domingo, 21 de setembro de 2014

O dinheiro a favor e contra a liberdade




1. Porque é que  a esquerda está encurralada, como Hollande acaba de mostrar ao largar o seu discurso de há dois anos? Porque enquanto que a política é local, a chamada globalização é a dos capitais e das suas guerras, como dizem: ‘competitividade’. Electrónica, ela também é das palavras, dos números e das músicas, com a diferença de que estas são de borla para quem as usa e repete, enquanto que moedas e notas têm uma cunhagem ou uma assinatura política que atribui a cada uma um dado ‘poder de compra’, adequado à língua dos preços das coisas (oscilante segundo as conjunturas), poder do seu possuidor que se transmite anonimamente de mão em mão, ao invés da palavra, número ou nota musical, gratuitas e sociais indissociavelmente. É esse poder apropriado que permite a troca de notas ou moedas por tal ou tal mercadoria. Quanto aos cheques e cartões electromagnéticos de multibanco ou de crédito, a assinatura individual e o segredo dos códigos não substituem a marca política, já que eles exigem a instituição bancária que os edita e que estabelece a sua equivalência às notas. Assim como as notas obviam ao esgotamento das moedas, também assim os cheques ao das notas, às malas cheias destas: um ponto da importância estrutural dos bancos.
2. A propriedade privada do dinheiro, no bolso e nas contas no banco, asseguram, em sociedades de produção especializadíssima, a liberdade de escolha do que se compra como estando na essência do mercado, em vez de listas de rações distribuídas pelas autoridades (Cuba). Ora, faz parte da lógica do sistema que a prossecução dos interesses próprios dos bancos (segundo a sua liberdade) possa jogar contra os dos seus clientes se faltar a devida regulação, foi o que nos ensinou a crise destes anos de troika, a destruição da economia, falências e desemprego. A regulação tem falhado, parece, porque teria que estar ‘dentro’ de cada banco, tal como os escritórios da Troika em Lisboa.
3. Há uma diferença de escala. O sistema financeiro electrónico é facilmente ‘global’ e rápido, apesar dos câmbios e da concorrência (das suas redes fazem parte também os off shore), enquanto que a política, a democracia, as regulações, são essencialmente locais e lentas, seguem as regras dos Estados-nações, têm apenas um alcance ‘local’. Ora, esta diferença de escala reflecte-se nos ‘paradigmas’ das políticas locais democráticas consoante os partidos são de direita e de esquerda: a direita pensa do lado do capital global (Friedman), a esquerda do lado do social local (Keynes), o que tem como consequência que a direita pensa e age segundo um paradigma que segue a onda do capital, a esquerda o da contestação dessa onda. Quando o discurso político de esquerda consegue ganhar democraticamente e o melhor que pode prometer é salvar a socialdemocracia, isto é, o Estado social, arrisca-se – Hollande como Obama – a não conseguir levar as suas promessas avante por pressões que vêm do capital global e que se impõem à direita como evidências (capitalistas), o chamado “pensamento único”. Em termos nacionais, é sempre possível equilibrar as contas que sustentam o Estado social, como Vieira da Silva terá provado, até que, a culminar uma fase demencial de incitações a empréstimos, a crise da banca americana veio pôr tudo do avesso. Já o marxismo falhou na Europa por não ter conseguido ser ‘internacional’ como Marx compreendeu que era a solução: mas o que sobrou dele foi justamente a social democracia local (dita ‘revisionismo’). Alguém será capaz de pensar uma ‘esquerda global’?
4. Como panaceia do desemprego, predomina em todos os discursos uma ânsia do crescimento económico que o mede em termos exclusivamente monetários (PIB), que se opõe claramente (fora das tais evidências) à ameaça ecologista, quer climática (e será o terror para toda a gente, os ricos também), quer das reciclagens impossíveis que um tal crescimento implicaria, já que parece óbvio que os mais de 2 biliões de chineses e indianos têm o mesmo horizonte de produção e consumo que americanos e europeus e que isso será insustentável para o planeta. Ou seja, haverá algo um dia parecido com uma ‘solução’ após crises ambientais muito fortes que obrigarão a pensar em termos de economias frugais e solidárias.
5. Se for certa a tese de Piketty, de que a crescente desigualdade depois dos 30 anos à Keynes do pós-guerra é uma crescente ameaça à democracia, o capital a dar cabo da liberdade que o dinheiro oferece, espera o leigo que se trate dum passo decisivo para uma ciência económica que seja uma verdadeira ciência social, isto é, que tenha como objectivo salvar as sociedades locais, as empresas e os empregos, que forneça argumentos para a esquerda guiar a sua acção.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ciências, determinismo, reducionismo, relativismo




Textos deste blogue que serão aqui citados






1. Qual é o interesse filosófico da desconstrução das ciências, em que estas são parte activa da argumentação fenomenológica? Pode aliás haver um inconveniente, para um cientista a quem aconteça ler um texto que pretenda ‘desconstruir’ a ‘sua’ ciência, é uma espécie de suspeita de proprietário em relação a um vizinho que esteja a querer mudar os limites do seu jardim, a entrar no dele: mas o que é que este filósofo sabe da minha ciência? Ele quer-se fenomenólogo, mas quem sabe dos fenómenos de que se trata nos laboratórios somos nós, os cientistas, não os filósofos. E é óbvio que tem razão, o não especialista não sabe praticamente nada do que se passa num laboratório científico. A recíproca também é verdadeira: o cientista não sabe grande coisa de filosofia, ainda menos da que se pretende desconstrutiva, e pode pretender com boa fé, como Edgar Morin me respondeu em tempos a um e.mail, que há disjunção total entre ciências e filosofia. Aí já o filósofo porá uma objecção: as ciências não se esgotam no laboratório que escapa ao não especialista, são os próprios cientistas que escrevem livros de divulgação para leigos em que as partes laboratoriais mais complicadas são simplificadas e em que as questões filosóficas aparecem com alguma frequência, por vezes os próprios autores o reconhecem. É que as ciências são filhas históricas da filosofia e da definição que ela inventou como sua operação de base, não como laboratório, mas como o seu ‘escritório’ inventor de essências e conceitos, incluindo aqueles de que o cientista se serve para articular as suas hipótese e teorias. Desde Platão, que colocou os seus ‘definidos’ no céu, Formas ideais eternas e imutáveis predominando sobre as coisas terrestres que as reproduziam mimeticamente: o céu e os deuses (astros) predominando sobre a terra e os humanos desde as mitologias, marcou-se assim a filosofia como ontoteologia (Heidegger), o que é eterno explica o que nasce e é mortal. É certo que Aristóteles operou um “retorno às coisas” e ao seu movimento, mas como se disse noutro texto (“Movimento e causalidade”), a ousia – substância essência – prevaleceu sobre os acidentes do seu contexto, como a interioridade sobre a exterioridade; aliás, com o cristianismo Platão regressou em força – o Criador celeste de que cada criatura terrestre é originado – e inclusive platonizou o aristotelismo medieval. É certo que Kant, que deu autonomia às ciências europeias, colocou Deus, alma imortal e coisa em si (substância) fora do alcance do entendimento, mas ao pretender que fez uma revolução copérnica colocou o sujeito da razão como o ‘sol’ em torno do qual giram as ‘coisas’ do ‘realismo’ cristão: desloca assim a ontoteologia do par Criador / criatura para o par sujeito / objecto, este definido como fenómeno cujo movimento é analisado no laboratório de Newton, aquele o que prevalece enquanto sede do conhecimento. João Paisana mostrou muito bem na sua tese sobre Fenomenologia e Hermenêutica. A relação entre as filosofias de Husserl e de Heidegger como este cortou com aquele justamente ao denunciar o ‘objecto’ como já delimitado do seu contexto, já ‘definido’, e ao reclamar, por assim dizer pelo ‘humano quotidiano’ contra o ‘filósofo conhecedor’, o Dasein como ser no mundo, isto é, alguém feito pelo seu contexto, por exemplo, pelos usos que aprende, ilustraria eu.

Discurso e texto
2. Eis o ponto que se oferece à desconstrução: o primado científico do fenómeno analisado no laboratório sobre o que, cientificamente ignorado, permanece fora, como contexto. Exemplos: a bio-molécula dum medicamento e os efeitos secundários dela noutras moléculas não testadas, as peças testadas duma máquina e a poluição que ela provocará (para não falar das análises teóricas económicas feitas sobre as estatísticas do passado e as crises que a sua aplicação provocam, como temos visto e sofrido, onde é o próprio carácter científico das teorias que creio em causa). De forma geral, num par indecidível pensamento / discurso (linguagem), teoria / experiência, planetas / campo das forças gravitacionais, cargas eléctricas / campos electro-magnéticos, organismo / ambiente, fruto do laboratório / ‘realidade’ extra laboratorial, a definição decide pelo definido, circunscrito (pelo conhecimento que o sujeito dele tem) sobre o contexto donde foi buscado, contexto que é a sua origem complexa, indeterminada. O que pretendo é que a desconstrução, segundo o exemplo no mesmo texto do automóvel, permite ligar a máquina saída do laboratório com a lei do tráfego que lhe determina a anatomia, ligar o laboratório e o seu fora como cena de circulação com suas regras, que o engenheiro replica no aparelho do carro e na sua articulação com o respectivo motor (de explosão ou eléctrico). Este exemplo será suficiente para se perceber que o filósofo não tem pretensão nenhuma de ‘ensinar ciência ou engenharia’ mas apenas a olhar as coisas de maneira adequada ao que cientistas e engenheiros fazem, é do retorno às coisas que a fenomenologia se reclama.

3. “Uma das definições do que se chama desconstrução seria a tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais viva  e mais larga possível ao contexto e portanto um momento incessante de recontextualização” (Derrida, Limited Inc., Galilée, ver texto sobre o “exorbitante”). Esta citação confirma o que acabo de propor: ter em conta com o definido, com o laboratório, o contexto donde ele foi retirado. Mas ela segue-se de outra coisa que merece atenção. “A frase, que para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido, da desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula teria sem dúvida chocado menos”. Esta formulação convida a deslocar o que propus como retorno às coisas: em vez de olhar as coisas de maneira adequada, ler de maneira adequada os textos que cientistas e engenheiros escrevem sobre o que fazem, sobre o que Khun chamou paradigma (ver texto no blogue). E o que é que Derrida chama texto e que distingue de discurso (a “órbita”? “[...] de maneira um pouco convencional, chamamos aqui discurso à re­presentação actual, viva, consciente dum texto na experiência da­queles que o escrevem ou o lêem [...] o texto transborda sem ces­sar esta representação por todo o sistema dos seus re­cursos e das suas leis próprias [...]” (De la grammatologie, p. 149). Quando se fala ou se escre­ve, ninguém pode ter consciência das leis linguísticas e textuais que operam no discurso que diz ou escreve, somos inevi­tavelmen­te transbordados por efeitos textuais não conscientes (mas legíveis por outros, já que segundo regras da língua, como um analista consegue decifrar o que outros não lêem). “O escritor escreve em uma língua e em uma lógi­ca de que, por definição, o seu discurso não pode dominar absolu­tamente o sistema, as leis e a vida própria. Ele não se serve delas senão deixando-se duma certa ma­neira e até um certo ponto gover­nar pelo sistema. E a lei­tura deve sempre visar uma certa relação, desapercebida do escritor, entre o que ele comanda [o seu ‘discurso’] e o que ele não co­manda dos esquemas da língua que usa [do texto]. Esta relação não é uma certa repartição quantitativa de sombra e de luz, de fraqueza ou de força, mas uma estrutura significante que a leitura crítica deve pro­duzir”. Qualquer texto é sempre heterogé­neo, a sua busca de homogeneidade (ou discur­so) é jogo de vários textos e seus embates. É essa heterogenei­dade (ou texto) que a leitura ‘desconstrutiva’ de Derrida pro­cura (mais do que exibir) fazer ressaltar em seus confli­tos, de ma­neira a que ga­nhem nova força de pensamento no contexto da nossa mo­dernidade, aju­dem a pensar conflitos e crises. Dito de outra maneira. A linguagem permite-nos falar (ou escrever) sobre coisas passadas, ausentes, ficções e erros, inclusive, trazendo-as ao texto entre falantes (ou leitores), não é precisa para dizer o copo presente na mão ou à vista. Mas também o pode dizer, e quando o diz, é como se o copo não estivesse lá; lá, aonde? Na chamada realidade, ele ‘está’ nas frases que o dizem e para isso servem, para as coisas ditas desaparecerem enquanto ‘presença natural’. Ver o exemplo de Derrida sobre o “céu azul” no texto sobre o “exorbitante”.
4. O paradigma segundo Kuhn tem a grande vantagem de dizer o que se pensa e faz num laboratório, sem corte entre teoria e experiência. Sem ter em conta os ‘excessos’ singulares devidos a quem escreve, pode ser transposto como motivo fenomenológico das ciências sociais. Mas cada texto de um ou mais cientistas cabe no motivo derridiano de órbita, relevando da singularidade de cada texto e no caso das ciências da sua correlação correcta (ou não) com o paradigma. Desconstruir, será exorbitar este, já que Kuhn definiu o paradigma seguindo a ‘consciência’ dos cientistas. Corresponde ao que o seu autor tem em vista, ao seu ‘discurso’ consciente, ao que ele quer dizer. Exorbitar é ir além dessa órbita propositada, ir ao ‘texto’, buscar excessos à órbita que não se dão à vista desarmada. A questão é saber se o critério do diagnóstico de oposições desapercebidas é suficiente, inscritas na tradição do saber por definições e laboratórios; isto é, como estabelecer o diagnóstico da supremacia da substância, da essência (definição), sobre a cena / campo, o diagnóstico da ontoteologia que os cientistas herdaram de Aristóteles sem saber. Não creio que haja um ‘método’ a seguir, mas apenas atenção a sintomas dessas oposições. Mas só há sintomas para uma abordagem filosófica, no caso são os textos de Heidegger e Derrida que oferecem uma margem donde sintomas se podem ler, astuciosamente. Se posso invocar dois exemplos pessoais, os das minhas leituras do evangelho de Marcos e da Poética de Aristóteles, foi sobretudo o S/Z de Barthes que me guiou e curiosamente em ambos os casos aconteceu que foram chaves preciosas dessas leituras a consideração do termo logos no texto grego que as traduções modernas restituem com termos diferentes segundo o contexto, inviabilizando uma leitura textual. Sintoma no primeiro caso foi o duma contradição entre duas camadas do texto. Isto é, não havia nenhum ‘método’ além da abordagem que Barthes propunha, ler o texto nas suas diferenças (conotações e códigos) e não nas crenças do leitor.

Determinação sem determinismo
5. Dito isto, podemos voltar à questão inicial deste texto, supondo os exemplos que dei no texto sobre Movimento e causalidade: qual é o interesse filosófico da desconstrução das ciências? Ele incide nomeadamente na reelaboração da teoria de modo a elucidar a relação entre laboratório e cena de circulação dos fenómenos que ele analisou nas suas componentes: ora, é na ignorância dessa relação que se alojaram os três debates filosóficos importantes do século XX que cita o título deste texto. Comecemos pelo determinismo. Bem antigo na tradição filosófica, pelo menos deste Agostinho de Hipona, dependente da relação entre Criador e criatura, ele foi, implicitamente pelo menos, sempre um pressuposto das novas ciências europeias e da importância crucial da relação causa – efeito que elas buscam. Ora, como sugeri em Porque é que as ciências precisam de laboratório?, o laboratório justifica-se por criar condições de determinação que tornem possível encontrar correlações de tipo causa – efeito, o que tem como consequência que fora dele as ciências não conhecem determinações, o contexto aonde vão buscar o fenómeno a analisar dá-se-lhes como indeterminado, o que significa que o determinismo é uma projecção indevida do que se passa no laboratório fora dele, sobre o que não se conhece, não foi analisado. As causas efeitos são apenas de peças, digamos, de fragmentos, os ‘todos’ não são susceptíveis de análise senão fragmentariamente, como é óbvio no caso do automóvel. Mas igualmente na biologia molecular, que analisa transformações químicas mas não o conjunto de todas as que ocorrem no metabolismo duma célula, muito menos um órgão dado, etc.
6. Para as várias ciências que, da biologia em diante, se ocupam de vivos creio suficientes os exemplos que dei e a conclusão geral: onde uma dessas ciências encontra regras, elas jogam em situações aleatórias, susceptíveis de variações com os contextos. Nenhuma dessas ciências encontra determinismos. São as ciências da energia e da matéria, a física e a química, que merecem alguma atenção. O caso do automóvel, das máquinas em geral, dos robots inclusive, parece claro também, o trabalho delas sendo susceptível de aleatório. Se se objecta o condutor do carro como introduzindo um elemento estranho ao analisado em laboratório e justificando a adequação ao aleatório do tráfego, a resposta é simples: ele tem que aprender a conduzir, isto é, a tornar-se uma peça do carro, a peça piloto encarregada da ‘causa final’ do movimento. E quando não há piloto nos movimentos de inertes? Temos que indagar o que é a inércia. Supondo a resistência à desintegração dos átomos devida às forças nucleares dos seus núcleos, a inércia é a oferta dum grave à lei da gravidade segundo as condições de temperatura (forças electromagnéticas moleculares que permitem, por exemplo, haver água, gelo e vapor) e portanto a ser movido quando forças do seu contexto o atinjam. Mas também forças electromagnéticas moleculares poderão oferecerem-se a transformações químicas quando da proximidade de contacto, de contexto, com outros graves, no que se poderia chamar inércia química. Dito isto, é óbvio que o nosso planeta está cheio de movimentos de inertes sem pilotos, sem finalidades, casuais, que se provocam uns aos outros por gravidade ou química. As rochas vulcânicas, tipo granito, são um exemplo, bem como as lavas e as rochas metamórficas (basalto) ou as sedimentares com os seus fósseis, rochas essas que são classificadas justamente segundo o aleatório dos movimentos que lhes deram origem, as erosões sendo outro exemplo. Ou o clima e seus ventos e chuvas, as correntes dos rios e dos oceanos, são sempre movimentos de inertes cheios de aleatório em que o interesse dos laboratórios e das suas medições é justamente o de compreender de forma mais geral o que se passou e o que se pode vir a passar. Determinismo?

Redução sem reducionismo
7. A redução é de forma geral uma operação de pensamento e conhecimento. A um primeiro nível, as línguas quotidianas operam uma redução, utilizando substantivos (casa, criança, laranja), adjectivos (lindo, caro, amigo), verbos (viver, comer, ser) para trazer ao discurso, à conversa, à escrita, coisas e suas qualidades e movimentações, inúmeros singulares que são reduzidos na sua singularidade, na sua “presença natural”, dizia Derrida, para figurarem no texto em que são ditos. A esta redução primeira, a filosofia grega acrescentou outra, a da definição, criando os textos gnosiológicos de argumentos sobre essências intemporais e incircunstanciais, fora de contexto. O laboratório científico soube da insuficiência desta redução por se ater a textos alfabéticos e acrescentou-lhe a que consiste em reduzir graves às dimensões de instrumentos convencionais de medição de seus movimentos. Pretendi que as Bíblias hebraica e cristã jogaram sobre outras formas de redução propícias a narrativas históricas, e sem dúvida que haverá outras formas de redução, a mais conhecida em filosofia sendo a epochê de Husserl. Cingindo-nos à do laboratório, introduzindo a experimentação no conhecimento, ela é correlativa da determinação que ele cria (o chamado reducionismo epistemológico): é reduzido tudo o que fica fora do laboratório e que portanto equivale à confissão pela ciência de que não conhece esse reduzido indeterminado. Em suma, toda a especialização tem como condição a redução de tudo o que não é ela. Disso sofremos hoje muito, a reclamação por todo o lado de interdisciplinaridade é a da busca de articulações, respeitando fronteiras mas não se resignando a elas.
8. O reducionismo, em sentido pejorativo, é a atitude filosófica – parente próxima do determinismo da ciência (física e economia nomeadamente) – que pretende que as sua leis ‘explicam’, determinam, as leis das outras ciências supostas num patamar mais elevado da ordem das coisas. Mas também este reducionismo ignora o seu  próprio laboratório, a redução que teve de fazer para as suas descobertas: o que implica sem mais que ela não pode saber o que se passa fora do seu laboratório, tal como ignora o laboratório das ciências que quer reduzir às suas leis. Exemplo da ignorância da redução do seu próprio laboratório é o jargão marxista da instância económica que se queria “determinante em última instância”, sem conseguir explicar como é que essa determinação se fazia das línguas[1], por exemplo de grandes variáveis sociais imotivadas (Saussure), já que a instância económica não se entende sem os efeitos da língua nela. Também o fisicalismo, reducionismo de físicos, não explica nada da estrutura das línguas a partir da gravidade ou da Acústica (ao invés da anatomia que explica a dupla articulação da linguagem). Com efeito, Saussure para estabelecer a cientificidade da Linguística estrutural teve que reduzir tanto a Acústica como a anatomia da fonação e da memória cerebral e a relação das falas ao chamado referente (redução do nomenclaturismo), ou seja do próprio ‘sentido’ das unidades linguísticas estudadas, às quais só pede que tenham sentido. Estas reduções foram decisivas para se estabelecer que na língua não há senão diferenças entre sons ou vozes e palavras ou frases, para pôr em questão o substancialismo das línguas, a concepção do signo como relação entre um som e um sentido. É por os sons (e as grafias) não fazerem parte das línguas (só das falas, sendo certo que não há língua fora das falas e textos) que a Acústica não determina nenhuma língua: se determinasse alguma, determinaria todas?
9. É claro que quando se sobe no patamar das ciências, as regras das que ficam abaixo jogam nas novas ciências: por exemplo, as da física, química, biologia e linguística, jogam nas sociedades e nos psiquismos humanos, mas nenhuma delas, nem sociologias e psicologias aliás, ‘determinam’ por exemplo os vários desportos organizados nas sociedades actuais, as regras destes sendo imotivadas entre eles, como se percebe facilmente comparando-as, os com bolas entre si, com ou sem redes, raquetes ou não, maneira de contar vitórias e derrotas, os individuais ou por equipas, e por aí fora. A articulação entre cenas e suas ciências que resultam umas das outras tem que recorrer ao motivo de produção de entropia de Prigogine, como tentei fazer nos capítulos 13 e 14 do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2º volume).

Relatividade sem relativismo
10. A questão do relativismo põe-se de maneira oposta à do determinismo e do reducionismo, que são pretensões filosóficas de alguns cientistas para as suas disciplinas a partir dos respectivos laboratórios ignorando os limites deles (determinação e redução) que anulam essas pretensões. O relativismo é também uma pretensão filosófica mas desta feita contra os cientistas, que parte da ‘realidade quotidiana’, do fora dos laboratórios, mas ignorando estes e as suas descobertas. A relatividade resulta necessariamente da consideração do contexto em relação à definição (de essências) e ao laboratório, como se disse: se as nossas ‘verdades’ filosóficas e científicas resultam dessas duas operações de pensamento redutoras, ter em atenção o que elas não atingem implica a sua relatividade, a não possibilidade trivial de fazer afirmações absolutas em relação a todo esse ‘reduzido’ caótico: é que foi este caos das coisas que pediu a filosofia e as ciências. Este argumento alarga-se em relação às outras civilizações, nomeadamente à literatura sapiencial chinesa, indiana, japonesa, muçulmana, que procederam com outras abordagens às questões do conhecimento. O que significa que o saber das ciências ocidentais (e das filosofias) é estruturalmente relativo à história greco-romana-europeia.
11. A filosofia com ciências que proponho permite que o motivo do duplo laço dê conta duma estrutura das coisas em patamares ‘históricos’ (astros e graves, vivos, sociedades humanas com discursos e textos, psiquismos) que permite conhecimentos de ‘espécies’ nas várias ciências (mesma espécie em indivíduos não idênticos) e saber que esses indivíduos são (coisas) indeterminados no seu duplo laço singular. Permite além disso conhecer as grandes leis das cenas de circulação desses patamares. Assim sendo, esta relatividade é incompatível com o relativismo como cepticismo epistemológico. O triunfo tecnológico das ciências físicas, químicas e bioquímicas, largamente aceite nas sociedades asiáticas desenvolvidas, serve de comprovação da correcção dessas ciências, enquanto que as ciências relativas ao social e ao humano estão largamente longe duma comprovação equivalente, mormente a economia, de que se tem experimentado a sua dificuldade em se articular com as estruturas politicas, que a teoria hoje predominante reduz no chamado monetarismo (texto sobre economia), encerrando-se no seu laboratório.



[1] Staline teve que cancelar a querela entre teóricos e linguistas russos marxistas determinando que a língua não é uma super-estrutura.

domingo, 7 de setembro de 2014

Os Portugueses do século XVI falavam brasileiro


Lembro-me de o grande linguista português Luís Lindley Cintra, pai do actor da Cornucópia, me ter contado que o linguista brasileiro Celso Cunha, com quem ele escreveu uma gramática do português, o ter demonstrado através de análises de manuscritos do século XVI, creio que de poesia teatral. Ora, é o que veio confirmar o que no PÚBLICO de 7 de Maio 2014 escreve Paulo Werneck, que lhe contou o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto: “estudando a poesia de Camões, deu-se conta de que, lidos com o actual sotaque português, a métrica não fechava. Ele e seus alunos então leram os mesmos sonetos com o sotaque do Brasil de hoje e foi batata: a métrica fechou perfeitamente”. Haverá sem dúvida linguistas para nos explicarem esta coisa estranha: porque terão os Portugueses fechado as vogais, a, e, o, que hoje dizemos sem acentuar (como em ‘fechado’, ‘a métrica’), ao contrário das línguas latinas que há por aí, castelhano, catalão, francês, italiano e brasileiro que todas as abrem? 

Autonomia e heteronomia


1. Uma é a nossa preferida, a ‘nossa’ autonomia, a outra considerada o mal de que temos que nos livrar, o poder dos outros sobre nós. A fenomenologia que aqui se propõe sob a inspiração de Husserl, Heidegger e Derrida implica que o percurso de dissidência do segundo em relação ao primeiro foi um passo da afirmação da autonomia como primeira – a percepção do sujeito como fundamento do conhecimento dos objectos, primado tradicional da interioridade do pensamento sobre a exterioridade das coisas e dos outros, do dentro sobre o fora – para a da doação do ‘ente’, do que vem à presença, nascendo ou sendo feito, pelo Ser (Terra e Mundo, a certa altura), mas em que esta doação se retira, dissimula. Estou em crer que esse passo não chegou ao ente humano (Dasein), porque o privilégio do ‘pensamento’ terá resistido, sendo necessário um outro passo, o da inscrição como “origem da linguagem” e portanto do pensamento, passo esse dado por Derrida.
2. Ora, o que está aqui em jogo é uma como que reversão da preferência dita acima pela autonomia, que é uma atitude espontânea e necessária como saúde humana mas só possível como consequência das experiências de pensamento, mormente por adultos. Sócrates e Platão são exemplo maior, que partem do “sei que nada sei” do primeiro e da novidade do pensar do segundo que se liberta do seu corpo e cidade para conhecer a terra da geometria e os céus da astronomia, como diz algures no Teeteto. O que estes dois exemplos implicam é o menosprezo pela aprendizagem, que não é propriamente negada, nunca o foi na história do pensamento ocidental, mas desvalorizada, pois que tanto se aprendem coisas certas como erradas, desvalorizada porque a força da novidade da experiência do pensamento se impõe sobre o que se outros se aprendeu.
3. Ora, o que Heidegger e Derrida mais radicalmente fizeram foi permitir perceber que se pensa e se age, tanto nos usos de cada dia como nos usos elevados dos pensadores, cientistas, artistas, gente de decisão, segundo regras (-nomia) aprendidas dos outros (hetero-), que essas regras vêm de fora e estruturam o nosso dentro como regras (-nomia) próprias de nós (auto-) que são as mesmas do que as dos outros (a língua por exemplo claro). A heteronomia é prévia à autonomia, é a sua condição social, sem o que a anarquia seria total, impensável qualquer comunicação entre uns e outros. Mas os dois pensadores não eram contra a autonomia, obviamente, eles ensinaram que a doação da interioridade implica que ela seja retirada, dissimulada, na sua força (de adultos que ensinam crianças, por exemplo), de maneira a que o próprio, ao agir e ao pensar, não saiba, tenha esquecido totalmente as bases da aprendizagem (o que suponho ser a raiz do inconsciente freudiano). Alguém se lembra de ter aprendido as palavras triviais que utiliza, casa ou mesa, os verbos ser ou fazer? E pode-se pensar sem essas palavras?
4. Que a autonomia seja dada pela heteronomia social só torna esta preponderante durante a menoridade, ou melhor, em todas as fases em que se aprende com outros (e aprende-se a vida toda, o que chamamos ‘experiência da vida’), vendo, ouvindo e lendo, até que a autonomia prevaleça como espontaneidade e habilidade nossa. O que se deve contestar da heteronomia é aquela que não se dissimula mas permanece como poder hierárquico que obriga os subalternos, negando-lhes a autonomia. Contestar, até porque é cegueira de quem tem o poder, que muito melhora o que dos tais subalternos precisa como cooperação na medida em que lhes respeitar a autonomia: o chefe inteligente apaga-se diante dos bons resultados da colaboração em vez da subordinação.
5. Mas não se trata apenas de aprendizagem, também de comer. Desde a primeira célula que fomos no seio da nossa mãe que o nosso crescimento como organismo se fez com moléculas de outros vivos, plantas e animais, toda a nossa vida essa alimentação vinda de fora permitindo reproduzir a nossa anatomia, as células que se dividem, a vida que adia a morte (por exemplo, de 6 em 6 meses, segundo os biólogos, as células dos nossos ossos são novas, vindas das outras, é o que permite recuperar das fracturas). Também o processo de digestão e circulação do sangue se opera de modo a que não saibamos que somos feitos de restos de batatas e de borrego.
6. A minha crítica do paradigma da biologia (Teresa Avelar) e da neurologia (António Damásio) num texto deste blogue (Dezembro de 2012) deriva justamente desse paradigma – como em todas as outras ciências, creio – ser vítima desse privilégio do dentro sobre o fora. Lembro-me do espanto enorme que tive ao ler o biólogo Francisco Varela, Autonomie et connaissance. Essai sur le vi­vant, e descobrir que a sua teoria da “autopoiése”, da construção do organismo por ele próprio, implicar que a reprodução e a evolução eram fenómenos secundários!  Ele defende o primado do indivíduo sobre a espécie: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que delas decorrem, aparecem como fenómenos segundos, subordinados à existência e ao funcionamento autopoéticos desses sistemas” (p. 71 da ed. francesa, Seuil, 1989, sublinhados meus).
7. Consequência deste epistema que privilegia o dentro sobre o fora, o indivíduo sobre a espécie, o indivíduo sobre a sociedade, o pensamento sobre a linguagem, aquilo a que Heidegger chamou ontoteologia, é que se pensa a chamada ‘realidade’ como o exterior caótico fora de nós, mera justaposição de coisas, animais, plantas, casas, pessoas, acções, acontecimentos, sei lá!, mas não se pensa o mundo como articulação segundo os tipos de regras ou leis científicas

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Movimento e causalidade: da ousia aristotélica ao duplo laço fenomenológico




(vídeo)


 A ousia: compreender o movimento dos vivos como auto-móveis
A ousia e o tempo
O duplo laço: compreender o movimento dos auto-móveis inertes
A tese deste texto: o motivo do duplo laço, no contexto fenomenológico das ciências contemporâneas, é proposto para substituir o par ousia / acidentes da Physica de Aristóteles
Os duplos laços dos animais são mais complexos do que os das máquinas
Duplos laços duma tribo
Os duplos laços da linguagem
Duplo laço: tudo é indeterminado em seu movimento
P. S. Duplo laço e big Bang
2º P. S.



1. A diferença maior entre as ciências gregas e as europeias reside em que as primeiras foram formuladas por Aristóteles a partir da definição que Sócrates inventara e que as nossas foram formuladas no século XVII a partir da invenção do laboratório, de que o primeiro relato que temos duma experimentação é o de Galileu no Discurso sobre duas novas ciências. Esta diferença explica sem dúvida a exclusão consequente do aristotelismo do pensamento europeu, pelo menos a partir de Descartes, mas ela contém igualmente uma incompreensão de monta no que diz respeito às próprias concepções de movimento e de causalidade que estão no coração da Mecânica de Newton. É disto que vai ser aqui questão.
2. Quer a definição quer o laboratório arrancam o fenómeno a definir ou analisar do seu contexto, dos seus ‘acidentes’, como condição de conhecimento geral, de essências num caso, de leis do movimento no outro. Mas os Europeus estenderam o conhecimento ganho no laboratório ao que se passa fora dele, na dita ‘realidade’, compreendendo esta segundo um determinismo que é postulado pelas experiências (fragmentárias) levadas a cabo – causa e efeito – que é o que justifica o conhecimento adquirido aos olhos dos cientistas, sem se darem conta, nem os filósofos das ciências que eu saiba, de que esta extensão para o contexto fora do laboratório pode ser ilegítima, na medida em que se não avaliar a redução desse contexto operada pelo próprio laboratório, nem se tenha em conta a integralidade do movimento do fenómeno em questão. Sabe-se que a lei da gravidade se verifica no vazio laboratorial, onde uma pena de ave cai ao mesmo tempo que uma bolinha de chumbo, mas é imprevisível na atmosfera, onde joga a resistência do ar. Os ditos “efeitos secundários” dos medicamentos, assim como as poluições que devastam o planeta, são justamente efeitos nos contextos que o laboratório não analisou. A questão, que tratei noutro congresso recente, é ‘porque é que as ciências precisam de laboratório?’[1] A definição da escola socrática, no seu momento platónico, também reduz o contexto definido, como mostram as suas Formas ideais celestes, mas embora a Idade Média tenha parcialmente platonizado Aristóteles, a diferença entre a sua maneira de definir e a de Platão é crucial: o que o Estagirita define não é uma ‘coisa’ mas um movimento de coisas. É por isso que se pode vê-lo a definir, na Physica, quatro sentidos da ousia (substância / essência) e quatro sentidos correlativos de aition (causa ou motivo). Isto é, arrancando embora ao contexto o que é definido, isso só é feito após se ter observado no contexto como é que ele se move.
3. Enquanto que o uso de matemática e de instrumentos de medição no laboratório restringe o movimento a analisar ao deslocamento no espaço e no tempo, o olhar de Aristóteles sobre o contexto admite uma muito maior latitude da noção de movimento, distinguindo vários tipos: por um lado as gerações e as corrupções, por outro as mudanças, a sa­ber, alteração das qualidades, crescimento ou diminuição da quantidade, deslocamento segundo o lugar. A Physica de Aristóteles é com efeito uma filosofia geral do ente enquanto capaz de movimento[2] e do que o causa, que definiu os motivos que as suas várias ‘ciências’ aplicaram à diversidade dos entes, vivos ou fabricados, políticos ou poéticos (como a tragédia[3]), já que o que provocou o seu grande espanto, o que está na base dessa Physica e da sua concepção da ousia, foi o haver coisas que crescem (em grego, phuô, donde phusis), que têm o movimento por elas próprias (kath’autôn), que são por si móveis, auto-móveis. Tendo durado praticamente dois milénios, pode-se dizer que a Physica foi uma Filosofia com Ciências que lhes forneceu os motivos com que elas puderam pensar os fenómenos de que se ocupavam. Tratar-se-á aqui de chamar Aristóteles a avaliar algumas descobertas mais importantes das ciências actuais, a partir duma análise fenomenológica que conta com Husserl, Heidegger e Derrida e com a dimensão filosófica das principais descobertas das ciências do século XX[4], procurando reconsiderar estes dois motivos clássicos do pensamento que os Gregos nos deram, o movimento e a causalidade, tentando tematizar a relação teórica das nossas ciências ao contexto fora do laboratório, recorrendo aqui às categorias de Aristóteles, indagando do seu eventual cabimento heurístico e dos seus limites[5].

A ousia: compreender o movimento dos vivos como auto-móveis
4. Submetida ao devir, a phusis tem nela todavia ciclos temporais, quer dizer que ela muda segundo repetições, razão pela qual Aristóteles poderá encontrar um saber a respeito desse movimento. O motivo da ousia está no centro deste estudo sobre o devir físico: se uma coisa muda, algo nela terá que garantir que continua a ser o mesmo ente e algo que permita compreender a mudança, trate-se dum ser vivo, por exemplo o ovo de que nasce um pintainho, ou duma estátua feita de bronze. É preciso, por um lado, 1) um mesmo “sub-jeito” ou “sub-estrato” (hupokeimenon) que seja garante da uni­dade e da in­dividualidade do ente antes e depois duma mudan­ça; do ponto de vista deste princípio, a ousia é dita hulê[6]: o que deste ovo permanece neste pintainho (outros ovos darão outros pintainhos), o bronze antes e depois da escultura. Por outro lado, a mudança im­plica dois con­trários: 2) um que dá um eidos se­gundo o logos, uma ‘especificidade’ que per­mitirá nomear, ou mesmo definir o ente (o pintaínho e a está­tua tais como se ‘vêem’), 3) o outro que é a sua ausência ou privação (sterêsis) antes da mudança (o ‘não-pintainho’ no ovo, a informidade do bronze). Sterêsis di­ria portanto a ousia ‘antes’ do movimento, o ir-se embora do (outro) eidos cessante, enquanto que eidos di­ria o novo rosto da ousia – o que é ‘visto’ do ente e permite nomeá-lo, o que lhe é específico, por de­finição da sua espécie (galos e gali­nhas, estátuas) – que conseguiu o movi­mento, a mudança, e que subsistirá estavelmente enquanto mor­phê, esta dizendo tal ente, individualizado nos seus acidentes (este pintainho, esta estátua).
5. Estes dois tipos de exemplos são distinguidos nitidamente no início do livro II da Physica (192b8-23): os entes que o são “por na­ture­za”, cujo movimento se faz por “eles mesmos” (kath’autôn) – são os animais e as plantas, as suas partes e os quatro ele­mentos – e to­dos os outros, nomeadamente os objectos técnicos, cuja mudança é devida a outros, mudam “por acidente” (kata sum­bebêkos). Esta distinção é capital, porque a phusis de­fine-se justamente por ter o movimento e o re­pouso por si mesma, ser o princípio dela e a ‘causa’ (aition), que se traduzirá talvez melhor por ‘motivo’[7]. Desenvolvido no livro II, ‘causa’ é dita também em sentidos diferentes, e nomeadamente segundo os princípios deslindados anteriormente: em vez de quatro causas, a causa em quatro senti­dos. O primeiro, o “a partir donde” (donde o ente vem), no qual ele é ­gerado principialmente (o bronze donde a estátua), é dito causa segundo a hulê; o segundo é dito segundo a especifi­cidade, eidos, o logos (a definição); a terceira maneira de dizer a causa, que reenvia ao “primeiro princípio da mudança ou do repouso” (aquele que tomou uma de­ci­são ou o pai duma criança)[8] e que merece melhor o nome de ‘causa’, é ki­noun (o mo­vente ou motor); enfim, a causa em-vista-da-qual, segundo o telos (a meta, o fim, o cabo), como um passeio em vista da saúde. É nas coisas produzidas pela arte (technê) dos humanos que é mais fácil discernir estes quatro sentidos (respecti­va­mente: o bronze informe, uma imagem esculpida, a arte do escul­tor, a estátua a ser colocada em tal lugar para ser admirada), enquanto que para os vivos os motivos eidos e telos parecem mais ou menos coincidir.  Por outro lado, a ‘causa’ como motor in­troduz uma ex­te­rioridade problemática na con­cepção do movimento dos vivos, que é definido como im­a­nente ou por phusis.
6. Para com­preender como se faz a passagem dum eidos que desaparece a um outro no mesmo ente, Aristóteles tem que acres­centar a esta quádrupla doação causal um outro par de motivos: duna­mis[9], o ente enquanto podendo tornar-se tal, capaz de mudar para tal, e entele­cheia, o vir ao cabo (telos) dessa possibilidade, a qual ente­le­cheia é dita por três vezes ser o movimento[10]. Logo de seguida (201b5-15), o exemplo do acto de construção duma casa é dito ener­geia (em-obra, ergon, efectua­do), matiz de sentido em relação a en­tele­cheia. Ora, no prin­cípio do mesmo parágrafo, diz-se que “ser movido acontece a”, o verbo ‘acontecer’ (sum­bainei) sendo a raiz de “acidente” (sumbebêkos): há ac­identes porque há movimento imprevisí­vel, portanto todos os entes sublunares os têm, mas os que exis­tem pela arte dos humanos são inteira­mente por aciden­te, ao in­vés dos entes por phusis, aos quais o movimento é ima­nente, kath’auto. Está aqui o que toca no es­sencial da física aristotélica: ela busca com­preender o movimento dos vivos e é isso que a inér­cia de Galileu e de Newton exclui­rá, por sua vez por razões es­sen­ciais à física deles.

A ousia e o tempo
7. Que a ousia se diga em vários sentidos, implica que este pensador que tanto se serviu da definição inventada por Só­crates o tenha feito todavia de maneira muito matizada (em relação aos seus herdeiros ocidentais), aqui mais pela circunscrição da polis­semia num leque de quatro sentidos e não pela sua exclusão: ele deu de ousia uma espé­cie de definição em constelação polissémica, segundo as di­versas maneiras em que ela se aproxima de tal ou tal outro motivo, sem ter sentido necessidade de multiplicar os termos para estas dis­tinções[11]. Isso é notável no livro das Categorias. Estas obrigaram-no a marcar bem a distinção entre dois dos sentidos de ousia, tendo ele todavia guardado a mesma palavra: a astúcia consistiu em, por um lado, adjecti­var a ousia como primeira no sentido do ente individual, a ousia como hulê-mor­phê, digamos (“este homem ou este cava­lo”) e, por outro lado, adjecti­var como segundas as espécies (eidê) e os gé­ne­ros (genei) “nos quais as ousiai tomadas no sentido primeiro estão contidas” (Categorias, 5, 2a10-16). O género e a espécie (ou diferença es­pecífi­ca) sendo as duas componentes da definição do eidos, esta ousia se­gunda corresponde claramente ao que os latinos tra­duzi­ram por ‘essência’, enquanto que a primeira corres­ponde à latina ‘substância’. No grego corrente, ousia designava as terras, os rebanhos, a residência, o que numa casa era transmitido em herança, de geração em geração: era portan­to o que permanecia o ‘mesmo’ da casa, enquanto as gerações mudavam. Foi sem dúvida por isso que Aristóteles a tecnicizou para dizer a ‘substância’ (o que permanece o mesmo dum animal ou dum humano no decurso das suas vidas) ou a essência (o que ele tem em comum com os da sua espécie, assim definidos tal como ele).
8. Que a tradução de ousia se tenha imposto no mundo latino em dois nomes – substância e essência – não deixou de ter consequências na compreensão do lugar do tempo no pensamento do Estagirita. Duplamente. Por um lado, o tempo diz respeito ao devir, ao movimento, de que ele é o número[12]; a ousia, ao mesmo tempo substância e essência, implica portanto o tempo por ela mesma, es­sencialmente, é caso para di­zer, visto que ela é pensamento da gera­ção – da vinda de cada ente à presença, ou seja ao tempo presente aonde ela durará até à sua corrupção, ao seu desaparecimento – e também pensamento da mudança: alteração, crescimento e dimi­nuição, deslocamento, tudo motivos essen­cialmente temporais. Ora, foi justamente a temporalidade que impediu Platão de a pensar, fazendo dela um Eidos eterno, uma essência fora-do-tempo, que a definição e o texto gnosiológico tinham arrancado ao seu contexto empírico. Por outro lado, é no acidente – categoria particular dum sujeito, que ele tem mas poderia não ter[13], que, sendo um atributo estável de tal ente, lhe pro­vém de algo que lhe ‘sucedeu’, como o seu próprio nome in­dica – que será marcada a condição temporal da ousia-substância a que tal acidente aconteceu. Ora, estes aci­dentes que as narrativas e os discursos con­tam, sempre singulares, são subtraídos por eles mesmos ao conhecimento filosófico ou científi­co, segundo os princípios ou as causas: eles rele­vam do contexto que a defi­nição largou. O motivo do acidente é assim a articulação possível – instituída por Aristóteles – do texto gnosiológico das essências intemporais às narrativas e aos dis­cursos dos acontecimentos: se os acidentes são acidentais, não há todavia ousia sublunar sem acidentes, a acidentalidade enquanto tal é-lhe es­sen­cial. Há pois em Aristóteles após Platão retorno às coisas, mas tais como elas foram definidas na sua capacidade de movimento. Mas este retorno apagar-se-á em parte na tradi­ção latina, onde, quer como substância oposta a acidentes, quer sobremaneira como essência, a ousia se tornará intemporal, cúmplice do eidos de Platão[14].

O duplo laço: compreender o movimento dos auto-móveis inertes
9. Todos os vivos somos auto-móveis, sujeitos de reprodução, crescemos entre nascimento e morte, foi o que Aristóteles pensou; mas não são assim as máquinas a que chamamos ‘automóveis’, certamente devido ao espanto que provocaram quando apareceram no início do século passado em contraste flagrante com coches e carroças puxados a cavalos. Embora andem com velocidades muito maiores do que as dos nossos melhores corredores, eles são inertes, feitos pelos humanos, acidentalmente, em terminologia aristotélica. Sendo um objecto de engenharia que supõe várias regiões da física e da química, poremos a questão de saber como é que, do ponto de vista do laboratório, um automóvel – um inerte que se move – é pensado teoricamente. Ou é pensado apenas empiricamente? A dúvida põe-se, já que na Física dos Europeus, em vez dos vivos que se movem, encontramos bolas de bilhar inertes que chocam uma com a outra, a que se move transmite movimento à que está parada. As coisas no laboratório de Galileu e Newton são inertes: paradas ou em movimento uniforme, só alteram essa situação por intervenção duma força exterior que a acelere ou atrase. A quádrupla causalidade aristotélica deixa de ter cabimento, os Europeus guardarão apenas essa força exterior como causa motora, ou eficiente. Ela é invocada nas experiências laboratoriais, físicas ou químicas, que testam as diversas peças dum automóvel, mas como compreender o movimento deste, que tem entre as suas peças internas algumas que permitem travar ou acelerar? Como é que a teoria global do automóvel enquanto conjunto de peças destinado ao tráfego das estradas é pensada pelos engenheiros? Há aqui um desafio: suponho que essa teoria permanece empírica. Sem a poder desenvolver aqui, proponho uma abordagem fenomenológica que conta com Husserl, Heidegger e Derrida e com as principais descobertas das ciências do século XX (citação § 4). A resposta tem que ser procurada antes de mais na cena do tráfego, no que ela pede como manobras do movimento: acelerar e travar, virar à direita ou à esquerda, tendo em conta o aleatório do caminho a percorrer e dos outros carros ao redor. Obviamente que o desenho e o cálculo das peças do carro é feito sempre em função desta lei do tráfego. E como se faz para ele andar? Aí, há um certo conjunto de peças que dá força para o movimento, feito de cilindro e êmbolo, gasolina e vela de ignição, conjunto de peças esse que tem que ser retirado de todo o resto das peças de regulação do movimento, já que a explosão é perigosa, só obedece à lei termodinâmica[15] dos gases (entre volume, pressão e temperatura). Este conjunto é blindado em seu retiro, ele merece bem o seu nome de motor de explosão, pondo o problema de a sua lei ser incompatível com a lei do tráfego a que obedece o resto do carro, aquilo que se pode chamar o seu aparelho.
10. Teremos então uma definição de automóvel[16] como concebido segundo duas leis incompatíveis e inconciliáveis, uma, termodinâmica, que rege o motor e corresponde à causa cinética aristotélica, a que causa o movimento, mas lhe é interna, auto-, embora com combustível alimentado do exterior, e a outra que rege o aparelho e corresponde à causa final aristotélica, a que destina o carro na cena em vista da sua direcção ou sentido. Dir-se-á que esta não é uma lei da Física; é com efeito uma lei sociológica, mas donde provém a teoria que engloba todas as experimentações de peças do carro segundo as leis da Física e da Química[17]. Quanto aos outros dois sentidos da causalidade aristotélica, a material corresponde às matérias primas de que são feitas as peças do carro e a formal ao conjunto que é a própria invenção dos engenheiros, actualizando-se constantemente em novos modelos com o tempo.
11. Ora bem, os dois conjuntos de peças (duas partes do carro) que distinguimos, o motor e o aparelho de que o carro é construído, são concebidos, em sua autonomia relativa (retiro do motor), como dois laços (ou ligações) de peças antagónicos mas sem que nenhum deles tenha qualquer verosimilhança sozinho, só foram pensados teoricamente e só existem um com o outro, formando um só duplo laço: as duas leis incompatíveis também são indissociáveis na unidade que é ‘um’ automóvel circulando na rua. Ora, o que se passa com a ‘causalidade’ do aparelho é a conjugação das regras dele estudadas laboratorialmente com o aleatório da circulação, o que será uma lei geral dos aparelhos de circulação: obnubilados pela causa / efeito do laboratório que herdaram da filosofia com a definição, os cientistas não conseguem dar-se conta de que, de maneira geral, onde há regras, elas respondem a situações aleatórias.

A tese deste texto: o motivo do duplo laço, no contexto fenomenológico das ciências contemporâneas, é proposto para substituir o par ousia / acidentes da Physica de Aristóteles
12. O que significa que é um motivo que se repetirá em cada grande região científica, segundo o tipo de movimentos que se fazem nas respectivas cenas, que os laboratórios repetem de forma circunscrita. O que serão então, em cada caso, os ‘elementos’ que são enlaçados, que são ligados, à maneira das ‘peças’ dum automóvel? Na cena da gravitação, a da história astrofísica e do planeta terra, são como diremos em post-scriptum (§§ 27-30), primeiro laço, os dos protões e neutrões do núcleo atómico pelas forças nucleares[18], segundo laço, os graves sólidos, líquidos e gases que formam os astros ligados pelas forças da gravidade; na cena da alimentação, a dos animais da evolução biológica[19], primeiro laço, o das células ligadas (em órgãos) pela circulação do sangue que as alimenta, segundo laço, neuronal, ligando órgãos dos sentidos, cérebro e músculos no sistema da mobilidade; na cena da habitação, a da história das sociedades humanas, primeiro laço, o dos vários usos duma unidade social (incluídos os humanos que assim usam) ligados em paradigmas, segundo laço, politico, o dessas unidades locais em sociedades maiores ou menores e seus regimes de troca e de ordem; na cena da inscrição, nos limites da história do saber ocidental, são as palavras feitas de letras alfabéticas em frases ligadas por códigos textuais[20]. Em cada uma destas regiões é sempre o mesmo tipo de ‘coisa’, fortemente repetitiva, que ocupa o lugar do que é retirado por via da lei incompatível com a da cena: respectivamente o núcleo dos átomos, o ADN das células, o paradigma dos usos de unidades locais humanas privadas, as letras do alfabeto. Embora de forma muito limitada no que diz respeito à Física e à Química e com muitas diferenças nos outros da ordem do singular, cada duplo laço segundo as leis da cena respectiva garante ‘um’ composto, um mecanismo autónomo em sua unidade e temporalidade, em seu “ser e tempo” (na linguagem de Heidegger, que redescobriu Aristóteles para o nosso tempo): o que se pode chamar um mecanismo de autonomia com heteronomia apagada.

Os duplos laços dos animais são mais complexos do que os das máquinas
13. Com efeito, o fenómeno do auto-crescimento dos vivos, que fascinou Aristóteles e que a Biologia molecular nos revelou na segunda metade do século que passou, só é susceptível de convir à definição que demos de duplo laço fenomenológico, se este for descrito, no que aos animais diz respeito, a três níveis que se desenvolvem uns a partir dos outros: o das células, o sistema da alimentação delas pelo sangue (carregado pelos aparelhos digestivo e respiratório) e o sistema da mobilidade, implicando a caça e a defesa de ser caçado. (Incorro assim o risco de penetrar em paradigmas científicos, dando atenção ao que, lendo a literatura de divulgação, neles permanece de entrave filosófico, como se verá, sabendo sempre discernir que ao laboratório a entrada nos é vedada.) O nível da célula exibe claramente o retiro do ADN no núcleo como condição da sua preservação de ser degradado nas transformações químicas do metabolismo, como sucede ao ARN mensageiro que o repete na sintetização das proteínas[21].
14. Ao nível geral do organismo dum mamífero, por exemplo, a comparação com a máquina automóvel complica-se com o fenómeno da alimentação e crescimento que a máquina ignora (o que o motor da máquina pede de alimentação é apenas energia, força). O crescimento implica que, no vivo que começa por ser uma única célula seminal, a alimentação, além de energia, terá de ser também de moléculas de carbono que tornem possível a duplicação de células propícias ao crescimento, mas também a substituição de proteínas que se deteriorem devido à fragilidade da sua complexidade. De forma simplificada, o sistema dos vários órgãos de alimentação (digestivos, respiratórios, circulatórios) é enlaçado pela circulação do sangue que leva nutrientes e oxigénio a cada célula. Para que haja comida, este sistema tem que servir de ‘motor’, através de hormonas da fome, dar movimento ao sistema da mobilidade para que este cace e tenha iniciativas de movimento na cena ecológica em que vive: o sistema neuronal cerebral, enlaçando os diversos órgãos de percepção com os músculos dos movimentos responde, como ‘aparelho’, ao motor hormonal que assim o pulsiona à acção na cena ecológica onde ele foi gerado e se alimenta, a que pois pertence, ser no mundo (em termos de Heidegger, mas indo além dele). O sistema da alimentação faz duplo laço com o da mobilidade, este ‘aparelho’ na cena aleatória, aquele ‘motor’ retirado aquém da pele, já que tanto o ADN como as hormonas, ‘endócrinas’, são ‘cegos’ para a cena: provocando fome, não determinam o menu que depende do aleatório da cena[22]. Quais as duas leis que regem este duplo laço? A do ‘motor’ parece ser clara, tem a ver com conseguir-se a sua auto-reprodução, a de todos os órgãos em suas células. E a do ‘aparelho’? Como na cena do tráfego, trata-se de que todos os animais têm que se auto-reproduzir e isso passa, para os carnívoros, por comer herbívoros como para estes por comer plantas, as quais recebem por fotossíntese as moléculas de carbono, glicose, necessárias às células de todos os vivos. Esta lei pode ser chamada lei da selva e é indissociável da lei de auto-reprodução de cada vivo, a qual é obviamente incompatível com ela, sob pena de vida ou de morte. 
15. E a que corresponderão os outros dois sentidos da causalidade aristotélica? O da materialidade é aonde reside a especificidade do movimento dos vivos enquanto crescimento: a sua ‘matéria’ ser constituída pelo seu próprio movimento de alimentação, mas este sendo de predação sobre a ‘matéria’ de outros vivos, empenhando pois a finalidade do sistema da mobilidade, é a partir dos ‘outros’ que se faz o kath’autôn da phusis: a hulê constrói-se elaborando o vindo de fora (kath’etherôn!) para se fazer kath’autôn o seu eidos, o que Aristóteles não pôde saber; ‘constrói-se elaborando’, isso faz-se segundo a acidentalidade, o aleatório dos outros comidos. A causalidade segundo a forma corresponde ao conjunto dum vivo, duma planta e suas flores, dum animal vertebrado ou não, ao que deles se vê e cheira e mexe fora do laboratório, nas cenas das selvas. É a dimensão do animal que joga em cheio face ao outro grande sistema dos vivos, o da sexualidade e suas hormonas de atracção[23], onde nos humanos se desenvolveu todo o gosto da beleza dos corpos e dos seus gestos, de dança e de amor, das artes que os reproduzem e cantam. 

Duplos laços duma tribo
16. Limitemos aqui a análise dos duplos laços sociais a uma tribo simples, composta do laço que formam as diversas unidades de residência local, regido por uma instância de regulação política, à maneira de conselhos de anciãos ou equivalente. Cada uma dessas unidades sociais por sua vez enlaça os seus habitantes segundo as regras do paradigma dos usos quotidianos (equivalente em todas) que se aprendem dos mais velhos e implicam as tarefas de alimentação e protecção de mamíferos que inventaram a culinária e outras técnicas de habitação. Difíceis de inventar mas mais ou menos fáceis de aprender, esses usos são inscritos no sistema de mobilidade (o que Changeux chamou grafos cerebrais) pela aprendizagem que torna cada um hábil no seu executar espontâneo. Este laço interno à unidade local terá a ver com o interdito do incesto que reserva para a exogamia as raparigas, o sistema de parentesco assim instituído sendo o eixo do laço político entre todas as unidades tornadas solidárias por uma aliança que funcionará mormente em situações colectivas, iniciações, festas, funerais, caças ou pescas, e sobretudo guerras com outras tribos. Sendo possível prosseguir as linhas das transformações históricas resultantes da invenção da agricultura e da criação do gado, dos artesanatos e da escrita, limitemo-nos aqui ao mais simples duplo laço social, o que rege a vida quotidiana das unidades locais e ao que rege o conjunto segundo as regras do parentesco.
17. Quais são as duas leis que regem estes duplos laços sociais? A que rege o paradigma das unidades é simultaneamente ecológica, depende da abundância de fauna e flora da região, dos trabalhos de caça e colheita, e organizativa de forma autónoma, a ‘privacidade’ de cada unidade sendo condição de trabalho sem ter toda a multidão da tribo às costas. A auto-reprodução de cada uma implica que todas assegurem, à maneira dum ‘motor’, a auto-reprodução da tribo, sendo que o aleatório de guerras ou outras urgências implique a regulação do conjunto para garantir todos e cada um, já que só sobrevivem em conjunto, as duas leis são indissociáveis. Quanto à sua inconciabilidade, basta saber das constantes rivalidades entre unidades, como aliás dentro de cada unidade – ‘quem pode mais?’ – para se ver como as regras da privacidade são uma defesa elementar contra a balbúrdia generalizada. Sucedendo à lei da selva que desenvolveu músculos e astúcias, as sociedades humanas parecem ser regidas pelo que há que chamar lei da guerra.
18. Qual é a causalidade material aqui? Ela é dupla: por um lado, as inscrições técnicas que são as próprias residências e seus utensílios, por outro, os grafos que se inscrevem em cada indígena. Quanto à causalidade segundo a forma, ela manifesta-se na ornamentação das casas e dos corpos que a sublinham e procuram que seja melhor do que a dos vizinhos. E colectivamente nas danças e festas.

Os duplos laços da linguagem
19. A linguagem, uso social duplamente articulado que – juntamente com outros usos, diversos segundo as geografias e os períodos da história, a que ela fornece receitas que permitem aprendê-los – faz parte das ‘moléculas sociais’ que constituem os paradigmas das unidades sociais como ‘células’ duma sociedade. A linguagem oral, estudada pela Linguística estrutural iniciada por Ferdinand de Saussure, será o quarto exemplo fenomenológico. Foi André Martinet quem propôs a dupla articulação como inerente à linguagem oral (e ao alfabeto)[24], entendendo logo que ela se adequava admiravelmente à biologia dos humanos, quer ao seu sistema de fonação, quer ao sistema cerebral. Com efeito, as nossas gargantas não são capazes de fazer de forma suficientemente distinta mais do que algumas dezenas de sons elementares, os que catalogamos entre vogais e seus acentos, consoantes, ditongos, fonemas orais ou letras escritas: donde que esses elementos não possam servir para designar o que quer que seja, sob pena de se esgotarem num ápice. O truque então foi o de retirá-los da comunicação e compor com eles palavras para se dizer receitas, contar mitos e outras histórias, conversar indefinidamente com alguns milhares de palavras que facilmente decoramos nos nossos cérebros. As palavras são assim duplamente enlaçadas, ligando fonemas e letras para se constituírem e sendo ligadas em frases de discursos e de textos para terem sentidos concretos, segundo o aleatório da cena, de habitação ou de inscrição, do que há que dizer ou escrever, como qualquer conversa ilustra, nunca se sabe o que o outro vai dizer e a que haverá que responder.
20. A linguagem é pois um uso, variável com os povos, que se aprende de outros indígenas, como se de uma alimentação se tratasse mas ao invés das predações, já que para criar redes de relação comunitária, embora susceptíveis de zangas e conflitos. A causalidade em sentido motor é dita pelo termo ‘pressão’, quer quando se fala de ‘expressão’, a voz que é ex-pressa, pressionada para fora, para outrem ouvir, quer de ‘impressão’, como os nossos dedos com caneta e tinta ou no teclado das letras e dos números, pressionando um material que se preste à leitura. Esta causalidade motora joga-se assim como voz, laço de sons entre garganta e boca e ouvidos do outro, como letra num laço de riscos entre mãos que escrevem e olhos que lêem. Mas ela obviamente que não é suficiente, já que um estrangeiro nem compreende o que é dito nas frases que ouve nem o que vê em linhas escritas, crendo embora que aquilo tem ‘sentido’, não o capta. Este releva então do outro laço, o do discurso (texto), cujo sentido é o que quem fala ou escreve propõe comunicar, a sua finalidade, seja resposta dada, seja questão posta a outros. Enquanto que as regras da fonologia regem a constituição das palavras, as relações diferenciais dos fonemas entre eles nas vozes motoras das falas, enquanto que as regras da sintaxe, morfologia e semântica[25] regem o jogo das diferenças entre palavras na frase e no discurso (ou texto). Quem fala é como que o piloto que governa a direcção das frases que vai dizendo e as relações entre elas, segundo o aleatório das conversas, devendo essa direcção obedecer à lei da verdade tribal que é inerente a qualquer língua como condição de entendimento entre os interlocutores, que modula por exemplo os verbos relativos ao ‘saber’ entre ignorância, dúvida, erro, certeza, e por aí fora, que admite ficções mas não mentiras, a não ser que estas ganhem a aparência de verdade. Esta lei da verdade tribal é correlativa da lei de aliança gerada pelo sistema do parentesco, sem a qual nenhuma sociedade sobreviveria.
21. Questão curiosa aqui, que Aristóteles terá ignorado, presumo, é a da causalidade material das falas ou dos escritos: será o ar em frequências sonoras ou o papel em que se escreve e onde o escrito perdura? Os sons e os riscos? Sabe-se que de Saussure recusou que os fonemas e as palavras consistissem nos sons que as vozes dizem e que por isso mesmo diferem de falante em falante com a empiricidade das respectivas vozes; para ele, a ciência linguística não retém como pertencendo à língua senão as diferenças entre esses sons, ‘significantes’ (diferenças entre fonemas) e ‘signifiés’ (diferenças entre palavras das frases). Mas propus sem esta hesitação que os sons da voz sejam o ‘motor’ da fala: a causalidade de tipo material distingue-se entre sons e significantes, sendo que estes – diferenças entre os sons – não são ‘materiais? Curiosa questão que nunca se me pusera, há mais de trinta anos que trabalho sobre estas questões e que foi a problemática aristotélica quem me levantou. A resposta está em ambas, na indissociabilidade entre a fala e a língua. A causalidade material das falas, que as línguas não a têm fora daquelas, será então a indissociabilidade entre os sons da voz e os fonemas significantes da língua nas frases de palavras feitas. E a causalidade formal (do eidos) será o sentido global do discurso (significantes e significados indissociáveis) em sua maior ou menor verdade e beleza, mais claro por certo nos grandes textos de ficção e de pensamento. Crucial como é a questão da causalidade em Aristóteles, como aliás a gramática que dele se forjou utilizou as categorias dele – os ‘substantivos’ e as ‘substâncias’ – em correlação entre a palavra e o que ela designa, percebe-se como foi necessária a Saussure uma inteligência de ruptura com essa gramática e com a filosofia que ela transporta (exclusão do nomenclaturismo pelo Curso de Linguística Geral).
22. O duplo laço da linguagem é então o que une fonemas em palavras na voz de cada falante e o que une as palavras em sequências de frases  de discursos (textos), o que dá força de falar e o que dirige a fala como pensamento. Dois laços que são indissociáveis, como condição de os falantes se entenderem na mesma língua, formam pois um só e duplo laço, voz e pensamento do discurso, mas também inconciliáveis, como condição da liberdade de cada falante ao exprimir-se, que pode rebelar-se de muitas maneiras contra a lei de auto-reprodução da sua língua, mentindo por exemplo trivial e, por exemplo nobre, fazendo poemas, inventando metáforas e outras figuras poéticas e retóricas não acolhidas pela língua e pela cultura, escrevendo ficções e pensando coisas novas com as palavras dos outros (Manuel Gusmão). Mas não só; cada um de nós que aprende a falar no dia a dia fá-lo sempre à sua maneira que cria idiossincrasias que se estabilizam num estilo inédito, só possível pela inconciliabilidade das duas leis, pela resistência oferecida aos próprios mestres que nos ensinam, pela aprendizagem da palavra crítica. Este enigma entre uma lei social e uma lei individual indissociáveis e inconciliáveis constitui a essência da nossa liberdade e habilidade, a nossa sociabilidade intrínseca.

Duplo laço: tudo é indeterminado em seu movimento
23. O que é que nos ensina esta comparação com a concepção aristotélica do movimento, que a modernidade europeia considerou caduca? Que se tratou nesta duma miopia sobre os entes vivos nomeadamente, sobre a sua posição nas cenas da dita realidade, miopia essa que resultou do deslumbramento provocado pelas descobertas permitidas pela invenção do laboratório, por seu lado positivo, mas também, negativamente, pela incapacidade logocêntrica (Derrida) de compreender a necessidade desse laboratório para reduzir o contexto dos fenómenos analisados. Ora foi nesse contexto que as análises fenomenológicas aqui esboçadas se fizeram. Ou seja, os cientistas tomaram o que se passava no laboratório como ‘conhecido cientificamente’, transponível sem mais na realidade extra-laboratorial: em terminologia aristotélica, reduziram-lhe a acidentalidade para reter apenas o essencial no laboratório e que esse essencial seria universalmente válido lá fora em qualquer contexto[26]. Sucede no entanto que as operações de laboratório são sempre fragmentárias, há que as multiplicar segundo aspectos vários e depois compor esses fragmentos numa ‘unidade’, para poder chegar a teorias relativas aos entes de tal espécie (graves, vivos, discursos, máquinas), como aqui se tentou mostrar fenomenologicamente.
24. Dado que todos esses entes são susceptíveis de movimento (ou de serem movidos), o que é que se mostrou no que diz respeito à causalidade desse movimento? Que este exige um duplo registo entre ‘motor’ – repetitivo e interno, retirado da cena de movimentação que ele ignora e a que dá a força (e a substância) de se mover – e ‘aparelho’, que se adequa ao aleatório dessa cena, segundo as regras que os cientistas descobrem. Grande novidade que parece ainda por saber, as ciências tornaram possível conhecer as regras do que se chama habitualmente ‘realidade’, ‘ambiente’, conhecer as cenas de circulação dos entes segundo os quatro grande níveis que enunciámos acima (§ 12), sem que os cientistas pareçam dar-se conta de que todo o alcance dessas regras é função das circunstâncias aleatórias das cenas da dita realidade, sem dúvida porque obnubilados pela causalidade de tipo cinético que rege a experimentação laboratorial. Este ‘aleatório’ mais não é do que aquilo que, desde Aristóteles, se pensou como acidental, que esta fenomenologia, filosofia com ciências, mostra agora ser algo a que respondem as regras dos aparelhos de cada tipo de ente: tal como no automóvel, as regras que as ciências descobrem visam essencialmente as situações aleatórias da cena (e é por isso que este motivo deve substituir o genérico e inerte ‘realidade’, ‘ambiente’). Cada ente é um mecanismo autónomo[27] sujeito a duas leis, uma que dá força aos seus movimentos (e substância), outra que lhe confere sentido, direcção, finalidade.
25. É a definição de Aristóteles que é assim tornada caduca, a sua oposição entre essência ou substância e acidentes (que nós continuamos a usar muitas vezes), ou seja a oposição entre o ser e o tempo e entre ser e mundo (contexto exterior). Percebe-se que Heidegger passou por aqui. Como se disse, a definição arranca o fenómeno definido ao seu contexto, deixa a estes os ‘acidentes’ por conhecer e define apenas o que assim isolou: eis que se justifica que o pensamento ocidental tenha sempre privilegiado o ‘dentro’ sobre o ‘fora’, a interioridade sobre a exterioridade, o ser sobre o seu contexto. Até à viragem iniciada por Ser e Tempo. Ora, o duplo laço é a caracterização do ente que se move como ligado por duas leis, uma que – rege o ‘motor’ – lhe dá o movimento vindo de ‘dentro’ e a outra que – rege o ‘aparelho’ – dita as regras do ‘fora’ que o deu e onde ele circulará. Dentro e fora são articulados indissociavelmente sem se conciliarem no entanto[28], em eco à reclamação de Derrida na sua De la Grammatologie (1967). Mas ao caducar, Aristóteles não se rende, porque permite restituir contra o determinismo laboratorial a indeterminação de todos os entes terrestres (sublunares) do menos complexo ao mais complexo[29], desde a inércia dos graves[30], passando pela autonomia de plantas e invertebrados, até ao enigma dos vertebrados, sobretudo os bem mais complexos humanos em suas sociedades, a que reservamos o nome de liberdade. Quanto à matéria e forma de Aristóteles, poder-se-ia dizer de forma geral que as artes inscrevem diferenças (não ‘formas’) em matérias de empréstimo, como dizia Alain da pintura[31], e os ofícios e engenharias inscrevem formas em matérias primas. A aprendizagem consiste em inscrever os usos como grafos sinápticos nos neurónios dos cérebros aprendizes, tornando-os hábeis. Quanto aos vivos, na sua geração parece ser o citoplasma do óvulo da fêmea a ‘matéria’ em que os genes combinados da fêmea e do macho são inscritos. Enfim, os usos, técnicos e leis, serão o que inscreve uma sociedade como tal, como habitação sobre a Terra.
26. É possível que os cientistas, tão mobilizados por trabalhos de investigação ultra especializados, em equipas e por vezes com equipamentos muito pesados, não tenham interesse por estas questões, tanto mais que fazem intervir um filósofo da chamada Antiguidade de que se julgam desembaraçados pela chamada Modernidade, é possível que não as entendessem sequer, ainda que tivessem vagar. Mas aos filósofos que se interessam por ciências, o recurso ao Estagirita poderia ser o aliciante para o que faz o prémio desta disciplina do saber, o alargamento da compreensão das coisas: a dificuldade de leitura dos meus textos de filosofia com ciências, consiste por um lado no facto de que os leitores não conhecem as diversas ciências que aí intervêm, quanto muito uma ou duas e que, quando conhecem uma ou outra, é segundo o epistema greco-europeu em que se privilegia o interior (a substância, a ousia) sobre o exterior, o ‘ambiente’ (os acidentes). O problema da Biologia (e das ciências europeias em geral) é ela estar presa à determinação que caracteriza o laboratório mas que vem já da definição e do privilégio que lhe é inerente entre o definido e o contexto donde ele é arrancado, da essência / substância sobre os acidentes, do dentro sobre o fora. Ora, no laboratório só se fazem análises bioquímicas entre moléculas, que é onde a determinação decide correlações regulares entre essas moléculas, caso por caso, fragmentariamente. Para ajuntar esses fragmentos em teorias ter-se-á que considerar, sem laboratório todavia, a maneira como os vários órgãos agem na anatomia do organismo, tendo em conta os dois sistemas da auto-reprodução, o da nutrição e o da mobilidade, que o sistema cerebral coordena (além do sistema da sexualidade, relativo à reprodução da espécie). Ora, o determinismo aqui claudica, como a análise fenomenológica mostra recorrendo ao ciclo bioquímico do carbono para demonstrar a lógica da lei da selva, mas desde as grandes descobertas da biologia molecular, nos anos 50 e 60, que se viu os genes encarregados duma função determinista sobre ‘aspectos’ variados do organismo (os mais cómicos sendo o gene da inteligência e o da homossexualidade). O duplo laço desconstrói este privilégio do dentro / fora, substância / contexto vindo da definição, esta oposição entre o organismo e o ambiente, entre o ente vivo e a cena que o dá e deixa ser, o gera e alimenta.

P. S. Duplo laço e big Bang
27. O motivo de duplo laço foi descoberto em função do movimento dos vivos mas tendo um modelo simplificado, o das máquinas modernas, o que permite uma extensão para a descoberta essencial da Física e Química no século XX, a do átomo e da molécula, interrogando o motivo mesmo de ‘explosão’ que joga no motor que tem esse nome: donde lhe vem a força? A resposta consiste na compreensão da passagem do estado líquido da gasolina ao estado gasoso provocada pela ignição: são desfeitas as forças electromagnéticas que ligam as moléculas do líquido, libertas em forma de gás; o que significa que o estado líquido depende de forças que ligam electrões de moléculas, como o sólido também, isto é as moléculas ligadas num grave (uma rocha, por exemplo). Se interrogarmos as explosões nucleares, que libertam muito maior energia, são agora protões e neutrões dos átomos de urânio que são desligados uns dos outros e se expandem, às forças que os ligam no núcleo atómico os físicos chamando forças nucleares. Então, embora se trate duma questão polémica, é possível dizer que qualquer grave é composto de duplos laços de moléculas: um constitui o núcleo do átomo, o outro consiste no conjunto ligado de electrões, tanto os do átomo como os que ligam átomos em moléculas e estas em graves líquidos ou sólidos. O que é difícil nesta proposta é pretender que o núcleo do átomo seja um ‘motor’ e os electrões um ‘aparelho’, embora o primeiro seja retirado das trocas químicas a que os electrões se sujeitam e das forças da gravidade que jogam na respectiva cena dos astros, esta última retracção parecendo óbvia nos efeitos anti-gravidade das explosões, a expansão energética em que elas consistem.
28. Com todas as cautelas (e ‘pareces’) que se impõem ao leigo, o motivo astrofísico do big Bang parece abrir um tempo de explosão de ‘partículas’ (electrões, protões, neutrões, fotões) que parece desafiar a gravidade, a qual, a crer nos aceleradores de partículas, parece não ter cabimento nessas explosões experimentais. Ora, o motivo do duplo laço só parece dar conta de ‘matéria’ em sentido corrente, de graves sólidos, líquidos ou gasosos, que são ligações duplas de muitos milhões de moléculas. Como dizia Bohr, “o átomo é um ser de laboratório”, só neste é susceptível de observação e manipulação experimental, os aceleradores de partículas também são laboratórios, apesar das suas dimensões, mas não creio que susceptíveis de manipulação laboratorial propriamente dita sobre as partículas que neles explodem, não parecendo possível com os protões, neutrões e electrões à solta ‘recriar’ átomos, já não digo de urânio, mas de hidrogénio ou hélio. Ou seja, não haverá duplos laços num acelerador de partículas como não os terá havido no que sucedeu após o big Bang dos físicos. Se for assim, a questão que se porá é a de saber como é que esses duplos laços se constituíram.
29. A dúvida não é de física (seria apenas ignorância minha e esta é imensa), mas de filosofia ou fenomenologia. E não é sobre o big Bang propriamente dito que, enquanto explosão, pressupõe ligações anteriores que se desfizeram e é compreensível que não se saiba dizer grande coisas sobre esse ‘antes’. Comentei a questão num texto inédito, lendo as célebres lições sobre Física de Feynman em 1961, tendo verificado que ele privilegia sistematicamente os ‘entes’ (graves, átomos, cargas eléctricas) ‘antes’ dos campos de forças, ao contrário do que creio ser a lição da Física: são os campos que ‘constituem’ os entes, embora seja das forças entre os entes que sejam os campos, sem poder pois decidir entre uns e outros. O privilégio dos entes parece-me ser ‘a’ maneira (substancialista) de fazer de toda a Física, desde Newton, cuja mecânica esclarece muitas questões das forças nos movimentos mas não é capaz de compreender a força da gravidade (que Feynman diz continuar a não se saber ainda hoje, mas também não a energia), enquanto que o que a ciência dá a conhecer são “diferenças e proporções” entre medidas (Galileu)[32]. Ora, os duplos laços em Física são uma abordagem fenomenológica dos campos de forças (nucleares, electromagnéticas e gravitacionais). É possível pensar uma enxurrada explosiva de protões, neutrões e electrões à solta sem campos de força entre o big Bang e a constituição dos primeiros átomos (nucleossíntese) de isótopos de hidrogénio, hélio e lítio (ao fim dos primeiros 100 segundos, parece)? Como é que esses campos de forças se constituíram? Nos aceleradores isso pode ser repetido experimentalmente? (vê-se a ignorância do questionador em termos de Física, que não sabe avaliar o papel da temperatura nestes processos).
30. A fenomenologia suscita uma segunda dúvida, agora a respeito da força da gravidade, que julgo que só é conhecida experimentalmente em astros e seus graves. Parece-me surrealista a ideia de haver gravitões em partículas, a própria noção de ‘uma’ partícula ‘ter’ uma força parece-me sintomática do pressuposto de que falei no parágrafo anterior: são entidades de estatuto físico diferente, pelo menos isso é razoavelmente claro na física newtoniana, que analisa movimentos de ‘entes’ inertes sujeitos à causalidade de forças cinéticas, e por esse mesmo privilégio será incapaz de entender a força de gravidade a distância, já que a pensa como as forças cinéticas que tão bem analisou e compreendeu. Um outro sintoma deste problema epistémico da Física é a noção, tanto em Newton como em Einstein, de que o movimento é relativo ao espaço e tempo num, ao espaço-tempo no outro, como se houvesse primeiro o espaço e o tempo e depois os graves, astros, etc., como se não fosse verdade em termos gerais a definição aristotélica de tempo como “o número do movimento”: é em relação a este que ele é medido, tanto nos laboratórios como em astronomia. A hierarquia dos físicos – 1º o espaço tempo, 2º as coisas inertes 3º as forças que as movem – deveria ser invertida – 1º os campos de forças (os duplos laços) 2º as coisas que eles constituem 3º o movimento delas susceptível de ser medido como espaço tempo. Se este parágrafo mostra alguma coerência fenomenológica, há que acrescentar que falta a competência filosófica do autor para ir além de levantar lebres. Também seria preciso ter em conta as “estruturas dissipativas” de Prigogine, a sua descoberta da “produção de entropia”, que aqui ficou silenciada.

2º P. S.
31. Ter começado pela Linguística, foi, além da minha primeira formação em engenharia, condição necessária do que fiz ou poderia ter começado com outra ciência, já que a escrita de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida começou pela biologia, por exemplo, e também aí se tratou a antropologia de Lévi-Strauss antes da linguística? Não é impossível, mas o que é certo é que quando a questão me ocorreu, me aconteceu, momento bendito de pensamento nos idos de 86, vieram as várias ciências todas juntas –da energia e matéria, da vida, da linguagem, da sociedade e do psiquismo – e sempre assim permaneceram (com Derrida, antes de explicitar a fenomenologia com Heidegger e Husserl), apenas as ciências da sociedade tiveram que levar algumas voltas. Mas todas as outra só puderam vir porque a minha tese de doutoramento tinha sido sobre linguística e a dupla articulação da linguagem (que nunca vi tratada por filósofos).
Comunicação ao Congresso Português de Filosofia, Sociedade Portuguesa de FIlosofia, Lisboa, 5-6 de setembro 2014




[1] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2013/12/porque-e-que-as-ciencias-precisam-de.html
[2] Enquanto que a sua Metaphysica, literalmente uma Pósphysica, estuda em seguida as categorias  que foram definidas na Physica considerando o ente enquanto ente. “A Physica de Aristóteles é, de forma retirada, e por essa razão nunca suficientemente atravessada pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental” (Heidegger, 1968, p. 183)
[3] A ousia da tragédia é definida no início do capítulo 6 da Poética e comanda todas as análises que se lhe seguem, da tragédia como da epopeia.
[5] Simplificarei a abordagem, que http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2012/02/version1.html desenvolve mais tecnicamente.
[6] ‘Bosque’, literalmente, ‘madeira de construção’; ‘matéria’ em la­tim e em português.
[7] “A ‘causa’ não é algo que produz um efeito, mas aquilo cuja busca nos dirige para aquilo a partir do qual um ser é dado, [...] um princípio traduzi­do num ponto de vista” (J.-L. Poirier, 1990, p. 19, eu subl.). ‘Motivo’ tem a vantagem de assinalar o movimento (motus).
[8] E não a mãe! A razão parece estar na ignorância dos mecanismos da con­cepção. Uma vez que não se trata de geração espontânea, é preciso um moti­vo segundo a hulê, que Aristóteles (e provavelmente os homens do seu tempo) encontra na analogia (mesmo nome na língua) do esperma macho dos animais com a semente (sperma) donde saem as plantas: ele julga que é esta semente masculina sozinha na ‘terra’ feminina que é a origem dos bebés.
[9] Da família semântica de dunaton, possível: o que se pode, o poder como ser capaz de, a força (dinâmica) de poder­-devir-outro (tradução latina por ‘potência’).
[10] Física, III. 201a10-11, 27-29, 201b4-5.
[11] Ele que diz que “não significar uma coisa única, é não significar nada [...] porque não se pode pensar se não se pensa uma só coisa” (Metafísica, IV, 1006b7-10).
[12] Física, IV, 219b1. Antes de mais do movimento dos astros celestes: “é de algo de contínuo, que o tempo é o número, a saber do movi­mento cir­cular” (Sobre a geração e a corrupção, II, 337a24), isto é, os dias, os an­os, as esta­ções.
[13]  “O que pode ser verdadeiramente dito de qualquer coisa, mas não neces­saria­mente nem habitualmente” (Metafísica, D, 30, 1025a14-15). As nove ‘categorias’ além da ousia são, segundo Aristóteles, as classes de ‘acidentes’ que podem ocorrer.
[14] Gilson dirá que o movimento é para Tomás de Aquino um acidente, em linha com a qualidade (Le thomisme, J. Vrin, 19475, p. 47).
[15] Dinâmica é a parte da Física que estuda as forças.
[16] Extensível a todas as outras máquinas, os motores eléctricos relevando da Electrodinâmica, mas também esses motores são blindados, retirados do contacto com o resto do aparelho. As máquinas diferem entre si, além da dimensão, é claro, sobretudo devido ao aparelho que é relativo ao trabalho que lhe compete
[17] O carro é parte dum uso social: como qualquer outra máquina, articula Física e Química com Antropologia.
[18] Simplifico, já que os duplos laços desdobram-se frequentemente, com electrões por forças electro-magnéticas que perfazem os átomos e as moléculas, quer simples quer compostas.
[19] Não sei de plantas, mas é claro que elas fazem parte, à sua maneira, da evolução.
[20] E em certas ciências os caracteres matemáticos (números, letras e sinais de operações) ligados em problemas. A que se acrescentarão os sons musicais em músicas diversas, as imagens em molduras, em planos de cinema ou televisão, e por aí fora, cuja relação à história do saber ocidental que não sei articular fenomenologicamente.
[21] Mas, tal como com o átomo e molécula aliás, a sua descrição em termos de duplo laço não se presta a identificar o ADN como ‘motor’ de que o metabolismo seria o ‘aparelho’, como se estes dois duplos laços primordiais da matéria, inerte e viva, não pudessem devido a essa sua condição inaugural obedecer à lógica dos compostos mais complexos que eles tornarão possível.
[22] Parece ao leigo em biologia que os biólogos foram levados a pensar a grande descoberta da genética como se se tratasse dum ‘motor’ que tudo explicaria, quando no fundo mais alcance não parecem ter do que o da reformulação das suas próprias proteínas. Ora, também o motor dum automóvel é cego para o tráfego, a cargo do ‘aparelho’, incluindo o condutor como sua peça piloto.
[23] Onde se mostra que é a sexualidade que obriga o animal vivo, o humano, a sair do ‘egoísmo’ da sua auto-reprodução e a virar-se para a/o outra/o, em favor da reprodução da espécie.
[24] Que não às outras ditas impropriamente ‘linguagens’, matemática, músicas, mapas, desenhos, fotos, etc.
[25] Voz e discurso são as duas componentes da fala (parole) na Linguística saussuriana, após L. Hjelmslev (morfologia e sintaxe) e M. Gross (sintaxe e semântica), elas tendem a ser unificadas em paradigmas que variam com as línguas (mesmo tratando-se de línguas da mesma família, como as latinas).
[26] Tratei desta questão numa comunicação ao Congresso Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks, December 4th to 6th, 2013. Ver em
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2013/12/porque-e-que-as-ciencias-precisam-de.html
[27] Há vários aspectos da análise em termos de duplos laços que não foram aqui tidos em conta, como o da doação apagada e o da entropia prigoginiana.
[28] Pode-se pensar que foi a inconciliação que de-cidiu o corte definitório da indissociabilidade pela de-finição, o que ajuda a compreender a história do pensamento, o alcance da desconstrução.
[29] Que são compostos, o ‘simples’ não existe.
[30] “A inércia de cada grave é o efeito das forças nucleares dos seus átomos: por um lado, ela é a resistência à sua desagregação, o garante da sua impenetrabilidade de grave (desde a chamada “resistência dos materiais”), por outro é a ex-posição às forças gravitacionais e / ou electromagnáticas propícias de transformações químicas. Ora, esta só é possível por causa da resistência, pela inconciliabilidade da inércia com as forças atractivas vindas de outros graves. Mas por outro lado, é das ex-posições de inércias resistentes de todos os graves da cena que é feita a lei heteronómica do campo gravitacional como do electromagnético. Como não há campo (ou cena) senão pelo conjunto das forças entre os seus graves, as duas leis, a do campo e a de cada grave, são indissociáveis” (Belo, 2007, cap. 13, § 76).
[31] Ver http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm, sobre “palavras, números, músicas e imagens”.
[32] É entre ‘diferença’ e ‘substância’ que o problema fenomenológico se põe : pretendo aliás que se é certo que foram Heidegger e Derrida que o explicitaram, foi a Física de Galileu e de Newton que abriu a possibilidade dessa explicitação fenomenológica. Se estas parágrafos ficam em post-scriptum é enquanto reenvio para outro texto em que este problema é colocado: Da Natureza à Técnica, da modernidade antiga à moderna (e.book), além de Belo 2007 e Belo 2009, e o indicado à entrada http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt.