quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A primeira verdade das ciências europeias


1. Será que se pode dizer que existe uma, embora não de ordem cronológica? Julgo que é a tabela periódica de Mendleeiev. O raciocínio é simples, é o seguinte. Onde quer que haja pensamento, condição de ciência, em qualquer língua, a ordem dos números, ainda que não ‘exista’ formulada, é inegável: uma coisa, mais outra são duas, e outra três, e por aí fora, adição e subtracção, multiplicação e divisão, são logicamente imanentes, qualquer que seja a maneira das línguas o dizerem ou nem sequer.
2. Não creio que isto seja uma ‘verdade científica’, mas é condição delas. Ora, a tabela periódica de Mendleeiev (1869) constrói-se segundo esta ordem natural dos números em termos de protões e de neutrões, ainda que haja complicações com os isótopos além desta lista dos átomos que começa no hidrogénio e segue uma ou duas dezenas além do número 100, sem que nenhum falte. Mas o sábio russo não sabia dos átomos, que só vieram no século seguinte, usou o critério do 'peso atómico'. Com uma outra surpresa: de 8 e 8 colunas (7 para ele, os gases raros, 8ª coluna, também não eram conhecidos) os elementos químicos da tabela tinham o mesmo tipo de propriedades, o que tornava 'científica' a tabela, não apenas uma sequência dos números inteiros a ordenarem-nos (mas já se andava à procura da coisa desde o início do século).
3. Que as moléculas compostas destes átomos ‘naturais’ sejam de possibilidades indefinidas, além das quantidades de cada uma – sílica das rochas, água dos oceanos, gases vários de atmosferas – dá para surpresas quanto à composição de astros, mas não para que haja outros átomos do que aqueles que a tabela descreve.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Hannah Arendt, crítica de Heidegger sobre o ‘mundo’ do ser no mundo




1. Descobri que lia o I Heidegger com os óculos que emprestava ao II Heidegger, lia o ser no mundo à luz do retiro do ser, que foi o que me galvanizou em 1989, ao escrever o Heidegger, pensador da Terra (para o centenário dele, por encomenda duma editora que faliu, por isso só foi editado em 91).
2. Não se trata aqui duma auto-crítica, mas duma reavaliação. No texto anterior sobre Os ‘deuses’ de Heidegger, disse como ler especialistas me permitia perceber melhor a distância entre os textos dele e as minhas leituras interessadas, marcadas por outras leituras e questões, como este blogue atesta suficientemente. Ora, o que sucedeu nessa escrita aonde se ‘depositou’ o meu Heidegger, como se diz dos vinhos velhos, foi que Ser e Tempo foi abordado por um pouco cima, lendo certos capítulos e fiando-me em leituras doutros, em geral pouco preocupados com os textos do Heidegger do pós guerra, ficando por isso um tanto vago, já que não era então o meu interesse maior. Ora, nos 8 ou 9 anos que vieram com a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, foi emergindo o motivo do ser no mundo como uma forte ruptura com a oposição sujeito / objecto da filosofia europeia, que relacionei com a aliança dela com o laboratório da física, mormente na maneira como Kant introduziu Newton na sua Critica da razão pura[1]. A questão é: qual a força dessa ruptura em Ser e Tempo? Qual é a relação que o Dasein guarda com o ‘sujeito’, sendo certo que desaparece o motivo de ‘objecto’? Nos seminários dos anos 60 (Questions IV) parece haver um cordão umbilical do Dasein ao ‘sujeito’ que resiste à minha leitura (a comparação irónica com o ‘sem janelas’ de Leibniz é significativa!). À luz da diferença ontológica, entre o Ser ontológico e qualquer ôntico ente humano, como situar o Dasein? Se é um motivo ontológico, que diferença tem com qualquer ente humano? E com as ciências que se ocupam de humanos, biologia, antropologia, linguística? Por exemplo, as duas definições de humano na Política de Aristóteles, ‘animal politico’ e ‘animal com discurso’ (logos), referem-se aos domínios essas três ciências, enquanto que o ‘sujeito’ europeu não se refere a nenhuma: o ‘sujeito’ não é biológico nem social nem tem língua duma tribo. Ora, sabe-se que Heidegger é muito cauteloso em relação nomeadamente à introdução de antropologia nas suas análises (e com razão: seria inevitavelmente uma antropologia moderna, pelo menos de sociedades cosmopolitas, dado que ainda hoje as ciências das sociedades não têm confessadamente um conceito de sociedade que valha tanto para as tribos da etnologia como para as sociedades das várias civilizações históricas até às actuais). Então qual é o alcance do ser no mundo? Tratei-o alegremente, sem estas preocupações. Até que um destes dias li um texto tratando das diferenças entre Hannah Arendt e Heidegger que me fez saltar a questão: qual é o ‘mundo’ do ser no mundo?.
3. Trata-se duma conferência em Espanha de Seyla Benhabib (Harvard), El reluctante modernismo de Hannah Arendt. El dialogo con Martin Heidegger[2] que compara o texto de Arendt, Vida Activa, com Ser e Tempo, partindo duma carta a Jaspers em que ela conta como Heidegger levou o livro muito a mal, já que ela lhe apareceu pela primeira vez como pensadora e em desacordo com ele. Benhabib busca compreender em que é que consiste a desavença. Ora, do pouco que conhecia dela, sobretudo uma biografia, eu suspeitava que ela ficara aquém do ser no mundo mas verifico agora que ela escreveu que “é quase impossível oferecer uma explicação do pensamento de Heidegger que possa ter relevância politica sem um estudo elaborado do seu conceito e análise do mundo”. Mostra Benhabib como justamente o que ela propõe é outra interpretação do ser no mundo, achando insuficiente a proposta de Ser e Tempo, e é isso mesmo que provoca o desconforto do Mestre, a rebeldia da discípula sobre os seus próprios motivos. Os conhecidos motivos de Arendt relativos à actividade dos humanos são esclarecedores. O labor diz respeito aos cuidados do corpo, seu sustento e alimentação assim como higiene, ou seja diz respeito à condição biológica dos humanos que Heidegger ignora: nem o nascimento nem a alimentação são tidos em conta, nem em rigor a morte biológica, já que é a antecipação da morte que permite ao Dasein chegar à autenticidade (há assim um critério ético a jogar aqui), enquanto que perecer é próprio de todos os animais. O trabalho é a actividade que cria o ‘mundo’ em sentido heideggeriano, constrói-lhe uma habitação, edifícios e culturas, sendo a única dimensão dos humanos que Heidegger (quase) retém para substituir os ‘objectos’ de Husserl, os que lhe estão à mão e não apenas à percepção. Finalmente a acção é a actividade entre humanos em sua pluralidade, onde se situa a politica nomeadamente; bizarramente o Ser-o-aí-com (Mitsein) de Ser e Tempo é assinalado mas como um actor sem papel atribuído, o Ser-o-aí é descrito de forma solipsista, tal como a ‘alma’ de outrora ou o ‘sujeito’ europeu, acrescente-se. Lembrando-nos que Heidegger dizia que qualquer animal tem pouco mundo em comparação com o humano, é caso para dizer que o mundo do Dasein em Ser e Tempo também é poucochinho: do social que poderia corresponder ao mundo em que ele é lançado só tem a língua (supostamente no discurso, para antecipar a morte) e a utilização instrumental de coisas, Derrida ironizando algures que ele nunca é definido como vivo. Pode-se pensar que o cuidado é a categoria ontológica, existenciária, que cobre todas as suas actividades, que estas são ônticas, objecto de ciências, enquanto que Heidegger não sai da filosofia. A minha questão é saber se estas “actividades” de Arendt não pressupõem aspectos ontológicos interessantes para abordar os humanos como seres no mundo, sem ter necessariamente que fazer intervir condicionantes antropológicas das diferentes sociedades históricas.
4. Numa biografia publicada no centenário do nascimento de Heidegger, Thomas Rentsch diz que ele desenvolveu uma “teologia sem Deus”: “a prostração dos humanos num mundo inautêntico, cita Benhabib, a finitude da existência humana enquanto criatura destinada a uma vida de preocupação e finalmente o pensamento da própria finitude fundamental”. Enquanto que, deslocando o ser-para-a-morte para a natalidade, Arendt “ressuscita o quotidiano-ser-no-mundo com os outros como condição básica do ser humano [...] natalidade, pluralidade e acção revelam-se categorias que se opõem profundamente a Ser e Tempo”. Mundo negativo nele, positivo nela? Talvez, mas o que significa aqui ‘positivo’ e ‘negativo’? A dificuldade destas coisas é saber dos contextos da época, é a dificuldade de saber ler um texto de Galileu, por exemplo, sem deixar intervir a física posterior a ele que o leitor conhece e ele não. Romancistas católicos da primeira metade do século XX como François Mauriac, Georges Bernanos e Graham Greene testemunham dum mundo fortemente negativo que faz ressaltar a ‘graça divina’, pode-se pensar que Heidegger foi também educado nesse mundo. Mas quando ele pretende romper com o ‘sujeito’ (título a evitar, diz-se no § 10 de Ser e Tempo, como também ‘alma’, ‘consciência’, ‘espírito’, ‘pessoa’, ‘vida’, ‘homem’: tentativa de ter em conta a corporalidade humana sem o motivo do 'corpo', tradicional oposto da 'alma' e do 'sujeito'), situando o Dasein como existindo temporalmente no mundo, Sartre e Levinas testemunham da novidade que aí encontraram, a figura da ‘náusea’ nomeadamente no primeiro bem diversa da ‘positividade’ de Arendt. Pode-se aliás pensar que o ‘mundo do pecado original’ não seria totalmente descabido, com as leis da selva e da guerra a que se virá mais adiante que elas ilustram a negatividade do mundo heideggeriano), do ‘-se’ do diz-se, do ‘man’ (em alemão), do ‘on’ (em francês), assim como o Dasein autêntico deixa espaço para os ‘espirituais’ (que se convertem).
5. A questão é a de saber como testar essa ‘ruptura’ de 1927 quase 90 anos depois, tendo em conta o II Heidegger, o retiro do ser. Este motivo veio a afectar o Dasein? E as três formas de ‘actividade’ de Arendt, avançando em relação a Ser e Tempo, não ficarão aquém de Tempo e Ser, se o Dasein for doado pelo  Ereignis (que ocupa em 62 o lugar que até aí fora o do Ser)? Com efeito, se este motivo ontológico contém no seu sentido os motivos de ‘ser’ e de ‘tempo’, que são doados aos entes ônticos, como pode o ente humano ser excluído? Creio que o Heidegger dos anos 60 não o ‘excluía’ propriamente, mas que também não o ‘incluía’, deixando ver como o ‘sujeito’ ainda espreitava em sua ‘oposição’ ao mundo (como a ‘alma’ de outrora). Ora bem, o que é que significa onticamente a inclusão do ente humano na doação pelo Acontecimento (ontológico)? Significa duas coisas: que ele é gerado, parido, aleitado, por uma mulher que um homem fecundou, e alimentado em seguida constantemente, que ele é instituído como humano pela aprendizagem dos usos da tribo desse casal que o deu à luz. Estas duas coisas dizem que ele é instituído como ser no mundo dessa tribo (família, depois escola também, nas nossas sociedades). Mas então a tal ‘positividade’ de Arendt é também afectada: labor, trabalho e acção são motivos que resultam de se tomar o “ser no mundo com os outros como condição básica do humano”, ultrapassando o solipsismo do Dasein; por exemplo, o motivo da natalidade, da “iniciativa” do que nasce, resulta da doação de possibilildades pelo mundo (só terá iniciativa por aprender os usos dos outros: um bebé que nasce, nu e banhado de sangue, é uma ‘ruína’ a construir “com os outros”). Mas não conheço suficientemente a sua obra para avaliar o que a filósofa de Harvard chama o “relutante modernismo” de Hannah Arendt, para saber que lugar tem no seu pensamento o sintoma crucial do ser no mundo que é a aprendizagem – corolário ôntico, por assim dizer, do retiro da doação que ‘deixa ser’ a autonomia temporal de cada humano em suas possibilidades, abertas pelo seu mundo – ou se deixa aos filósofos esse tipo de questões para se dedicar às que têm a ver com a política e as suas catástrofes.
6. Mostrei nomeadamente no Manifesto (blogue Filosofia.com.ciências) como a lógica da biologia implica que, só havendo as moléculas de carbono de que são feitas todas as complexas moléculas das células (excepto a água) noutros vivos, plantas ou animais, todos os animais não apenas precisam de comer vivos para viverem como também as suas anatomias são estruturadas para isso, segundo a lei da selva, a mais geral de todas as leis biológicas que rege a alimentação. Igualmente, a aprendizagem, dependente da necessária aliança entre gerações que se sucedem, implica rivalidades que se sobrepõem com grande frequência às relações de aliança, tornando as sociedades, internamente e ainda mais face às estrangeiras, submetidas à lei da guerra. Estas duas leis, a segunda sendo sequência reelaborada da primeira, dão ao motivo de mundo um aspecto como que negativo, aquele que é muitas vezes colocado como ‘problema do mal’ ou ‘da violência’. A ética não lhe é prévia mas consequência: leis e razão são maneiras de se conjurarem esta negatividade do ‘mundo’, que é prévia à tal ‘teologia católica’ sem Deus que seria a de Ser e Tempo. Mas tanto a alimentação como a aprendizagem como imperativos sociais pré-políticos, digamos, são na ordem fenomenológica prévios à diferença entre concepções do mundo que seriam ‘positivas’ ou ‘negativas’, ardentianas ou heideggerianas. E que ilustram eles do Dasein de Ser e Tempo ? São ambos imperativos que, em vez de 'anteciprem' a morte, a diferem: a alimentação é o cuidado que adia quotidianamente a morte individual, a aprendizagem das novas gerações adia morte da sociedade; tais diferanças são mais 'antecipadoras' da morte, pois que têm efeito sobre ela, do que a que leva alguns à autenticidade, privilegiada por Heidegger em vista da diferença que se mostra ser ética. 
7. Quanto à questão da “teologia sem Deus” de Ser e Tempo”, não sei se e como ela perdurou como tal no II Heidegger, já que o motivo ontoteológico põe-na radicalmente em questão. Poderia pôr-se a hipótese de o nazismo ter aparecido a Heidegger, conservador pouco politizado, como resposta ôntica pagã inesperada duma superação da negatividade do ‘mundo inautêntico’ cristão, mas de que rapidamente se terá desencantado, tendo-se tornado o seu espantalho filosófico dos anos 30, para o que recorreu a Nietzsche, Hölderlin, outras artes, mas também a Heraclito, Parménides, Junger, Aristóteles, o que justificaria a minha pretensão em Heidegger, pensador da Terra (§§ 44-48) de que terá sido a adesão e posterior repúdio do nazismo o que o provocou à enorme viragem, dum Dasein solipsista, temporal mas não historicizado, para a História do Ser. Mas como as viragens nunca são integrais, acontecem a estruturações antigas que lhes resistem, a força do desafio da técnica nos anos 50 e 60 veio a revelar como tinha ficado um ‘buraco divino’ dessa primeira teologia que teve: se ele não tivesse providenciado para que a sua entrevista ao Spiegel não fosse publicada antes da morte de Hannah Arendt, esta teria ficado boquiaberta diante do “só um deus nos pode ainda salvar”.



[1] J. Vuillemin, Physique et méthaphysique kantiennes, P.U.F., 1955, demonstrou de maneira muito convin­cente a existência dum paralelo rigoroso entre a Analítica transcen­dental da Crítica da razão pura (1781) e os Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786): a sua tese é a de que “pensamento físico e teoria do conhecimento não são senão um em Kant”: é um livro de argu­mentação muito cerrada, difícil de ler por supor um conhecimento aprofundado da história da física desde Galileu a Kant e das suas relações estruturais às filosofias de Descartes e Leibniz, pelo menos.
[2] ed. Episteme, S. L., 1996: trata-se de um dos capítulos dum livro com o mesmo nome.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os ‘deuses’ de Heidegger


1. Foi uma quinta-feira de dilúvio e alegria, a da apresentação do livro Arte e Técnica em Heidegger, da especialista e tradutora reconhecida Irene Borges-Duarte (ed. Documenta), na livraria Assírio e Alvim, no Chiado de Siza. A leitura desse livro forneceu-me uma visão de conjunto do pensamento heideggeriano na sua elucidação da maneira do pensador as abordar às duas na sua comum technê (que em grego diz arte e técnica), para tentar entender algo que nele permanece equívoco. É certo que não posso saber as possíveis objecções que a leitura que ela faz de Heidegger levantará entre os seus pares especialistas, mas faço-lhe confiança, aquela de que necessito para aquilatar do que eu acrescento ao pensamento do pensador alemão, ao que o forço além dele por via de leituras de outros autores, nomeadamente Derrida e as ciências que tenho abordado, na esperança aliás de que se abram possibilidades novas em tempos urgentes. A certa altura, a autora cita de passagem uma minha afirmação sobre o ateísmo radical de Heidegger (lembro-me de, jovem estudante ignorante, ouvir dizer que então existiam dois existencialistas ateus, Sartre e Heidegger, e dois cristãos, Jaspers e Gabriel Marcel); mas por outro lado ela não deixa de referir com alguma frequência a maneira como Heidegger invoca os ‘deuses’, nomeadamente na entrevista ao Spiegel de 1966 em que disse o célebre “já só um deus nos pode ainda salvar”, mas também na figura do Geviert – o céu e os divinos, a terra e os mortais – que Loparic traduz lindamente por quadrindade, que em textos dos anos 50 vêm dizer a sua maneira de pensar o ciclo do ‘mundo’, anel e ronda, mundo esse que, vinte anos antes, se ligava à ‘terra’ (a phusis) e a combatia. Como se pode conjugar este recurso ao ‘sagrado’ com a afirmação de ateísmo? Esta questão tem vários aspectos que convém distinguir.
2. O que significa o seu ateísmo? Ele resulta inapelável do motivo de ontoteologia que, tanto quanto entendo e porventura forçando um tanto, estabelecia, tal como o motivo de ser no mundo de 1927, uma ruptura profunda com o pensamento europeu e o seu par sujeito / objecto. A ontoteologia foi inaugurada por Platão e liga-se fortemente ao motivo da definição que, tenho-o lembrado várias vezes aqui, deu o motivo das Ideias formais (eidê) celestes e eternas, que as coisas terrestres que relevam dessa definição reproduzem melhor ou pior: esta relação entre o Ser do definido e os entes gerados e mortais é a primeira forma de ontoteologia, a eternidade celeste sendo parte da relação ontológica entre Ser e entes. Quando o platónico Origenes, no iníco do século III, inventou a teologia cristã que vingou até aos seminários eclesiásticos do século XX, o Deus bíblico, que é dito velar pelos lírios do campo e pelas aves do céu, foi introduzido nessa relação ontoteológica como ‘criação’: relação entre o Criador, o seu pensamento, e cada criatura criada (coisa impensável para Platão, Aristóteles ou Plotino, que o Deus deles, imutável, conhecesse o mundo, o que mudava!). Esse mesmo Deus virá caucionar o Cogito cartesiano até ser afastado por Kant, mas a relação ontoteológica transformou-se, agora entre o ‘sujeito’ que conhece e o ‘objecto’ que provoca objecções a esse conhecimento, e que ainda vigora por aí constantemente como o núcleo dos filosofares.
3. O que é que desaparece na filosofia que se estabelece ontoteologicamente? Aquilo que a definição negligenceia, esquece, o que o ente definido mas fica fora dos limites definidos, o que releva do que hoje chamamos contexto, diferente para cada singular e que dele é despojado para que caiba na mesma definição que os da mesma essência, mesmidade essa que a definição assim cria. É assim conhecido nele mesmo como ousia, substância cuja essência pensada pela filosofia se presta à argumentação com outras essências de maneira a esclarecerem-se mutuamente, mas sempre esquecido o contexto de doação. Ora, quando Heidegger rompe com o seu mestre Husserl, foi a tese excelente de João Paisana quem mo ensinou, ele objecta-lhe justamente o ‘objecto’: a fundamentação do conhecimento partir da percepção, sendo feita a partir da intuição sensível do ente já definido como objecto, isto é, fora de contexto, coisa sem mundo (limite do ‘retorno às coisas’). É essa objecção que lhe permite tomar o ‘ser’ que em Husserl aparece na intuição categorial (o ‘é’ que levará à definição da intuição eidética) sem provir da sensibilidade, permite a Heidegger preocupar-se doravante com esse ser anterior que dá o ente e que, acrescente-se, a definição eliminara, limitando-o ao ‘ser do ente’, a ousia, esquecendo a doação. Por isso virá a privilegiar os ditos ‘pré-socráticos’, designação que ele detestava; digamos, os que pensaram antes da definição. Nietzsche e Colli estão com ele nessa denúncia do platonismo, mas o pensamento heideggeriano baseia-se claramente nesta reversão da definição: o que é retido por esta releva do ‘ente’, o que ela excluiu com o contexto indicia o ‘ser’ que faz doação do ente e se dissimula, retiro do ser que deixa ser o ente em sua autonomia relativa (pela qual ele se presta a ser definido). Numa bela leitura do primeiro capítulo do segundo livro da Physica de Aristóteles, este ser doador será dito ser a própria phusis, acrescentando-se de Heraclito que ela “gosta de se esconder” (fragmento 123). Na Origem da obra de arte, Heidegger propõe traduzir phusis por ‘terra’ e foi o que me inspirou a ousar dizer que ele é um pensador da Terra e das suas doações, pensador da ecologia 20 ou 30 anos antes de esta entrar no campo da acção e do pensamento público.
4. O Ser foi pois esquecido pela filosofia desde Platão, insistiu ele, deixando os ouvintes ou leitores perplexos com esta nova categoria da operação de pensar. Foi a Terra, o lugar dos gerados e perecíveis de Platão, foi a grande doadora a grande esquecida em favor da alma (donde o ‘sujeito’ europeu) e do ente (donde o ‘objecto’ do laboratório científico). E foi à Terra que Heidegger retornou, nomeadamente com o motivo do ser no mundo que rompe com sujeitos que vêem e conhecem objectos num isolador (como os laboratórios, não é pejorativo). Ora, o Deus cristão é o que na teologia e filosofia ocidentais é criador, doador de cada criatura, cada ente, sem atenção ao contexto, apenas à essência substância. Ele não tem pois lugar nenhum no pensamento heideggeriano. O que fazem então os ‘deuses’ nesse mesmo pensamento?
5. Que “já só um deus nos pode ainda salvar”, trata-se claramente dum lamento de impotência, como se ele – que em 54 em A pergunta sobre a técnica, como traduz Irene Borges-Duarte, citava Hölderlin de “onde há o perigo, cresce o que salva” – não tivesse encontrado uma interpretação plausível para o seu tão caro poeta, chegasse a “um beco sem saída”, sugere algures IBD, beco que seria também o da ecologia. Presumo que o lamento foi ecoar na ontoteologia que denunciara e em que ele, como todos nós, fora instituído, que já o verbo ‘salvar’ lhe andava perto. Salvar do Gestell, que não será sair dele para diante e muito menos para trás, sair do sistema técnico financeiro, definamo-lo assim: capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. Esse ‘salvar’ é pensar como “preparar uma relação livre com a essência da técnica” (IBD, p. 21 e 164), “descobrir novas possibilidades de ser” (p. 202). Com deuses? Donde provieram estes, as religiões antes da definição e com que esta rompeu, para vir depois apoiar o monoteísmo? No texto sobre a phusis em Aristóteles onde descobri o motivo decisivo do retiro do ser, a saber a phusis, esta por duas vezes é dita Gestellung, assinala-o o tradutor, F. Fédier, o que ecoa ao futuro Gestell como se ele dissesse o que era o ‘sistema’ do mundo das sociedades anteriores à industrialização: era a própria ‘natureza’ que as sustentava, lhes fornecia a fonte energética que era de ordem biológica, a das plantas, animais e músculos humanos, não global mas local, algo perto do que Aristóteles pensou entre kinoun (causa motriz) e dunamis / energeia (capacidade potencial / efectivada), como as causas do que tanto o fascinou, o ‘movimento’ dos que por si mesmos se movem como auto-móveis vivos. O Gestell inventou automóveis com energia produzida, a do vapor primeiro, do petróleo e da electricidade depois. Mas Heidegger não pensou o ‘movimento’ que é o coração da Physica aristotélica – o qual, ao contrário do ‘tempo’, contém a energia e a força (da Física de Newton) –, preferiu-lhe o ‘tempo’ que para o pensador grego é apenas o número do movimento com o antes e o depois, e é porventura o que, pertencendo à sua descrição do Gestell, não é o seu coração; nem podia, dado donde ele vinha e a tarefa de resgatar o espaço e o tempo dos físicos para o pensamento fenomenológico do século XX: sendo ficção do metro e do relógio dos laboratórios, e pensados como realidades (apesar de Kant, mas que também não foi ao ‘movimento’, que estava entregue à nova Física de Newton), teve que devolver o tempo ao ente como doação do Ser (o que supõe o movimento, tal como o espaço, mas ficou como pressuposto) para pensar quer o tempo dos humanos em Ser e Tempo, quer o de qualquer ente em Tempo e Ser, quer a história do Ser. Não podia ser de outra maneira, muito provavelmente, mas ajuda a compreender um limite importante do pensamento heideggeriano.
6. O que eram então os deuses nas sociedades sustentadas pela phusis? Os que davam os humanos e aquilo de que eles viviam, davam de forma localizada as colheitas e os rebanhos, a fecundidade das plantas, dos animais e dos humanos, a energia social que os humanos não dominavam. Tal como Heidegger inclui no Gestell o não ser dominado pelos humanos, como as suas crises manifestam. Que Heidegger não tenha encontrado o que pode salvar-nos do perigo, segundo a palavra de Hölderlin, significa que ficou com um pé nas sociedades de phusis, as da casas agrícolas que produziam quase tudo de que necessitavam, cuja tendência autárcita, isto é, a sua autonomia social diante dos outros, Aristóteles tanto apreciava e foi até Kant, mas sempre de forma ontoteológica. O privilégio do heimat como exemplo de morada humana mostra como o seu pensamento se situa no contexto das sociedades de phusis, como aliás quase todos os grandes filósofos europeus (Marx é a grande excepção): isso assinala a sua dificuldade em enfrentar o Gestell, mas também a acuidade com que o pensou muito antes de este se ter tornado evidente para nós como factor não controlável das nossas crises. Com efeito, o Gestell é o reverso da autarcia de antanho, é heterarcia radical em sua tendência global, o que põe cada um à mercê dos outros, do sistema, falências geram desemprego e outras falências, e joga-se entre capitais em guerra de números uns do maiores do que os dos outros, a comprar barato e embaratecer mais para vender mais caro, e assim sucessivamente, aquém e além fronteiras, sem nunca se poder prever donde vem o perigo, que crise, de que alcance. E portanto não há quem domine, que o poder que deveria ser democrático, se tornou plutocrático, mas os seus ‘detentores’ (se os houvesse!) estando tanto ou mais sujeitos às falências das crises do que os outros, em sua impotência democrática.
7. Eis a questão que Heidegger poderia ter posto: e onde pára a phusis? Desapareceu? Só há Gestell e as suas ameaças globais sobre o localizado? Voltemos à sua definição sumária proposta acima (§ 5): capitalismo industrial em sua fase electrónica de globalidade intensa, que domina sobre tudo o que é produção e trabalho assalariado e invade os desejos ligados ao dinheiro. O que é que aqui releva da phusis? As fontes de energia em suas explosões, bela exibição da falta de dominação dos humanos: sobre o que explode, as matérias primas... e os vivos humanos em seus músculos de trabalho, os quais justamente estão hoje a ser progressivamente espoliados pela invasão das máquinas e da cibernética. Ou seja, a phusis dos vivos tem sido progressivamente expulsa do Gestell, assim como tendencialmente das cidades que hoje procuram recuperar espaços verdes, como se diz, cães e gatos de estimação, à míngua de filhos. Ou seja, o essencial do Gestell corresponde à esfera do trabalho, aos seus tempos e templos, o que sobra de phusis viva foi remetida para os ‘tempos livres’ e seus outros templos de consumo e divertimento. Sem se saber adiantar um único número, que a fenomenologia ignora-os, percebe-se claramente onde ‘cresce o que salva’: nas máquinas cibernéticas que se guiam quase sozinhas e fazem diminuir os tempos de trabalho, de Gestell, reenviam os humanos para tempos livres, mais ou menos comunitários nas solidariedades locais que tornem esses tempos fecundos para uns e outros, consoante as capacidades respectivas, “descobrindo novas possibilidades de ser” que retomem a perspectiva da polis do nosso amigo Aristóteles, que Heidegger tanto prezou, nos ensinou a ler.

https://www.youtube.com/user/Luis88571  
(vídeo do lançamento do livro da Irene)