quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Quando Nietzsche admira o saber que ele contesta




 “HÁ QUE ADMIRAR O HOMEM POR SER UM PUJANTE GÉNIO DA ARQUITECTURA
QUE CONSEGUIU ERIGIR SOBRE ÁGUA CORRENTE
UM EDIFÍCIO CONCEPTUAL
IN­DEFINIDAMENTE COMPLICADO” (NIETZSCHE)[1]


Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de Nietzsche
A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da linguagem
Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
Paradoxo da verdade filosófica
Onde é que há conceitos filosóficos?

1. Esta citação de espanto pertence à Introdução em termos de teoria do conhecimento sobre a verdade e a mentira em senti­do extra-moral, de 1873[2]. É o espanto diante da relatividade de todo o saber, científico e filosófico, do Ocidente – um edifíco sem fundamentos, sobre a água corrente – mas talvez que sem relati­vismos, já que o edifício não se desmorona. Passados quase 130 anos sobre a escrita deste texto póstumo – inacabado em seus dois capítulos, o primeiro ar­gumentativo para que o segundo se dê como afirmação jubilosa –, este espanto perdura, em mim pelo menos: é o que procurarei esclarecer aqui. Todavia não é ele que interessa Nietzsche, não é o que ele procura neste texto, já que surge quase como uma objec­ção, dir-se-á logo a seguir: “há muito que admirar aqui, mas não por uma pulsão de verdade, nem pelo puro conhecimento das coi­sas”. É algo que tem que conceder no caminho para a afirmação do capítulo 2, a do “heroi muito alegre”, do “artista intuitivo” e da sua “pulsão para formar metáforas”, porque este só é possível se for antes demonstrada a relatividade do saber, se as essências das coisas não forem co­nhecidas. E é no caminho de desobstrução do que impede tal re­latividade que Nietzsche apercebe o “edifício conceptual indefini­damente compli­cado” que se aguenta sem fun­dações, sobre a água corrente, e se espanta em como tal é possível – procurará mesmo explicar este prodígio de arquitectura com ar­gumentos kantianos ! –, para pros­se­guir depois enfim o seu cami­nho, que é o da sua libertação pes­soal do fascínio pelos conceitos: deixar de ser escravo deles, dei­xar de ser professor, para se tornar livre senhor artista, aquele que joga com intuições súbitas. Observe-se que minar os funda­mentos do edifício conceptual poderia levar ao seu desmorona­mento e à gargalhada do artista que ri sobre os des­combros. Fácil de mais: os fundamentos desaparecem e o edifício não cai. É nele e nos argumentos que lhe liquefazem os alicer­ces que vou aten­tar. Pas­sados tantos anos, talvez se encontre as­sim algu­ma liber­dade também, algum jogo com conceitos.

Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de Nietzsche
2. Na minha comunicação ao colóquio de 2000, come­moran­do nesta mesma Faculdade de Letras o centenário do início da fe­nomenologia de Husserl, delineei dois gestos sobre a linguagem na instituição filosófica dos dois episte­mas europeus descritos por Foucault, o clássico e o moderno[3]. O primeiro gesto foi o de Occam e do seu nominalismo, negando a existência das essências aristo­télicas nas próprias ‘coisas’ (nas ‘coisas-em-si’ dirá Kant, seu des­cendente), para as alojar nos “nomes mentais” com que essas coi­sas são pensadas; quanto aos nomes das línguas com que elas são designadas, eles serão subordinados aos mentais universais. A gé­nese da repre­sentação mental teve aí uma etapa decisiva (com ori­gem porven­tura na filosofia árabe comentando Aristóte­les), abrindo precoce­mente o epistema clássico: representação elabo­rada mormente por Descartes como ideia, que depois reto­marão de formas várias racionalistas e empiristas, como se diz. Segundo os nominalistas, as coisas são todas substâncias singulares, inclu­sive as almas que as conhecem, Descartes di-las-á ‘res’, umas ex­tensas, outras cogi­tantes: Occam enterrava assim a mesmidade parmenidiana entre ser (einai), pen­sar (noein) e dizer (legein) que subsistia ainda na não-separação entre a substância-essência dos seres vivos e o discurso das categorias que os pensava no aristotelismo medieval[4]. De facto, a represen­tação mental só ganha sentido como ‘ponte’ entre os separados: das ‘coisas’ às ‘almas-sujei­tos’ que as conhecem, e tão afastadas fi­cam as duas margens do rio do conhecimento que Des­cartes, Ma­lebranche, Leibniz, Berkeley, precisarão de Deus para garantir o co­nhecimento ver­dadeiro. Neste epistema, a linguagem não tem se­não uma exis­tência secundária, a dum instrumento, a duma ex­pressão das excelentes re­presentações que são as ideias.
3. Foi o que veio corrigir o segundo gesto, o de Nietzsche. Foucault: “a linguagem só entrou directamente e por ela mesma no campo do pensamento no final do sec. XIX. Poder-se-ia dizer até que no séc. XX, se Nietzsche o filólogo – como ele era sábio, sabia tanto, escrevia tão bons livros – não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica duma reflexão ra­dical sobre a lin­guagem” (ed. fr., Gallimard, 1966, p. 316). Quero crer que o que, em termos filosó­fi­cos, há de totalmente novo neste texto póstumo de 1873 é jus­tamente o ter aborda­do a questão do conhecimento afrontando a representa­ção mental através da tentativa de elucidação da géne­se da linguagem: uma vez que tal como a representação caracteri­za o epistema clássico, segundo Foucault, também assim o tempo das géneses caracteriza o mo­derno.
4. No Nascimento da Tragédia, publicado um ano antes deste texto ser escrito, Nietzsche privilegiava Kant e Schopenhauer por terem “uma sabedoria dionisíaca formulada em conceitos” (ed. fr., Gonthier, 1964, p. 130). Poder-se-ia pensar que, nesse primeiro texto publicado por Nietzsche, o Schopenhauer da filosofia da vontade (paralela da música) e da representação teria introduzido a música no fosso kantiano entre o mundo dos fenómenos e o mundo das coisas-em-si, pensar depois que, tendo Nietzsche des­coberto, à luz da leitura de dois livros en­tretanto publicados[5], a natureza metafórica origi­nária da linguagem, é agora a música que é substituida pelo turbi­lhão móvel das metáforas. Sai pois Schopenhauer de cena, enquanto Kant passa para o lado do ad­versário, já não dionisíaco mas racional: é ele quem lhe oferece – além duma solução (“idealista”, diz) tran­quili­zante para o espanto que nos move aqui – a metáfo­ra do edifício conceptual, central no prefácio da Crítica da Razão Pura, onde é justamente um edifício de representações. Ora, já aí se mostrara que tal edifício não atinge as coisas em si, a ‘essência das coisas’: não é esta tese, re­petida à saciedade, que é nova aqui, mas a argu­mentação que a apoia e a nova luz que esta traz sobre a relação entre a verdade e (o esquecimento d)a génese da linguagem.

A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da linguagem
5. A dupla do apolíneo e do dionisíaco do Nascimento da Tragédia dá aqui lugar à do homem racional e do homem intuiti­vo, à da teoria e da arte, já não em dialéctica mas em oposição exclusiva, segundo um contraste que o cap. 2 desdobra magnifi­camente. Do ataque aos fundamentos do que aquele tem de mais caro, a pulsão para a verdade do conhecimento das coisas, resul­tará o elogio da liberdade e da ligeireza deste. Tentarei sugerir o que a argumen­tação tem de surpreendente. A relatividade radical do conheci­mento humano ressalta inicialmente na maneira inédi­ta como a cosmologia e a biologia darwinista suas contemporâneas são evo­cadas. A terra onde o conhecimento apareceu não é senão um canto de numerosos e ‘eternos’ sistemas solares: a invenção do conhecimento por animais inteligentes não é mais do que um mi­nuto nessa história cósmica, pese embora ao orgulho do filósofo que se julga centro do universo. Esses animais inteligentes são mais fracos do que muitos outros, e o seu intelecto não é senão uma arma astuciosa de animais fracos e efémeros, uma ilusão, uma ma­neira de dissimularem aos outros essa fraqueza e de a si mesmo se ilu­direm. É aonde se dá, quase imperceptivelmente, a inflexão que inundará esplendida­mente o cap. 2, uma viragem nesta negativi­dade inicial sobre o intelecto humano: é que ilusão e dissimulação só são negativas para os defensores dogmáticos da verdade cien­tífica e filosófica assente nas essências das coisas, pois que elas são a própria liberdade do artis­ta intuitivo e não racional, fraco e sem armas. O eco dum nosso poeta dará a entender: “o poeta é um fingidor”, é a ficção e não a verdade que ele busca, trabalhando com as metáforas mais inauditas. Há pois que indagar da origem destas: é simples mas inédito em filosofia, as metáforas são a pró­pria origem da linguagem.
6. Porquê inédito? Dir-se-á mais adiante, as metáforas são o lugar do risco e de toda a insegurança, do não aprender com a ex­periência e voltar a cair nas mesmas armadilhas. E foi contra isto que os humanos, para evitar a anarquia hobbesiana da “guerra de todos contra todos”, fixaram “uma designação das coisas unifor­memente válida e obrigatória”, ou seja as primeiras leis da ver­dade. E é da linguagem como designação uniforme e obrigatória que o texto vai contar a génese. Procurarei mostrar a pertinência mas também a fragilidade dos argumentos, esta sendo presumível ‘a priori’, já que nenhuma frase do texto de Nietzsche seria legível por qualquer pessoa, ele incluido, não fora tal unifor­me e obriga­tória designa­ção.
7. Tratar-se-á essencialmente de dizer que não há lógica na formação das línguas, que estas são arbitrárias, como aliás se sabe desde o Crátilo de Platão e do Da interpretação de Aristóteles, e era a razão pela qual a filosofia europeia subordinara a linguagem ao pensamento; mas em seguida acrescenta-se o que subverte toda esta tradição: “não é em todo o caso logicamente que procede o nascimento da linguagem e todo o material no interior do qual e com o qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e constroi em seguida, se não provém do ‘havia um cucozinho...’, também não provém em todo o caso da essência das coisas”. Su­blinho a palavra ‘material’, como mais adiante se falará do “Stoff der Begriffe”, do estofo-matéria dos conceitos: é nesta concepção ‘material’ das palavras (e dos conceitos) – que permitirá os edifí­cios conceptuais erigidos sobre a água corrente – que creio residir em última análise a novidade filosófica deste texto, que continua­rá na restante obra de Nietzsche. Interessa por isso ver porque é que, não apenas este texto ficou inacabado como a sua problemá­tica não reaparecerá posteriormente: haverá genealogias, sim, mas de interpretação activa, como aqui ainda não.
8. Ora, interpretação e avaliação serão de textos e das suas questões e não de ‘palavras’ soltas, descontextualizadas, como a gé­nese que aqui se tenta. Primeiro uma “excitação nervosa”, da ‘folha’ duma árvore por exemplo, depois a sua transposição em uma “imagem”, por sua vez transformada no “som” ‘folha’. Dois saltos arbitrários, duas metáforas ou transportes entre esferas diferentes. Em seguida, esse som será aplicado a uma outra folha, e outra e outra e muitas folhas, e perde-se, esquece-se a expe­riência única e original, “todo o conceito nasce da identificação do não-idêntico”, com abandono das diferenças individuais: nasce assim a representa­ção, a ‘folha’ original de que as folhas existen­tes são cópias infieis. Da mesma maneira, o adjectivo ‘honesto’ aplicado a acções numerosas e individualizadas, todas diferentes, sem que haja a ‘honestidade’ que fosse causa de tais acções. Con­clusão: nenhuma pulsão nos leva à verdade, esta não consiste se­não na “obrigação de mentir segundo uma convenção firme, de mentir gregariamente num estilo constrangedor para todos”, o que só é possível por causa do longo esquecimento por numerosas gerações da origem das palavras, que não são mais do que antro­pomorfismos, relações humanas, que não têm nada a ver com a essência das coisas, ainda mesmo quando se trate de definições (da de mamífero, com reconhecimento tautológico depois de que o camelo é um mamífero). Voltaremos a esta questão da definição, mas duas coisas são óbvias a qualquer pessoa: 1) ainda bem que só há uma palavra ‘folha’ para dizer as milhões de folhas diferen­tes que há nas árvores terrestres, que se eu quero falar duma folha singular basta-me dizer algo como ‘repara nesta folha’, isto é, é por discursos, não por palavras soltas, que o singular se diz, as línguas têm uma série de morfemas (artigos, demonstrativos, adjectivos) que permitem essa singularização; 2) é por as palavras serem imotivadas que não permitem conhecer a essência das coi­sas designadas, e também por isso são polissémicas e se prestam à metaforização, e foi justamente por isso que foi necessário aos filósofos inventa­rem as definições das coisas para tentarem che­gar a conhecê-las; de resto, a biologia molecular permite hoje contradizer o que fica em questão no caso do mamífero e do ca­melo (lá iremos).

Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
9. Voltando ao contraste entre os gestos de Occam e o de Nietzsche aqui, vê-se que este retornou à ‘mesmidade’ entre dizer e pensar de Parménides, mas deixando ca­vada a sepa­ração entre o sujeito que diz-pensa e a realidade dita-pensada, ou seja só fez metade do caminho de retorno. Ora, eu creio que será necessário completar tal retorno para que este texto póstumo possa ter hoje o seu acabamento, para que o espanto so­bre a re­latividade do co­nhecimento científico e filosófico que a citação do meu título con­voca tenha o esclarecimento possível. Usaria aqui uma metáfora para dizer a operação de leitura a que o vou sub­meter, uma in­tervenção cirúgica de transplantação, um enxerto, uma metáfora operatória em suma, violenta, sem as neu­tralidades académicas das hermenêuticas: substituir a caduca ‘fisiologia’ dos nervos, das imagens e dos sons que Nietzsche tinha à sua disposi­ção no início do último quarto do século XIX pela concepção dos grafos neuro­nais devida ao neurólogo contemporâ­neo Jean-Pierre Changeux, a qual aliás elaborarei um tudo nada além dele[6] mas a partir dele. Os nossos cérebros são grafados, vias duradouras são inscritas nas sinapses dos neurónios[7] pela expe­riência antropológi­ca lentamente adquirida, aonde não podem dei­xar de predominar os usos mais correntes da nossa tribo em que nos tornamos es­pontaneamente hábeis. Eu proporia que haja dois eixos de com­portamentos singu­larmente importantes: aquele que vai da área occipital nº 17 da cartografia de Brodmann, aonde chegam os nervos ópti­cos, até (com pas­sagem pelo paleo-cortex e pelo cere­brelo) à base da área motora nº4, onde se comanda os músculos das mão e dos dedos, seria o eixo visão / mãos que joga em todos os ‘trabalhos’ em que tenhamos que manipular coisas com alguma atenção e habilidade (incluindo a escrita deste texto). O outro eixo vai das áreas 41 e 42 onde chegam os nervos acústicos até (também com passagem pelo paleo-cortex e pelo cerebrelo) ao mesmo terminal da área 4, onde também se comanda os músculos da voz, seria o eixo audi­ção / fonação da linguagem oral. Ora, este segundo eixo cruza-se sem dúvida com o primeiro nas áreas co­muns dos cérebros de primatas onde a linguagem se veio enxer­tar, nomeadamente a 44, dita de Broca e a 22, dita de Wernicke, sem que se saiba grande coisa do ‘como’ desse cruzamento (aí não há nem ‘imagens’ nem ‘sons’, apenas química e electricidade). Pressuponho que não se trate propriamente de nenhuma mistura do que vem dos olhos e dos ouvidos, já que me parece que a no­ção de eixos comporta­mentais implica a res­pectiva autonomia (são esferas diferentes, na terminologia de Nietzsche), mas dum qualquer ‘contacto’ parmenidiano que permita, por exem­plo, que se ensinem por um dos eixos ‘receitas’ do que pelo outro se fará: uma receita culinária, ou como se pro­grama uma máquina de la­var roupa ou a gravação de um filme com um ví­deo, se substitui um vidro numa janela, se diz como se vai da rua Alexandre Her­culano ao Terreiro do Paço, sei lá. São exemplos em que não é ne­cessário conhecer as essên­cias das coisas que se utilizam, mas em que há uma certa ‘mesmidade’ entre o que a receita diz-pensa e o que se faz naqui­lo a que os filósofos costumam chamar ‘realidade’. Ora, para tor­nar as coisas ainda mais curiosas, tal mesmidade existe em qual­quer língua em que a receita seja dita-pensada, desde que seja a dos grafos do eixo cerebral de fonação.
10. Primeira etapa do retorno a Parménides. O que ela im­plica é substituir os ‘exemplos’ tradicionais sobre o conhecimento, que deixem de ser tinteiros ou bocados de cêra, coisas que apenas se vêem, para se tornarem usos de ver, ouvir e mexer as coisas, usos tais que sem eles o ‘sujeito’ não é sujeito de nada, porque nada sabe ou pode ver, entender ou fazer. E que deixem de ser também exemplos de palavras soltas, nem sequer de frases ou proposições ou enunciados, mas de dis­cursos ou textos, dos quais as receitas são um exemplo primário. Com a consequência assim de que são tais usos (que vão até à poesia e aos mitos, não se trata aqui de nenhum utilitarismo) são instituintes do sujeito, grafam nele as coisas da habitação no mundo que lhe permitem ser-no-mundo, como dizia Ser e Tempo. Quando pego num garfo e numa faca à mesa, ou num sa­bonete na banheira, ou ligo a chave do motor de arranque do meu carro, e faço estes gestos quase mecanicamente, não sou um ‘sujeito’ separado desses ‘objectos’, só sou sujeito desses gestos porque os aprendi: foi essa aprendizagem que me tornou ‘sujeito que diz pensa usa os ob­jectos da realidade’. Poder-se-á objectar que este retorno a Par­ménides é curto, que estes usos de que falo cabem muito bem no que Nietzs­che chama “antromorfismos, uma soma de relações humanas [...] que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, canónicas e constrangedoras. [...] O homem es­quece seguramente que é assim no que lhe diz respeito; mente in­conscientemente da maneira de­signada e segundo costumes cen­tenários, e precisa­mente graças a essa inconsciência e a esse es­quecimento, vem ao sentimento da verdade”. Aceito a objecção, não sem sublinhar que esse esqueci­mento é, tal como a dissimula­ção enquanto ficção, uma descoberta filosófica deste texto: eu não posso falar, em meu nome digamos, tendo consciência do que digo e de que sou eu que o digo, senão por ter esquecido absolutamen­te as primeiras expe­riências de fala e de designação, fossem de ‘folhas’, fossem outras quaisquer, e assim identificar o não-idênti­co nos usos de cada dia. Após o re­curso a Changeux, não se trata já duma ‘objecção’ mas dum argu­mento positivo que descobre aquilo em que ninguém atentara antes de Nietzsche (imagino eu).
11. Vamos então ao exemplo do camelo e do mamífero. “Se alguém esconde uma coisa atrás dum arbusto, e procura nesse lu­gar preciso e a encontra, não há nada a louvar nessa investigação e nessa descoberta: todavia é o que se passa com a investigação e a descoberta da ‘verdade’ no domínio da razão. Quando eu dou a definição do mamífero e declaro, depois de ter examinado um camelo, ‘eis um mamífero’, é certo que uma verdade veio à luz do dia, mas ela é de valor limitado, quero dizer que ela é inteiramen­te antropomórfica e não contém um só ponto que seja ‘verdadeiro em si’, real e válido universalmente, abstraindo do homem”. Trata-se dum argumento típico da querela nominalista contra os ‘realistas’ medievais, aonde se davam definições e se observavam as coisas para ver se correspondiam ou não a essas definições. É possível que este argumento tenha valido entre 1350 (morte de Occam) e digamos 1950 a 70, época de ouro da biologia molecu­lar. A descoberta laboratorial do ADN e da sua mesmidade em to­das as células dum dado organismo e a quase mesmidade em to­dos os indivíduos da espécie dos camelos, e um pouco menos quase em todos os mamíferos, etc., esta descoberta deita por terra este argumento, permitindo falar de verdade científica. Quer dizer que o programa genético é a essência duma espécie? Não creio que se possa dizer assim, já que creio que a biologia moderna funciona fora da oposição essência / acidentes do aristotelismo (e não digo de Aristóteles, porque me palpita que uma operação de transplante da biologia contemporânea nos textos da Physica de Aristóteles poderia produzir algumas surpresas na nossa compre­ensão dos conceitos dela). Mas as técnicas de engenharia genética mostram bem como o discurso destas ciências chegou a uma ‘verdade’ dos seres vivos, a algo de “‘verdadeiro em si’, real e vá­lido universalmente, abstraindo do homem”. Segunda etapa do retorno a Parménides. Não terá o texto já respondido a ela com os argumentos kantianos sobre espaço, tempo e números do final do seu primeiro capítulo? Conceda-se, apenas para que se possa aceitar o desafio mais difícil de todos, o da verdade filosófica do tal edifício de conceitos erigido sobre a água corrente.

Paradoxo da verdade filosófica
12. Observe-se que nesta destruição do argumento nomina­lista pelo ADN há algo de paradoxal em termos de verdade filo­sófica, já que a biologia dá razão aos ‘realistas’ mais ou menos vencidos há seis séculos e tal, mas só lha pode dar por eles terem sido derrotados: isto é, foi necessária a verdade nomi­nalista e a posterior representação mental para que a ciência mo­derna e portanto também a biologia molecular fossem possíveis. O que significa que a questão duma ‘verdade filosófica’ não é a ser colo­cada apenas em termos de tal ou tal discurso, paradigma ou ar­gumento filosófico, serem verdadeiros, mas dos próprios ‘erros históricos’ da filosofia greco-europeia, como a contradição entre ‘realismo’ e ‘nominalismo’, fazerem parte dessa ‘verdade’.
13. Seja uma mão-cheia de conceitos filosóficos tirados do próprio texto de Nietzsche: teoria do conhecimento, sistema, natu­reza, excepção, intelecto, filósofo, pensamento, existência, ilusão, valor, meio de conservação, forma, sensação, excitação, sentido moral, consciência, pulsão de verdade, designação, leis da verda­de, palavras, correcto, convenção, substituições, inversões, socie­dade, conhecimento puro, expressão adequada, substância, coisa em si, essência. Não são nomes de coisas que se usem, fa­zem parte dos usos escolares de textos que, durante muitos dos séculos da longa história do Ocidente, ficaram às margens das so­ciedades e ainda hoje, se se der este texto de Nietzsche a ler a muitos licen­ciados de faculdades científicas e técnicas, a maior parte prova­velmente não o conseguirá ler até ao fim. Qualquer es­tudante de filosofia tem experiência de ver os seus amigos de outras áreas se admirarem com termos que se lhes tornaram mais ou menos familiares, e até por vezes de se rirem da inutilidade óbvia de andar a perder tempo com tais abstracções que quase ninguém compreende. Para não falar dos docentes de filosofia, especializa­dos uns em fenomenologia ou heideggerianismo, ou­tros em idea­lismo alemão e outros ainda em filosofia analítica, sem perce­be­rem grande coisa do que tanto interessa aos seus vi­zinhos.
14. O espanto de Nietzsche sobre o edifício dos conceitos erigido sobre água corrente diz respeito, não a cada um destes conceitos, mas ao tecido deles em argumentação, como ele próprio está escrevendo, que compara aos “fios de aranha, assaz fina para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa ao sopro de qualquer vento”. E no contexto desta admiração vá­rias vezes se lhes atribui a frieza das matemáticas, a rigidez, a co­notação da morte (conceito em osso, columbarium romano[8]): o extremo oposto das metáforas artísticas que o texto preza, que já Aristóteles elogiara por não se aprenderem com ninguém, serem devidas à boa natureza dos poetas. Não será justamente a longa transmissão destes conceitos ao longo dos tempos, de mestres para discípulos, além da morte se mantendo tão severas e rigoro­sas (“rigor mortis”, diz-se em medicina legal da primeira rigidez cadavérica), que justifica tais qualificações tradicionais (que irri­tam sobremaneira os matemáticos)? Ou seja: que ‘material’ é este, com que os homens da verdade, sábios e filósofos, edificam esta­velmente sem alicerces? Ou: como é que é possível lermos hoje um texto como este, passados 130 anos da sua escrita, inacabado, lê-lo nas suas fulgurâncias e fragilidades?

Onde é que há conceitos filosóficos?
15. A resposta passa por outra questão: aonde, fora dos es­pecialistas de filosofia, estão estes conceitos? Em que outros usos, que nem os do dia a dia acima evocados nem os dos poucos espe­cialistas que somos nós? A resposta é um tanto sociológica: ide ver os manuais das ciências e das técnicas, ide ver os códigos dos juristas, ide ler os textos das administrações dos grandes bancos e empresas, universidades, conselhos de ministros, as crónicas dos jornais e revistas. Encontrar-se-á nesses textos, além da lista de oposições de que partimos (1.2), grande quan­tidade de conceitos que só lá estão por terem sido coisa da discus­são filosófica, grega, medieval, europeia: se se os tirarem, prevejo que os textos de tão esburacados se tornem ilegíveis. Em termos de Kuhn: os paradig­mas de todas as grandes instituições do Ocidente, desde as ciên­cias até às religiosas e porventura às desportivas, são exemplos desses edi­fícios conceptuais erigidos sobre água corrente. Não são ‘argamassa’: é porque os usos profissionais dos que em tais insti­tuições trabalham, como nós também fazemos aqui nesta escola, foram previamente instituidos por esses concei­tos nos liceus e universidades onde, como se diz, ‘se formaram’. Terceira etapa do retorno a Parménides: tais edifícios conceptuais só funcionam porque dizem o ‘ser’ das instituições da civilização moderna, estas só são edifícios por via desses textos que pensam dizem os seus usos especializados, em que juristas, técnicos, cien­tistas, adminis­tradores e ‘tutti quanti’ fazem filosofia como Mr. Jourdain fazia prosa.
16. E que ‘verdade’ terá um tal edifício, que, se justamente supõe uma longa história de definições e argumentos, funciona hoje para quem ignora umas e outros (todos nós para a maioria dos casos) ? Uma ‘verdade pragmática’, digamos, já que necessária à reprodução dessas instituições sociais. Não ‘absoluta’, é claro, já que estranha a priori a Chineses e outras gentes de civilizações não ocidentais. Relativa, pois, isto é, relativa à nossa história académica, à verdade inaugurada por Parménides, como se tentou dizer.
17. A tal indagação sociológica aos textos dessa instituição, a esburacá-los de todos os termos que tenham sido objecto de de­finição e discussão filosófica no passado é coisa que pode ser feita, haverá porventura metodologias que eu não conheço que o per­mitam, e os computadores facilitariam. Ao Nietzsche deste Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, que espanto não pro­vocaria uma tal verificação da verda­de da sua espantosa e es­pantada afirmação: “há que admirar o homem por ser um pu­jante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre a água cor­rente um edi­fício conceptual indefinida­mente complica­do”. Trata­va-se dum elo­gio da filosofia. O elogio de quem tenta e falha o primeiro passo para encetar a sua desconstrução.




[1] Comunicação ao Colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 10 e 11 de Maio de 2001 Nietzsche para o século XXI, retomando vinte anos depois a leitura que fizera deste texto de Nietzsche em Leituras de Aristóteles e de Nietzsche. A Poética. Sobre a Verdade e a Mentira, Gulbenkian, 1994.
[2] O livro do Filósofo, Rés, Porto.
[3] As palavras e as coisas, ed. 70.
[4] “As categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de pensamento: de língua enquanto elas são determinadas como resposta à questão de saber como o ser se diz (legetai); mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto é tal como ele é: questão de pensamento, o pensamento, a palavra ‘pensamento’ que Ben­veniste utiliza como se a sua significação e a sua história fossem óbvias, não tendo em todo o caso nunca querido dizer nada fora da sua relação ao ser, à verdade do ser tal como ele é e enquanto é (dito). O ‘pensamento’ – o que vive sob esse nome no Ocidente – nunca poude surgir ou anunciar-se senão a partir duma certa configuração de noein, le­gein, einai e dessa estranha mesmidade de noein e de einai de que fala o poema de Parmé­nides” (J. Derrida, “Le supplément de copule, La philosophie devant la linguistique”, Marges, de la Philosophie, Minuit, 1972, p. 218 (há trad. port. na Rés), debate célebre com o grande linguista E. Benveniste, que, em “Catégories de pensée et catégories de langue” (Problèmes de Linguistique générale), se propôs ler a lista das dez ca­tegorias de Aristóteles como um bom “documento” para demons­trar que essas céle­bres categorias de pensamento não são senão ca­tegorias da língua grega.
[5] Gerber, A linguagem como arte, e Volkmann, Exposição sistemática da retórica dos Gregos e dos Romanos (citados por Lacoue-Labarthe, “Le dé­tour (Nietzsche et la Rhétorique)”, Poétique, nº 5, Rhétorique et Philoso­phie, 1971, pp. 53-76).
[6] Porque uma camada do seu texto padece, aliás confessadamente, da representação clássica.
[7] Ou grafados como séries de sinapses, a crer em E. Kandel (ver texto neste blogue).
[8] Nichos onde se depositavam as urnas funerárias.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

“O exorbitante. Questão de método”, de Jacques Derrida




Tradução, introdução e notas de
Fernando Belo

[ Introdução

De la Grammatologie[1] é, por assim dizer, o mani­festo fi­lo­sófico de Jacques Derrida[2]: discurso (logos) da escri­ta (grammé), esta não é portanto um capítulo entre outros, trata-se de repensar a filosofia pensando a escri­ta na história ocidental. O livro compõe-se de duas par­tes, a I das quais, “L’écriture avant la lettre”, desenha o programa duma ciência positiva da escrita, mostrando nomeadamente como Saus­sure des­cobriu que “a escri­ta é a origem da linguagem” (p. 64), repe­tindo todavia o gesto metafísico de redução da escrita para assentar a sua lin­guística como ciência apenas das línguas orais. A II parte, “Nature, Culture, Écriture”, propõe um exercício exem­plar do programa anun­ciado, uma leitura gra­mato­lógica do Ensaio sobre a origem das línguas de J. J. Rousseau. Escolhemos citar aqui o capítulo que explicita a metodologia desta lei­tura.
Não será inadequada uma breve introdução a um pensa­mento difícil, que põe em questão de forma muito fecunda alguns dos nos­sos hábi­tos mais arreigados de leitores de textos filosóficos e literá­rios: os que dizem respeito à leitura e à es­crita e ao que se chama habi­tual­mente comunicação. É duma co­municação a um co­lóquio fi­losófi­co sobre a comunicação[3] que re­sumirei um argu­mento que ajudará a to­mar o pulso ao que ainda poderá ser no­vidade para al­guns. Toda a gente pode dar-se conta de que o que caracteriza um texto escrito é a ausência tanto do autor do texto como do seu desti­na­tário, o lei­tor a que está destinado, já que ele pode ser lido por qualquer outra pessoa que saiba ler: lido, isto é repetível, iterá­vel, em outro contexto do que o da sua escrita. Pode ser lido após a sua morte, a séculos de dis­tância, o que defi­ne a escrita como ruptura com a pre­sença quer do autor quer do contexto em que escreveu: isto é, ausência das suas intenções e querer-di­zer, da sua responsabilidade em res­pon­der por ele, pelo seu even­tual engano, ou desatenção. A escrita rompe com o hori­zonte da comunica­ção pensado como co­municação de consciên­cias, com o horizonte her­menêutico do senti­do, ela tem a ver es­trutu­ralmente com a morte, por isso Pla­tão a condenou em texto céle­bre do Fedro. Fê-lo segundo o privilégio metafísico da presen­ça, do pen­samento e do discurso oral sobre a escri­ta, que Derrida cha­mou logo­centrismo (e à proximidade da voz à alma, fono­cen­trismo). Depois de assim sistema­tizar o escrito como marca que permane­ce para além do presente da sua ins­crição, que é re­petí­vel em ruptura com o contexto desta e de mostrar que essa força de rup­tura só é possível por causa do espaçamento que constitui o sig­no escrito (o qual espaçamento permite o fenómeno estrutu­ral da ci­tação: retirar tal sintagma do seu contexto e enxertá-lo num ou­tro), o argumento termi­na-se mostrando como estas três caracte­rís­ticas da escrita também o são da linguagem oral; seja o se­guinte exemplo: “se eu digo olhando pela janela ‘o céu está azul’, este enunciado será inteligível (digamos provisoria­mente comunicá­vel) mesmo que o meu interlo­cutor não veja o céu; mesmo se eu próprio o não vejo, o vejo mal, se me en­gano ou se quero enganar o meu interlocutor”. Um enunciado oral também pode pois ser ci­tado noutro contexto, anos após a morte daquele que o disse, uma frase filo­­fica re­lem­brada entre discí­pulos que se reencon­tram para a escre­ver. Por exemplos não corri­queiros: Platão parece ter pretendido fazê-lo a Sócrates, como também terá su­cedi­do a um tal Jesus.
É justamente como ‘inscrição cerebral’ ou rasto (trace) que a lin­guagem se transmite de geração em ge­ração, além da morte mais uma vez e das mudanças de contexto. E o enigma aí é como esse ‘rasto’ dos outros se torna voz-e-discurso do que era antes ‘infans’, não fa­lante, como o recebido passivamente assim se acti­va sem deixar de ser recebido, mas sem a consciência de tal re­cepção. E ao que lhe ouço dizer como fala sua, pen­sa­mento seu, só tenho acesso porque as palavras que diz são, to­das, citações: pa­lavras de todos e de ninguém, inscrições orais, à maneira dos pro­vérbios. E pelas quais se es­tabelece relação estru­tural ao Outro, assim Derrida alterando a herança do ‘rasto’ recebida de Lévinas. E a de Husserl, já que desloca a sua redução fe­nomenoló­gica das intui­ções (sensível, categorial, eidética) de entes para a diferença entre as diferenças sonoras (como o mesmo) e os próprios sons (não idênticos de voz para voz)[4], liber­tando o motivo da ‘diffé­rance’[5], diferente no escrever que não no dizer de ‘différence’, e assim alte­ra a herança de Heidegger colocan­do a tempora­lização, a par do espaçamento acima aludido, no coração de tudo o que se institui como ente, antes mesmo da di­ferença ontológica e do seu privilé­gio do Dasein humano.
E desenvolvendo por aqui se entenderia como Der­rida es­tende a ‘trace’ ou ‘différance’ a outros domínios mais gerais, como o da habita­ção humana[6] e o da evo­lução dos vertebrados, acom­panhando Leroi-Gourhan na descrição da “lenta transformação da motricidade ma­nual que liberta o sistema áudio-fónico para a fala, o olhar e a mão para a escrita”[7].
Os inumeráveis textos de Derrida são sempre leitu­ras de ou­tros textos, quer filosóficos (Husserl, Heidegger e Lévinas, claro, e Platão, Aristóteles, Rousseau, Condil­lac, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Bataille, Foucault, Aus­tin...), quer de ciências  humanas (Saussure, Freud, Lévi-Strauss, Benveniste, Lacan, J. Rousset, Paul de Man...), quer literários (E. Jabès, Artaud, Mallarmé, Valéry, Ponge, Celan, Joyce, Shakespeare...). Até um texto auto­biográfico, em torno da doença e morte de sua mãe, foi escrito em cruza­mento com a leitura das Confissões de Agostinho! Nesta maneira de assim se escre­ver lendo ou­tros fortes textos, não se trata apenas de ‘sentido’, mas também de conflitos de forças: qualquer texto é sempre heterogé­neo, a sua busca de homogeneidade (ou discur­so, n. 10) é jogo de vários textos e seus embates. É essa heterogenei­dade (ou texto, n. 10) que a leitura ‘desconstrutiva’ de Derrida pro­cura, mais do que exibir, fazer ressaltar em seus confli­tos, de ma­neira a que ga­nhem nova força de pensamento no contexto da nossa mo­dernidade, aju­dem a pensar os seus conflitos e crises.
Porquê Rousseau? Derrida explica-se assim: “Se a história da me­tafí­sica é a história duma determinação do ser como presen­ça[8], se a sua aventu­ra se confunde com a do logocentrismo, se ela se produz in­teiramente como redução do rasto, a obra de Rous­seau parece-nos ocupar, entre o Fedro de Platão e a Enciclopédia de He­gel, uma si­tuação singular. [...] no interior desta época da me­tafísica, entre Descartes e Hegel, Rousseau é sem dúvida o único ou o primeiro a fazer um tema e um sis­tema da re­dução da escri­ta, tal como ela é profunda­mente implicada por toda a épo­ca. Ele repete o movi­mento inaugura do Fedro e do De interpre­ta­tione mas desta vez a partir dum novo modelo da pre­sença: a pre­sença a si do sujeito na consciência ou no sentimento. [...]”[9].

A leitura seguirá como fio o motivo de suplemen­to que, no texto de Rousseau, corresponde a um duplo movimento do desejo, em que “ele valoriza e desqualifi­ca à vez a escrita [...] o primeiro movimento deste dese­jo formula-se como uma teoria da lingua­gem; o outro governa a experiência do escritor” (p. 204). “[...] a pa­lavra suplemento parece aqui dar conta da estranha unidade destes dois gestos. Em ambos os ca­sos, com efeito, Rousseau consi­dera a escrita como um meio peri­goso, um so­corro ameaçador, a resposta crítica a um momento de desgraça. [...] o conceito de suplemento abriga nele duas significações cuja coabitação é tão es­tranha quão necessária. O suplemento acrescenta-se, é um ‘surplus’, uma plenitude que enriquece outra pleni­tude, o cúmulo da presença. [...] É assim que a arte, a techné, a imagem, a repre­sentação, a convenção, etc., vêem em suplemento da natureza com a riqueza de toda esta função de cumular. Esta espécie de suple­mentari­dade determina duma certa maneira todas as oposi­ções conceptuais nas quais Rousseau inscreve a noção de na­tureza enquanto ela deveria bas­tar-se a si mesma. Mas o suplemento supre. Só acrescenta para substituir (remplacer). Intervém ou in­sinua-se em-vez-de (à-la-place-de); se ele cumu­la, é como se cu­mula um vazio. Se representa e faz imagem, é pelo defeito an­te­rior duma presença. Suplente e vicário, o suplemento é um ad­junto, uma instância subalterna que está-em-vez-de. [...] À dife­rença do complemento, di­zem os dicionários, o suplemento é uma ‘adição exterior’ (Robert)”.(pp. 207-208). O que falta e que é suprido, será caracterizado como uma “cegueira”: “a cegueira ao suplemento é a lei” (p. 214). Mas também Rousseau refere o seu vício do onanismo como um suplemento à sua querida Teresa.]



Texto

[...]  Jean-Jacques não poude assim procurar um su­plemento a Teresa senão com uma condição: que o sistema da suplementaridade em geral estivesse já aberto na sua possibilidade, que o sistema das substituições tivesse co­meçado desde havia muito tempo e que duma certa manei­ra a própria Teresa fosse já ela um suplemento. [...] Eis a cadeia dos suplementos. O nome de Mamã designa já um:
“Ah, Teresa minha! estou muito feliz [...] Era preciso em vez da ambição extinta um sentimento vivo que preen­chesse o meu co­ra­ção. Era preciso, para dizer claramente, um sucessor para a Mamã; [...] Quando estava absolutamen­te só o meu coração estava vazio, mas bastaria um para o preencher. A sorte tinha-mo tirado, pelo menos tinha-mo alienado em parte, aquele para o qual a natureza me tinha feito. Desde então estava só, pois que nunca houve para mim intermediário entre tudo e nada. Encontrava em Tere­sa o su­plemento de que precisava” (Confissões, pp. 331-332 (nós subli­nhamos). Starobinski (La transparence et l’obstacle, p. 221) e os editores das Confissões (p. 332, n. 1) aproximam justa­mente o uso da palavra suplemento do que é feito na p. 109 (“suplemento peri­goso”)(nota do au­tor).
Através desta sequência de suplementos anuncia-se uma ne­cessidade: a dum encadeamento infinito, multipli­cando inelutavel­mente as mediações suplementares que produzem o próprio sentido daquilo mesmo que elas dife­rem: a miragem da própria coisa, da percepção imediata, da percepção originária. Tudo começa pelo in­termediário, eis o que é “inconcebível à razão”.

O exorbitante. Uma questão de método

“Nunca para mim [há] intermediário entre tudo e nada”. O in­termediário é o meio e é a mediação, o termo médio entre a ausên­cia total e a plenitude absoluta da presença. Sabe-se que a mediati­dade é o nome de tudo o que Rousseau quis teimosamente apagar. Esta vontade ex­primiu-se de maneira deliberada, aguda, temática. Não precisa de ser decifrada. Ora Jean-Jacques recorda-a aqui no próprio momento em que está a soletrar os suplementos que se en­cadearam para substituir uma mãe ou uma natu­reza. E o suple­men­to aqui tem o meio entre a ausência e a presença totais. O jogo da substituição cumula e marca uma falta (manque) determinada. Mas Rousseau encadeia como se o recurso ao suplemento - aqui a Teresa - fosse apaziguar  a sua impaciência diante do intermediário: “Desde então estava só, pois que nunca houve para mim interme­diário entre tudo e nada. Encontrava em Teresa o suplemento de que pre­cisava”. A virulência deste conceito é assim apaziguada, como se se tivesse podido razoabilizá-lo, do­mesticá-lo, cativá-lo.
Isto põe a questão do uso da palavra ‘suplemento’: da situação de Rousseau no interior da língua e da lógica que asseguram a esta palavra ou a este conceito recursos sufi­cientemente surpreendentes para que o sujeito presumido da frase diga sempre, ao servir-se de ‘suplemento’, mais, menos ou outra coisa do que quereria dizer. Devemos co­meçar por fazer uma conta rigorosa desta presa (prise) ou desta surpresa: o escritor escreve em uma língua e em uma lógi­ca de que, por definição, o seu discurso não pode dominar absolu­tamente o sistema, as leis e a vida própria. Ele não se serve delas senão deixando-se duma certa ma­neira e até um certo ponto gover­nar pelo sistema. E a lei­tura deve sempre visar uma certa relação, desapercebida do escritor, entre o que ele comanda e o que ele não co­manda dos esquemas da língua que usa. Esta relação não é uma certa repartição quantitativa de sombra e de luz, de fraqueza ou de força, mas uma estrutura significante que a leitura crítica deve pro­duzir.
Que quer dizer aqui produzir? Ao tentar explicá-lo, querería­mos começar uma justificação dos nossos princí­pios de leitura. Justificação, ver-se-á, toda ela negativa, desenhando por exclusão um espaço de leitura que não preenchemos aqui: uma tarefa de leitura.
Produzir esta estrutura significante não pode eviden­temente consistir em reproduzir, pelo redobrar apagado e respeitoso do co­mentário, a relação consciente, voluntária, intencional[10], que o escri­tor institui nas suas trocas com a história a que pertence graças ao ele­mento da língua. Sem dúvida que este momento do comentário que redobra tem que ter o seu lugar na leitura crítica. Se se não re­co­nhecer e respeitar todas as suas exigências clássicas, o que não é fácil e exige todos os instrumentos da crítica tradicional, a produção críti­ca arriscar-se-ia a fazer-se em qualquer sentido e a se autorizar a dizer praticamente ‘n’importe quoi’. Mas este ‘garde-fou’ (balaustrada) indispensável nunca fez mais do que proteger, nunca abriu uma leitura.
E todavia, se a leitura não se deve contentar com re­dobrar o texto, ela não pode legitimamente transgredir o texto em direcção a outra coisa que não ele, em direcção a um referente (realidade me­tafísica, histórica, psico-bio­gráfica, etc.) ou em direcção a um sig­nifi­cado fora do texto cujo conteúdo poderia ter lugar, poderia ter tido lugar fora da língua, isto é, no sentido que damos aqui a esta pala­vra, fora da escritura em geral. É por isso que as considerações me­todológicas que arriscamos aqui num exemplo são es­treitamente dependentes das proposições gerais que ela­borámos mais acima, quanto à ausência do referente ou do significado transcendental. Não há fora-do-texto[11]. E isso não porque a vida de Jean-Jacques não nos interessa para começar, nem a existência da Mamã ou de Teresa elas mesmas, nem porque não temos acesso à sua existência dita ‘real’ senão no texto e que não temos outro meio de fazer de outra maneira, nem nenhum direito de negligen­ciar esta limitação. Todas as razões deste tipo já seriam suficientes, é certo, mas há ou­tras mais radicais. O que tentámos demonstrar seguindo o fio condutor do ‘suplemento perigoso’, é que no que se chama a vida real destas existências ‘em carne e osso’, além daquilo que se pode circunscre­ver como a obra de Rousseau, e atrás dela, nunca houve senão escri­tura; não houve nunca senão su­plementos, significações substituti­vas que não puderam surgir senão numa cadeia de reen­vios dife­renciais, o ‘real’ não sobrevindo, não se acrescentando a não ser ganhando sentido a partir dum rasto (trace) e dum apelo de su­ple­mento, etc. E assim até ao infinito pois que nós lemos, no texto, que o presente absoluto, a natureza, o que nomeiam as palavras ‘mãe real’, etc., já se tinham sempre subtraído, nunca existiram; que o que abre o sentido e a linguagem, é esta escritura como desapare­cimento da presença natural.
Ainda que ela não seja um comentário, a nossa leitura deve ser interna e permanecer no texto. É por isso que, apesar de algu­mas aparências, o assinalar da palavra su­plemento não tem aqui nada de psicanalítico, se se enten­de por tal uma interpretação que nos transporte para fora da escritura para um significado psico-bio­gráfico ou mesmo para uma estrutura psicológica geral que se pu­desse separar de direito do significante. Este último méto­do poude aqui ou ali opor-se ao comentário redobrante  e tradicional: poder-se-ia mostrar que ela se compõe em verdade facilmente com ele. A segurança com que o co­mentário considera a identidade a si do texto, a confiança com que ele lhe recorta o contorno, faz parceria com a se­gurança tranquila que salta por cima do texto para o seu conteúdo presumido, do lado do puro significado. E de facto, no caso de Rousseau, estudos psicanalíticos do tipo do do Dr. Laforgue não transgridem o texto senão depois de o terem lido segundo os méto­dos mais correntes. A lei­tura do ‘sintoma’ literário é a mais banal, a mais escolar, a mais ingénua. E uma vez que se se tornou assim cego ao próprio tecido do ‘sintoma’, à sua própria textura, ele é ex­cedido alegremente para um significado psico-biográfico cujo laço com o si­gnificante literário se torna então perfei­tamente extrínseco e con­tin­gente. Reconhece-se a outra face do mesmo gesto quando, em obras gerais sobre Rous­seau, num conjunto de forma clássica que se dá por uma síntese restituindo fielmente, por comentário e recolha de temas, o conjunto da obra e do pensamento, se encontra um capítulo de recorte biográfico e psicanalítico sobre o “problema da sexualidade em Rousseau”, com reenvio, em apêndice, ao dossier médico do autor.
Se nos parece impossível em princípio separar, por interpreta­ção ou comentário, o ‘signifié[12] do significante, e de destruir assim a escrita pela escrita que é ainda a leitura, cremos no entanto que esta impossibilidade se ar­ticula historicamente. Ela não limita da mesma maneira, ao mesmo grau e segundo as mesmas regras, as tentativas de decifração. Há que ter em conta aqui a história do texto em geral. Quando falamos do escritor e do pendor da língua a que ele está submetido, não pensamos apenas no escritor na litera­tura. O filósofo, o cronista, o teórico em geral e no limite qualquer escritor é assim surpreendido. Mas, em cada caso, o escritor é inscri­to num sistema textual de­terminado. Mesmo se não há nunca ‘signifié’ puro, há rela­ções diferentes quanto ao que do significante se dá como estrato irredutível de ‘signifié’. Por exemplo, o texto fi­lo­sófico, embora ele seja de facto sempre escrito, comporta, precisa­mente como sua especificidade filosófica, o projecto de se apagar diante do conteúdo significado que ele trans­porta e em geral ensi­na[13]. A leitura deve ter em conta este propósito, mesmo se, em úl­tima análise, ela tenciona fazer aparecer o seu fracasso. Ora toda a história dos textos, e nela a história das formas literárias no Ocidente, deve ser estudada deste ponto de vista. À excepção duma ponta ou dum ponto de resistência que só muito tarde se reconhe­ceu como tal, a escrita literária prestou-se dela mesma, quase sempre e quase em todo o lado, segundo modos  e através de idades muito diversas, a esta leitura transcen­dente, a esta busca do signifi­cado que nós po­mos aqui em questão, não para a anular mas para a compreender num sistema a que ela é cega. A literatura filosófica não é se­não um exemplo nesta histórica mas é um dos mais signifi­cativos. E que nos interessa particularmente no caso de Rousseau. Que ao mesmo tempo e por razões profundas produziu uma leitura filosófica a que pertencem o Contrato Social e a Nova Heloísa, e esco­lheu existir pela escrita lite­rária: por uma escrita que não se esgo­tasse na mensagem - filosófica ou outra - que ela pudesse, como se diz, libertar. E o que Rousseau disse, como filósofo ou como psicólo­go, da escrita em geral, não se deixa separar do sistema da sua pró­pria escrita. Há que o ter em conta.
O que põe problemas temíveis. Problemas de corte [découpa­ge] em particular. Demos três exemplos.
1. Se o trajecto que seguimos na leitura do ‘suplemento’ não é simplesmente psicanalítico, é sem dú­vida porque a psicanálise habi­tual da literatura começa por pôr entre parêntesis o significante li­terário como tal. È sem dúvida também porque a própria teoria psi­canalítica é para nós um conjunto de textos pertencente à nossa histó­ria e à nossa cultura. Nesta medida, se ela marca a nossa leitura e a escrita da nossa interpretação, não o faz como um princípio ou uma verdade que se pudesse subtrair do sistema textual que habi­tamos para o aclarar em total neutralidade. Duma certa maneira, nós estamos na história da psicanálise como estamos no texto de Rousseau. Assim como Rousseau bebia numa língua que já lá estava - e que sucede ser, em certa medida, a nossa, assegurando-nos as­sim uma certa legibilidade mínima da literatura francesa - assim também nós circulamos hoje numa certa rede de significantes mar­ca­dos pela teoria psicanalítica, ainda quando não a dominamos, ainda que estejamos certos de nunca a poder dominar perfeitamen­te.
Mas é por uma outra razão que não se trata aqui duma psi­canálise, ainda que balbuciante, de Jean-Jacques Rousseau. Uma tal psicanálise deveria ter já repertoriado todas as estruturas de per­tença do texto de Rousseau, tudo o que não lhe é próprio por ser, em razão do pendor e do já-lá da língua ou da cultura, habitado mais do que pro­duzido pela escrita. Em torno do ponto de originalidade ir­re­dutível desta escrita organizam-se, envolvem-se e reco­brem-se uma imensa série de estruturas, de totalidades históricas de toda a or­dem. Supondo que a psicanálise pu­desse, de direito, conseguir re­cor­tá-las e interpretá-las, supondo que ela pudesse dar conta de toda a história da metafísica ocidental que entretém com a escrita de Rous­seau relações de habitação, seria ainda necessário que ela elu­cidasse a lei da sua própria pertença à metafísica e à cultura oci­den­tal. Não continuemos neste sentido. Já me­dimos a dificuldade da ta­refa e a parte de fracasso na nossa interpretação do suple­mento. Estamos certos de que algo de irredutivelmente rousseauista está aí capturado mas trouxemos junta, ao mesmo tempo, uma massa ainda bem informe de raízes, de terra e de sedimentos de toda a espécie.
2. Supondo mesmo que se possa isolar rigorosamente a obra de Rousseau e articulá-la na história em geral, de­pois na história do signo ‘suplemento’, seria ainda preciso ter em contas muitas outras possibilidades. Seguindo as aparições da palavra ‘suplemento’ e do ou dos conceitos correspondentes, percorre-se um certo trajecto no interior do texto de Rousseau. Este trajecto garantir-nos-á, é certo, a economia duma sinopse. Mas não são possíveis outros trajectos? E enquanto a totalidade dos trajectos não for es­gotada efectivamente, como justificar este?
3. No texto de Rousseau, depois de ter indicado, por anticipa­ção e em prelúdio, a função do signo ‘suplemento’, prestamo-nos a privilegiar, duma maneira que alguns não deixarão de julgar exorbi­tante, certos textos, como o En­saio sobre a origem das línguas e ou­tros fragmentos sobre a teoria da linguagem e da escrita. Com que direito? E por­quê estes textos curtos, publicados na maior parte de­pois da morte do autor, dificilmente classificáveis, duma data e du­ma inspiração incertas?
A todas estas questões e no interior da lógica do sis­tema delas, não há resposta satisfatória. Numa certa medi­da e apesar das pre­cauções teóricas que formulamos, a nossa escolha é com efeito exorbitante.
Mas o que é o exorbitante?
Nós quereríamos atingir o ponto duma certa exterio­ridade em relação à totalidade da época logocêntrica. A partir deste ponto de exterioridade, uma certa desconstru­ção poderia ser encetada nessa totalidade, que é também um caminho traçado, dessa orbe (orbis[14]) que é também orbitária (orbita). Ora o primeiro gesto desta saída e desta desconstrução, ainda que esteja submetido a uma certa ne­cessidade histórica, não se pode dar seguranças metodoló­gicas ou lógicas intra-orbitárias. No interior da clausura, não se pode julgar o seu estilo senão em função de oposi­ções recebidas. Dir-se-á que esse estilo é empirista e duma certa maneira ter-se-á razão. A saída é radicalmente em­pirista. Procede à maneira dum pensamento erran­te sobre a possibilidade do itinerário e do método. Afecta-se de não-saber como de seu futuro e deliberadamente aventu­ra-se. Nós pró­prios [já] definimos a forma e a vulnerabili­dade deste empirismo. Mas aqui o conceito de empirismo destroi-se a si mesmo. Exceder a orbe me­ta­física é uma tentativa para sair da roda [ornière] (orbita), para pensar o todo das oposições conceptuais clássicas, em particu­lar aquela em que está apanhado o valor de empirismo: a oposição da filosofia e da não-filosofia, outro nome do empirismo, desta inca­pa­cidade em sustentar por si mesmo até ao fim a coerência do seu próprio discurso, de se pro­duzir como verdade no momento em que se abala o valor de verdade, de escapar às contradições internas do cepti­cismo, etc. O pensamento desta oposição histórica entre a filo­sofia e o empirismo não é simplesmente empírico e não se pode qualificá-lo assim sem abuso e ignorância [méconnaissance].
Especifiquemos este esquema. O que é que há de exorbitante na leitura de Rousseau? Sem dúvida que Rous­seau, já o sugerimos, não tem senão um privilégio relativo na história que nos interessa. Se o quiséssemos simples­mente situar nessa história, sem dúvida que a atenção que lhe concedemos seria desproporcionada. Mas não se trata disso. Trata-se de reconhecer uma articulação decisiva da época logocêntrica. Para este reconhecimento, Rousseau pareceu-nos ser um revelador muito bom. Isto supõe evi­dentemente que já te­nhamos iniciado a saída, determinado a repressão da escrita como operação fundamental da época, lido um certo número de textos mas não todos os textos, um certo número de textos de Rousseau mas não todos os textos de Rousseau. Esta confissão de empirismo só se pode sustentar pela qualidade [vertu] da questão. A abertura da questão, a saída fora da clausura duma evi­dência, o abalo [l’ébran­lement] dum sistema de oposições, todos estes movimentos têm ne­cessariamente a forma do empirismo e da errância. Não po­dem em todo o caso ser descritos, em relação às normas passadas, senão sob esta forma. Nenhum outro rasto está disponível, e como estas questões errantes não são começos inteiramente absolutos, deixam-se efectivamente atingir, em toda uma superfície delas, por esta descri­ção que é também uma crítica. Há que começar algures onde estamos [il faut commencer quelque part où nous sommes] e o pen­samento do rasto [trace], que não pode deixar de ter em conta o faro, já nos ensinou que era impossí­vel justificar absolutamente um ponto de par­tida. Algures onde estamos: já num texto onde cremos es­tar.
Estreitemos ainda mais a argumentação. O tema da suplemen­taridade não é sem dúvida, em certos aspectos, senão um tema entre outros. Ele situa-se numa cadeia [chaine], sustido por ela. Talvez se lhe pudesse substituir outra coisa. Mas sucede que ele descreve a própria cadeia, o ser-cadeia duma cadeia textual, a es­trutura da substitui­ção, a articulação do desejo e da linguagem, a lógica de to­das as oposições conceptuais carregadas [prises en charge] por Rousseau, e em particular o papel e o funcionamento, no seu sistema, do conceito de natureza. Ele diz-nos no texto o que é um texto, na escrita o que é a escrita, na es­crita de Rousseau o dese­jo de Jean-Jacques, etc. Se consi­derarmos, segundo o propósito axial deste ensaio, que não há nada fora do texto, a nossa última justifica­ção seria então a seguinte: o conceito de suplemento e a teoria da escrita designam, como se diz hoje tão frequentemente, em abismo[15], a própria textualidade no texto de Rousseau. E veremos que o abismo não é aqui um acidente, feliz ou infeliz. Toda uma teoria na necessi­dade estrutural do abismo se constituirá a pouco e pouco na nossa leitura; o processo indefinido da suplementaridade encetou sempre já a presença, inscreveu sempre já nela o espaço da repeti­ção e do desdobramento de si. A representação em abismo da presença não é um acidente de presença; o desejo da presença nasce pelo contrário do abismo da representação, da representação da re­presentação, etc. O próprio suple­mento é, em todos os sentidos desta palavra, exorbi­tante.
Rousseau inscreve portanto a textualidade no texto. Mas a sua operação não é simples. Ela joga astutamente com um gesto de apa­gamento; e as relações estratégicas como as relações de força entre os dois movimentos for­mam um desenho complexo. Este parece-nos representar-se no manejamento do conceito de suplemento. Rous­seau não o pode utilizar ao mesmo tempo em todas as suas vir­tuali­dades de sentido. A maneira como ele o determina e, ao fazê-lo, se deixa determinar por isso mesmo que ele [Rousseau] ex­clui dele [do conceito de suplemento], o sen­tido em que ele o inflec­te, aqui como adição, acolá como substituto, umas vezes como posi­tividade e exte­rioridade do mal, outras como auxiliar feliz, nada disto traduz nem uma passividade nem uma actividade, nem uma incons­ciência nem uma lucidez do autor. A leitura deve não só abandonar estas cate­gorias - que são também, recordemos de pas­sagem, categorias fun­dadoras da metafísica[16] - mas produzir a lei desta relação ao conceito de suplemento. Trata-se efectivamente de uma produção e não de redo­brar simplesmente o que Rousseau pensava dessa rela­ção. O conceito de suplemento é uma espécie de mancha cega no texto de Rousseau, o não-visto que abre e limita a vi­sibilidade. Mas a produção, se procura dar a ver o não-visto, não sai aqui do texto. Nunca aliás o julgou fazer se­não por ilusão. [Esta] está contida na transformação da lín­gua que ela designa, nas trocas regradas entre Rousseau e a história. Ora nós sabemos que estas trocas não passam senão pela língua e pelo texto, no sentido infra-estrutural que re­conhecemos agora a esta palavra. E o que nós cha­mamos a produção é necessariamente um texto, o sistema duma es­crita e duma leitura de que sabemos a priori, mas só agora, e dum saber que não é um saber, que elas se or­denam em torno da sua própria mancha cega[17].



[ O leitor entenderá agora mais facilmente o pe­queno ex­tracto que segue, ‘avant-propos’ sem título a “La pharmacie de Platon” (uma leitura da filosofia pla­tónica da escrita como phar­makon, remédio e veneno ao mesmo tempo), aonde Derrida po­lemica com semióticas e herme­nêuticas que se querem ‘neutras’. ]

Um texto não é um texto se não esconde ao primeiro olhar, ao recém chegado, a lei da sua composição e a regra do seu jogo. Um texto aliás permanece sempre imperceptí­vel. A lei e a regra não se abri­gam no inacessível dum se­gredo, só que não se entregam nunca, ao presente, a algo que se possa rigorosamente chamar uma percep­ção.
Com o risco sempre e por essência de se perder assim definiti­vamente. Quem saberá alguma vez de tal desapa­recimento?
A dissimulação da textura pode em qualquer caso le­var sécu­los a desfazer a sua teia. A teia envolvendo a teia. Séculos a desfazer a teia. Reconstituindo-a também como um organismo. Regenerando indefinidamente o seu próprio tecido atrás do rasto que corta, da decisão de cada leitura. Reservando sempre uma surpresa à anato­mia ou à fisiolo­gia duma crítica que julgasse dominar o seu jogo, vi­giar simultaneamente todos os fios, enganando-se também por que­rer olhar o texto sem lhe tocar, sem meter a mão no ‘objecto’, sem se arriscar a acrescentar-lhe qualquer novo fio, única ‘chance’ de en­trar no jogo deixando os dedos prenderem-se nele. Acrescentar não é aqui mais do que dar a ler. Há que pensar isto: não se trata de bordar, a não ser que se ache que saber bordar é ainda ser-se en­tendido em seguir o fio dado. Isto é, se quiserem seguir-nos, o fio escondido. Se há uma unidade da leitura e da escrita, como se pensa facilmente hoje, se a leitura é a escrita, esta uni­dade não designa nem a confusão indiferenciada nem a identidade repousada, de que há que desligar o é que co­pula a leitura à escrita.
Seria portanto necessário, dum só gesto, mas desdo­brado, ler e escrever. E alguém que por isso se sentisse autorizado a acrescentar ‘n’importe quoi’, não teria com­preendido nada ao jogo. Não acres­cen­taria nada, a costura não se aguentaria. Reciprocamente nem se­quer leria aquele que a ‘prudência metodológica’, as ‘normas da ob­jecti­vidade’ e os ‘garde-fous do saber’ retivessem de lhe meter algo de seu. Seria a mesma imbecilidade, a mesma esterilidade de ‘não sé­rio’ e do ‘sério’. O suplemento de leitura ou de escrita deve ser ri­go­rosamente prescrito[18], mas pela necessidade de um jogo, signo a que há que con­ceder todos os seus poderes.[19]



 16.12.1999





[1] 1967, Minuit.
[2] “Que Heidegger tem, diz-se, pelo único filó­sofo contemporâneo digno desse nome” (John E. Jackson, “Jacques Derrida: un auteur ardu, mais le seul philo­sophe contempo­rain qu’admire Heideg­ger”, secção de crítica literária do Journal de Genève, 2.12.1972, recensão de La dissémination, Seuil, e de Marges e Positions, am­bos Minuit).
[3] Dos raros textos de Derrida existentes em tradução portuguesa, “Assinatura acontecimento contexto” encerra Margens. Da Filo­sofia, Rés, Porto.
[4] De la Grammatologie, pp. 91-95. Este ‘mesmo’ é o ‘significante’ de Saussure.
[5] Que permite ter em conta, na palavra ‘diferença’, o sentido tem­poral (de adiar) do verbo diferir (latim differre).
[6] De la Grammatologie, p. 410.
[7] Idem, p. 126.
[8] Reconhece-se o heideggerianismo de Derrida.
[9] Idem, p. 147.
[10] A que Derrida chama ‘discurso’, diferente do ‘texto’: “[...] de maneira um pouco convencional, chamamos aqui discurso a re­presentação actual, viva, consciente dum texto na experiência da­queles que o escrevem ou o lêem [...] o texto transborda sem ces­sar esta representação por todo o sistema dos seus re­cursos e das suas leis próprias [...]” (Idem, p. 149); quando se fala ou se escre­ve, ninguém pode ter consciência das leis linguísticas e textuais que operam no discurso que diz ou escreve, somos inevi­tavelmen­te transbordados por efeitos textuais (legíveis por outros, porque segundo regras da língua) não conscientes. Esta distin­ção - entre o que “Rousseau declara e quer pen­sar” e o que ele ”descreve” (pp. 325-6, 338, 441; p. 340: “descreve em contrabando”), entre o que ele quer dizer/es­crever e o que ele diz/escreve/faz - é o fio da leitura derridiana. Que termina assim: “Mas se Rousseau pôde dizer que ‘se es­crevem as vozes e não os sons’, é porque as vozes se dis­tinguem dos sons por aquilo mesmo que permite a escri­ta, a saber a consoante e a articulação. Estas só se substituem a si mes­mas. A articulação, que substitui o acento, é a origem das línguas. A alteração [da oralidade] pela escrita é uma exterioridade origi­nária. Ela é a origem da lin­guagem. Rousseau descre­ve-o sem o declarar. Em contrabando. Uma fala sem princípio consonântico, isto é, segundo Rousseau, uma fala abrigada de qual­quer escrita, não seria uma fala: estaria no limite fictício do grito inarticulado e puramente natural (em nota: Rousseau sonha com uma língua inarticulada mas descreve a origem das línguas como passa­gem do grito à articulação).” (pp. 443-4).
[11] Esta tese, surpreendente à primeira vista, radicaliza até ao texto escrito o retorno de Heidegger à mesmidade do pensar-dizer-ser de Parménides (e a que Platão e Aristóteles ainda são fieis). O mesmo não é o idêntico, as palavras, sonoras ou gráficas, não são as coisas, mas não são palavras se não disserem as coisas, sendo a nossa maneira de saber delas, em que olhos e mãos, trabalho e es­crita, também com a fala (boca e ouvidos) se jogam; eis uma outra maneira de dizer a gramatologia.
[12] ‘Significado’, em português, traduz ‘signification’ (o sentido de cada pala­vra tal como os dicionários o dão com um sinónimo, isto é separável do sig­nifi­cante de entrada); o neologismo saus­suriano ‘signifié’ (enquanto substantivo, tal como ‘significan­te’) indica o efeito (polissémico segun­do o contexto) em cada ‘significante’ do jogo de diferenças linguísticas ao ní­vel da arti­culação da palavra à frase e ao discurso; ‘sig­ni­ficante’, por sua vez, diz o efeito desse mesmo jogo ao nível da articula­ção pa­lavra / fo­nemas. ‘Signifié’ não tem cor­respondente em por­tuguês (nem que eu saiba em inglês ou outras línguas la­tinas). A inseparabili­dade de que fala o autor, que é óbvia na poesia, resulta da dupla articulação da linguagem, segundo Martinet, ser ‘uma’ arti­cu­lação (dupla), e não ‘duas’ articulações separadas.
[13] A definição é justamente o privilegiar da ‘significação’ sobre o signifi­cante, do pensar sobre o dizer, de ambos sobre o escrever: foi assim que, com Platão e Aristóteles, a filosofia cortou com a poesia, onde letra e sentido são indissociáveis, com a literatura. Não se trata de ser ‘contra’ a definição, sem a qual não há filoso­fia, mas de avaliar as suas consequências históricas.
[14] Qualquer espécie de círculo, em latim.
[15] Sem fundo (Abgrund, em Heidegger), sem oposição superfi­cial/profundo, cada elemento textual reenviando para outros e estes para outros ainda, num jogo indefinido, sem solo, espiritual ou material, a que arrimar a interpreta­ção, sem fora do texto que lhe valha como justificação.
[16] Em relação com as de interioridade do sujeito / exterioridade do objecto, a ‘actividade’ dizendo a iniciativa daquele, a ‘passividade’ a deste.
[17] De la Grammatologie, pp. 225-234.
[18] Rigor, mas também “simpatia”. A um dado momento da leitura do Ensaio de Rousseau, Derrida escreve: “Neste ponto, o conceito de natureza torna-se ainda mais enigmático e se se quer que Rousseau não se contradiga, é preciso um grande gasto de análise e de simpatia” (De la Grammatologie, p. 331).
[19]  La dissémination, Seuil, pp. 71-72.