intuição dos seus leitores intervinha no raciocínio, mas os factos que eles eram convidados a recordar eram arranjados duma maneira nova: faziam-se aproximações, omitiam-se efeitos conhecidos, desenhavam-se linhas conceptuais diferentes, de maneira que aparecia um novo género de experiência, praticamente fabricado em todas as suas peças. Esta nova experiência era de seguida apoiada insinuando ao leitor que ela lhe era familiar desde sempre; em breve ela era aceite como verdade de evangelho, ainda que as suas componentes conceptuais fossem incomparavelmente mais especulativas do que as dos senso comum. Podemos prtanto dizer que a ciência de Galileu repousa sobre uma metafísica ilustrada. Esta deformação permitiu a Galileu avançar, mas ela impediu quase todos os outros de o seguir no seu esforço para fundar sobre a sua ‘démarche’ uma filosofia critica (ainda hoje se põe o acento nas suas matemáticas, ou nas suas pretensas experiências, ou sobre os seus frequentes apelos à ‘verdade’, enquanto que a sua táctica de propaganda é inteiramente negligenciada). A minha opinião é que a contribuição de Galileu foi deixar as teorias refutadas sustentarem-se mutuamente, e construir assim uma nova imagem do mundo, ligada fracamente (se alguma vez o foi!) à cosmologia anterior (experiência quotidiana incluída); ele estabeleceu conexões com truques com os elementos perceptivos dessa cosmologia, elementos que só hoje puderam ser substituídos por teorias boas (óptica fisiológica, teoria do conteúdo); sempre que possível, substituiu factos antigos por um novo tipo de experiência, que ele inventou muito simplesmente para validar Copérnico. Lembremos de passagem que o procedimento de Galileu reduziu consideravelmente o campo da mecânica: a dinâmica aristotélica era uma teoria geral da mudança, compreendendo a locomoção, a mudança qualitativa, a geração e a corrupção; a dinâmica de Galileu e dos seus sucessores só trata da locomoção, todo o outro aspecto de movimento sendo posto de lado com, em nota apenas, essa promessa (vinda de Demócrito) que a locomoção será eventualmente capaz de incluir todos os movimentos. Assim uma teoria empírica global do movimento[1] é substituída por uma teoria bem mais restrita, a que se acrescenta uma metafísica do movimento: exactamente como uma experiência ‘empírica’ é substituída por uma experiência que contém elementos especulativos. Creio qe foi esse o método efectivamente seguido por Galileu. Procedendo assim, ele fez prova dum estilo, dum sentido de humor, duma ‘souplesse’ e duma elegância, assim como duma consciência das fraquezas felizes do pensamento humano, não igualados na história das ciências. Há ali uma fonte quase inesgotável de matéria para a especulação metodológica e, coisa bem mais importante ainda, para a redescoberta destes traços pelos quais o conhecimento não apenas nos informa, mas também nos alegra” (pp. 175-7).
3. Sabe-se que Galileu não conseguiu demonstrar o heliocentrismo, nem Copérnico nem Kepler, apenas Newton o fez[2], cruzando as leis deste último que Galileu não considerou. Onde ele ‘inaugurou’ a Física europeia foi no Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências, mormente dando conta do primeiro relato que tenhamos duma experiência laboratorial, com o célebre balde com água para pesar o tempo. É certo que não li os últimos dois ou três capítulos em debate com Imre Lakatos, mas que me lembre não encontrei não só nenhuma referência significativa a esse texto de Galileu como também não ao lugar do laboratório na ciência, o que aliás é costume dos filósofos das ciências. Ora, esse texto era bem mais difícil para argumentar ‘contra o método’, mas ainda bem que temos este que é extremamente elucidativo, quer da relação Copérnico Galileu, quer da noção de ‘método’ das filosofias das ciências, quer das possibilidades da de Feyerabend. Com efeito, a sua ginástica intelectual é fabulosa, ele joga como bom empirista ‘americano’ a partir da distinção entre ‘teoria’ e ‘factos’ como exteriores uma aos outros, mas consegue aproximar-se da recusa dela (p. 67). Por exemplo, o paradigma de Kuhn inclui as duas instâncias, a teoria comandando a experiência, consegue ultrapassar as problemáticas da percepção, que têm uma grande importância em Feyerabend. E interessaram-me ao recordar o que ele chama a teoria aristotélica da percepção. A sua “concepção de conjunto [geocentrismo e teoria do conhecimento sensível] define o movimento como transição duma forma [eidos, species] entre o agente e o paciente, transição que termina quando o paciente possui exactamente a mesma forma que caracterizava o agente no princípio da interacção. A percepção, em consequência, é um processo no decorrer do qual a forma do objecto percebido penetra naquele que percebe, com precisamente esta mesma forma que caracteriza o objecto, de maneira que aquele que percebe, num sentido, é afectado das propriedades do objecto” (p. 159). Saltei na cadeira ao ler isto que soube noutros tempos e me esquecera: desde que se passe da percepção para o movimento da aprendizagem, encontra-se nada mais nada menos do que a teoria dos grafos de Changeux[3] Grande Aristóteles! Sem nada a ver com a “óptica fisiológica” que Feyerabend considera algures substituir o “realismo ingénuo” do Estagirita (ibidem), “hoje considerado como falso” (p. 161). Repetindo os gestos de aprender a guiar um automóvel, eles inscrevem-se cerebralmente, o que se chama ‘percepção’ fazendo parte do conjunto dos gestos, sem necessitar de nenhuma ‘óptica’!
4. Não posso deixar de citar o retrato que Feyerbend traça da “ciência do século XX que, ao contrário dos seus predecessores imediatos, abandonou qualquer pretensão filosófica, e tornou-se um ‘negócio’ poderoso, que informa a mentalidade dos que a praticam. Um salário elevado, boas relações com o patrão e os colegas na sua ‘unidade’, são o que visam principalmente as formigas humanas que são excelentes a encontrar a solução de problemas minúsculos, mas não podem comprrender nada do que transcende o seu domínio de competência. As considerações humanistas são reduzidas ao mínimo [“o desejo de aligeirar o sofrimento tem pouco preço na investigação”, citação de 1961], assim como qualquer forma de progredir que ultrapasse  os melhoramentos locais [...] Que alguém dê um grande passo em frente – e a profissão devota-se a transformar-se em máfia para submeter os outros pela força” (pp. 206-7). Felizmente que o alvor da ciência devido a Mariano Gago não é ainda compatível com este estado de coisas.
5. Tendo em conta a consideração feita acima – Galileu não inaugurou nenhuma ciência nem nenhum método científico no texto sobre o heliocentrismo – é difícil perceber o porquê desta escolha do exemplo de Feyerabend, a não ser uma concepção ‘filosófica’ de ciência, o que se pode chamar um empirismo desatado em que tudo vale e nada se distingue. Nomeadamente, a ignorância do papel decisivo do laboratório (é ele que ‘decide’ da ciência), que a experiência da queda da bolinha num plano inclinado ilustra como o primeiro relato laboratorial de ordem histórica, é obviamente sintomática e deita por terra toda a argumentação ‘contra o método’, já que não se sabe onde é que este pode ser procurado. O que faz o laboratório é uma redução do contexto dos fenómenos da realidade habitual, de maneira a poder isolar condições de determinação que permitam detectar causas e efeitos. A maioria das razões aduzidas por Feyerabend desvanece-se, as percepções e as considerações sobre o ‘estilo’ de Galileu não têm cabimento adentro do laboratório, apenas no diálogo consequente entre cientistas e leitores. Tratando-se de física, acresce a matemática e as medidas a que Feyerabend não presta nenhuma atenção, é o mínimo que se pode dizer. Ora, as equações da física – que foram inventadas por físicos, não por matemáticos – coordenam-se intrinsecamente com os resultados experimentais, cujas medidas vão ocupar o lugar das variáveis dessas equações. É neste ponto que teoria e experiência são indissociáveis uma da outra, equação e variáveis fazem uma unidade, embora haja que acrescentar que são também inconciliáveis, a experiência é uma objecção à teoria. O que significa que é a equação que tem o lugar de teoria, o que se chama habitualmente assim não sendo senão o discurso de origem filosófico-científica em linguagem conceptual que interpreta a equação e sem o qual não se sabe o que esta significa. A comprovar esta afirmação, as diversas técnicas científicas procedem a partir das equações comprovadas e escolhem as dimensões do que há de científico nos artefactos usando-as. Mas também os mesmos resultados podem variar de teoria explicativa sem que a cientificidade laboratorial seja afectada.
6. Donde se conclui que não se podem extrapolar sem mais os resultados laboratoriais para fora do laboratório, é essa extrapolação que está na origem do execrável determinismo cientista, contra toda a evidência que é a própria necessidade do laboratório. Pelo contrário, tal como um automóvel é laboratorialmente feito segundo regras muito precisas, essas mesmas regras estão ao serviço do aleatório do tráfego. Como tenho explicado vezes sem conta neste blogue a utilidade duma Filosofia com Ciências.



[1] Pretender que “Aristóteles é um empírico” (p. 160) é não ter compreendido o papel da Physica comandando as várias ciências http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2012/02/version1.html.
[2] Não deixa de ser notável o tempo que levou: Copérnico morreu em 1543, praticamente um século antes de Galileu, que nasceu em 1564, vinte anos de intervalo sem contar com os tempos de aprendizagens. Entre Copérnico e a demonstração do heliocentrismo passou quase um século e meio!
[3] http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2008/02/difcil-questo-neurolgica.html

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