sábado, 12 de julho de 2014

Pensamento e Linguagem




Porque é que a Filosofia da Linguagem é coisa recente?
O ser no mundo, viragem na história do pensamento europeu
A questão da escrita pela primeira vez em filosofia
É a aprendizagem que faz de nós seres no mundo


1. Qual é a relação entre ambos? Porque é que só no século XX é que se autonomizou nas universidades a disciplina da Filosofia da Linguagem, que ensinei na Faculdade de Letras de Lisboa, em dependência de Heidegger e Derrida bem como da da Linguística estrutural? A questão foi-me posta há uns dias.

Porque é que a Filosofia da Linguagem é coisa recente?
2. Quem quer que seja bilingue pode fazer a experiência mental de pensar algo, trivial ou filosófico, e perceber que o faz sempre numa das línguas que conhece mas também que por vezes não consegue traduzir literalmente, exactamente, o que pensa numa  das línguas e o que pensa na outra. Esta experiência permite perceber que pensamento e linguagem não se excluem, aquele vem sempre com esta, mas também que não coincidem: o mesmo pensamento é traduzível, isto é, pode ser dito com palavras e regras sintácticas e morfológicas completamente diferentes, tanto que a gente que fala numas delas não entende o pensamento de quem fala nas outras. Mas só aproximadamente, o que implica que alguma resistência opõem as línguas a desaparecer na tradução, a marcar assim que sem língua não se pensa, no sentido corrente da palavra pensamento. [1]
3. Se esta experiência parece tão concludente, porque será que só na última centena de anos, digamos a partir do Tratactus lógico-philosophicus de Wittgenstein (1922), a questão da relação entre pensamento e linguagem veio a ser colocada explicitamente como questão filosófica? Os grandes Gregos, Platão e Aristóteles mormente de quem a filosofia nos veio, herdeiros da definição que Sócrates inventou, não deram por ela? Claro que sim, diz-se no Sofista que “pensamento e discurso são a mesma coisa, só que o discurso interior que a alma tem consigo mesma sem voz recebeu o nome especial de pensamento (dianoia) [...] mas a corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso (logos)” (263e). Isto é, para ele o logos, discurso, é também pensamento, e não lhe vem à cabeça opô-los, como nós fazemos quando nos habituámos a traduzir logos por razão ou pensamento e a deixar cair o discurso, a linguagem. Porquê? Porque nem Platão nem os seus contemporâneos fizeram a experiência proposta acima, eles não eram bilingues e não traduziam línguas “bárbaras”, que sabiam existirem mas não lhes interessavam: não tinham necessidade de distinguir entre pensamento e linguagem por razões filosóficas. Mas há que acrescentar que o uso da definição instituiu um texto gnosiológico sem verbos, à base de cópulas (é / são e equivalentes) argumentando com essências intemporais e sem contexto, isto é um texto que tende à exactidão que as narrativas e as opiniões alegremente ignoram, dedicadas à riqueza polissémica das palavras. Ora é desta que a definição se defende o mais que pode, da literatura, das metáforas e outras figuras, dos ritmos e rimas da sonoridade. Há pois desde a escola socrática de filosofia um antagonismo entre a definição como sua operação fundamental e a linguagem em que ela se escreve, lê, discute. Entre pensamento e linguagem, apesar da citação do Sofista que aduzi.
4. A necessidade da tradução só aparece com o helenismo: a cultura grega, incluindo a filosofia, espalha escolas pelas cidades mediterrânicas após a conquista da Grécia pelos Macedónios, Filipe e Alexandre, este o que fundou Alexandria, a capital cultural do futuro império romano. Com efeito, Zenão de Cítio, o primeiro estóico, era duma língua materna semita e só na escola é que aprendeu grego. Quando Cícero traduz a célebre definição aristotélica do humano como zôon echon logon, animal (ou vivo) que tem discurso, fá-lo em termos de animal racional deixando cair a linguagem (ratio, sem oratio ou verbum) e foi essa tradução que a universidade medieval herdou e transmitiu à Europa. Enquanto o latim foi língua única da cultura universitária, como o grego fora a de Atenas, apenas o chamado nominalismo, o de Occam (sec. XIV) e não o de Abelardo (sec. XII), interveio nesta questão mas mais atento a outra versão do que à relação entre pensamento e linguagem, à relação de qualquer deles com aquilo que pensam e dizem, com a chamada ‘realidade’ (das ‘coisas’, res em latim). Também Platão guardava a unidade entre o logos e o que ele diz, a mesmidade do dizer e do ser: “o discurso, desde que seja um, é necessariamente sobre qualquer coisa, é impossível que ele seja sobre nada” (Sofista 262e), isto é Platão guardava a mesmidade de Parménides entre o dizer, o pensar e o ser, tal como Aristóteles[2]. O nominalismo separa as ‘essências’ – nomes mentais – da ‘substância’ das coisas existentes, abrindo caminho à ideia europeia.
5. Com efeito, quando no século XVII alguns pensadores, Descartes, Galileu ou Locke, começam a escrever em línguas vernáculas e iniciam o movimento de abandono do latim, encontram-se não tanto com o novo dilema da tradução (levantado por Heidegger e Derrida) mas com o escândalo da pluralidade e variedade de línguas, isto é, de elas serem “particulares” a cada povo, face à razão que se quererá promover como “universal”. A ideia, aliando-se a outras subjectividades do conhecimento, sensação, percepção, imaginação, etc, será a grande ferramenta dessa universalidade que avançará ao longo da Europa clássica sobre a ignorância, ou melhor, sobre a instrumentalidade das línguas, dos seus signos. Paradoxalmente, foi a força da linguagem que a ocultou até Wittgenstein a trazer à luz, ficando aliás ofuscado, já que quando recomeçou a filosofar após a escrita do Tractactus foi para o demolir! Havia algo que não batia certo na maneira como a linguagem era pensada.
6. Com efeito, a modernidade europeia está no extremo oposto de Parménides, de tal maneira que nos é difícil de entender o que é que esse antigo pensador pensava, assim como as leituras que se fazem habitualmente de Platão e de Aristóteles são à maneira europeia, como se fossem gente que ‘tinha ideias’ e que as escreveu (Heidegger: esses dois pensavam sem conceitos!). Qual é o retrato que se pode fazer desta nossa maneira de pensar? O duma separação completa entre quem pensa e as ‘coisas’ (a realidade) que pensa, as ideias como ‘interioridades’ e a tal ‘realidade’ no exterior, a linguagem sendo então um ‘meio’ de ex-pressão das ideias dessa interioridade ou um ‘meio’ de comunicação entre duas interioridades. Há aqui uma separação correlativa, desde Platão, da da alma e do corpo, do inteligível e do sensível, do puramente intelectual como uma ‘ideia’ (ou uma ‘alma’) e do material como os sons ou os riscos da linguagem (ou um ‘corpo’). Reduziu-se a linguagem a um ‘meio’ ou a um ‘instrumento’, que ainda por cima tem o terrível defeito de variar com os povos, de ser incapaz de universalidade, mas também de ser ‘popular’, a coisa de toda a gente, de receitas, histórias e risos, ao contrário da nobreza do pensamento a que ela está subordinada, dessa experiência rara de alguns filósofos. Em suma, um Lord e o seu criado. A lógica formal que se desenvolveu durante o século XX tirou a conclusão radical: as línguas ditas (pejorativamente) ‘naturais’ estão pejadas de ‘ambiguidades’, não servem para pensar, para se ser exacto há que recorrer aos caracteres de tipo matemático, já que para se ser ‘rigoroso’ nem a definição é suficiente aos olhos de lógicos. Eis a caricatura do desafio que se põe a uma Filosofia da Linguagem.

O ser no mundo, viragem na história do pensamento europeu
7. A maneira que fui encontrando para lhe responder passou pela compreensão progressiva da escrita de Heidegger e da de Derrida, sem deixar de ter em conta que eles não teriam sido possíveis sem a modificação do solo do pensamento ocorrido a partir de Marx (J.-L. Nancy), a que se seguiram Nietzsche e Freud, os três chamados “mestres da suspeita” nos anos 60 e 70 franceses, mas também Darwin e os linguistas comparativos até Saussure e Benveniste, sem esquecer também que ambos esses dois grandes escritores pensadores começaram por ser leitores assíduos da fenomenologia de Husserl, um pensador aparentemente longe destes que evoquei e mais próximo das questões clássicas de Descartes e de Kant, mais capaz por isso (graças à intencionalidade da consciência, não ‘substância’ mas “consciência de alguma coisa”, ultrapassa o dualismo sujeito / objecto) de permitir a grande viragem de Ser e Tempo (1927), do sujeito e sua consciência para o ser no mundo, o humano como exterioridade (ek-sistência) e temporalidade (cuidado), como finitude (ser para a morte). “Pensamento” e “ser” serão motivos heideggerianos constantes que abrirão lugar para a linguagem (Sprache inclui língua e fala) e para a consideração da poesia como montanha vizinha da do pensamento, a poesia que foi sempre excluída por definição da filosofia, por fazer as suas delícias de figuras polissémicas (que provocam o horror dos lógicos) e das sonoridades das palavras, ritmos, rimas e consonâncias[3]. O que tem como implicação que o ser no mundo humano, no seu ‘fora’ cuidando da sua habitação na Terra, encontra as palavras – que lhe interpelam o pensamento como voz do “ser” – como sendo estruturalmente históricas, o seu sentido modificando-se ao longo do tempo das civilizações. Heidegger meditará longamente, quer palavras gregas e textos filosóficos anteriores à definição socrática, quer antigas palavras alemãs[4], assim como dirá que Platão e Aristóteles “não pensavam em conceitos”, ou seja, com ‘ideias’ sem palavras. Este motivo do ser no mundo implica uma reviravolta da concepção dos humanos, não mais almas e corpos, sujeitos ou consciências que podiam “fingir não ter corpo nem lugar nem mundo” (Descartes)[5].

A questão da escrita pela primeira vez em filosofia
8. Ao lerem-se os seminários dos anos 60 (Questions IV), percebe-se que o Dasein de Heidegger, “ser-o-aí” ou ser no mundo, não terá cortado completamente com o sujeito husserliano, já que nunca é dito ele “vir à presença” com doação do Ereignis como qualquer outro ente a quem é doado “tempo e ser” (1962), Heidegger nunca terá chegado a pensar nessas categorias o nascimento (que Hannah Arendt tematizará). Apesar da sua pretensão de a grega e a alemã serem as únicas línguas filosóficas, o pensamento para ele não coincide com a linguagem, como se guardasse sempre algo de proximidade com o pensador em sua interioridade, o que Derrida diagnosticou como logocentrismo, relutância em pensar a linguagem como inscrição. É por esse diagnóstico que o escritor pensador francês entrou em filosofia, pondo pela primeira vez na história a questão do estatuto subordinado da escrita em relação à palavra oral, esta privilegiada devido à proximidade da voz ao pensamento e à alma ou ao sujeito que pensa, a escrita culpada de se afastar do que escreve, de perdurar além da sua morte, quando o escritor já não pode responder pelo seu escrito: tal é o argumento de Platão no Fedro, argumento dum mestre  escola que detesta auto-didactas[6]. Este acentuar derridiano da escrita radicaliza o ser no mundo heideggeriano, já que a língua, não só a ele pertence, ao ser no mundo, como é do mundo, ‘de fora’ do Dasein ele mesmo ‘exterior’, que ela vem estruturar o ‘dentro’ de quem fala e pensa, que pensa segunda a sintaxe e a fonologia dessa língua tribal, materna como se diz. Isto implica que a fala pensamento seja também resultado duma ‘inscrição’[7], seja igualmente uma escrita (o que não deixaria de espantar Saussure, diga-se de passagem) da tribo em que se nasce e cresce. Sem o mencionar, Derrida em De la grammatologie tematiza justamente a aprendizagem da fala usando a redução husserliana para permitir entender fenomenologicamente a diferença saussuriana entre os sons (da voz) e o significante da língua (tribal), aqueles empíricos, fisiológicos (audição e fonação), este feito de diferenças entre esses sons (segundo uma dupla articulação, acrescente-se), o que implica que ele não existe senão nesses sons da voz: são as diferenças em cada voz que se repetem como as mesmas em todas as falas, tal é a vertigem do pensamento saussuriano, a que o gramatólogo acrescenta a dimensão temporal que também existe no verbo ‘diferir’ (como adiamento), criando a palavra différance que em francês se lê tal e qual como ‘différence’, só a escrita permitindo a distinção[8]. Este ser uma rede de diferenças da língua permite que a conferência de Janeiro de 1968 “La différance”[9] argumente sobre a maneira como a différance – e pois a linguagem duplamente articulada, o argumento dá-se em contexto saussuriano – resiste à oposição entre o inteligível e o sensível: não sendo sonora, não é sensível, sendo diferença entre sons sensíveis, não é inteligível, não se despega do sensível (como a alma imortal se despega do corpo corrupto, do cadáver). Resiste a toda a filosofia desde Platão a Heidegger. No mesmo texto, a propósito de Freud desta vez, dir-se-á o enigma da différance: entre a economia das diferenças que se repetem como o mesmo e o excesso despendido nessa repetição, no caso da linguagem entre a língua da tribo, a mesma para todos os seus falantes, e as falas destes em suas vozes empíricas sempre inéditas e os igualmente inéditos sentidos polissémicos, mais ou menos surpreendentes ainda quando muito perto da trivialidade.
9. Se se quiser que o pensamento, sobretudo quando é forte e fecundo de novos pensamentos, releva deste excesso, há que precisar que ele só é entendível pela repetição que esse excesso implica, sem que se os possa dissociar. Tenho para mim que neste enigma (no que diz respeito à linguagem e aos outros usos sociais que aprendemos) se diz o que chamamos liberdade, o que cada um diz, trivial que seja, é sempre inédito, digno de respeito, de consideração. Dizer e pensar são o mesmo (sem coincidirem, como se disse logo no início com o exemplo da tradução). E o que diz respeito às ‘coisas’ (à ‘realidade’) que se dizem pensam, como quer Parménides? Sobre isto, Derrida faz uma proposta surpreendente: “não há fora de texto” (ver meu texto neste blogue e o de Derrida sobre o exorbitante). Idealismo inesperado? Não, superação da oposição entre as posições ditas idealistas e as posições ditas realistas: tudo o que vemos e mexemos do mundo em que somos, só o podemos ver e mexer por o lermos com olhos e mãos de linguagem (“o olho e o mundo na fala”, escreve ele em A voz e o fenómeno). Conhecer é sempre reconhecer, implica ter-se aprendido. Com olhos ocidentais, ficamos perdidos diante dos costumes de outras civilizações. O que fazemos, é segundo a ‘receita’ aprendida que fazemos, em cozinha como em qualquer outra rotina: com uma receita nova lida, nas frases que a dizem vem o fazer que as mãos e os utensílios farão. Como num retrato, está a rapariga, num mapa o território. O fotografado ou pintado, ou o mapa, não são idênticos à ‘coisa’ real mas são ela mesma, não são riscos e cores ao acaso, sem o mapa de Portugal não teríamos um conhecimento geográfico unificado do país. Assim o que se diz, dum acidente ocorrido, por exemplo, não é o acidente mas é a única maneira de acedermos a ele se não assistimos, o que se conta é o acidente, detalhes dele, é claro, outros são possíveis e não se o esgota. Em resumo à maneira de Parménides: conhecer, pensar, dizer é o mesmo do que aquilo que se conhece, se pensa, se diz.

É a aprendizagem que faz de nós seres no mundo
10. A linguagem é uma estrutura social, um uso que serve para aprender outros usos e assim fazer das crianças adultos da tribo, seres no mundo tribal. Ensinam-se gestos dizendo-os ou ‘faz-se assim’, gestos que, como na cozinha, repetem a receita dita. Os usos que os humanos foram lenta e muito dificilmente inventando tornaram-se mais fáceis de ensinar às gerações seguintes, tornaram-se possibilidades (Ser e tempo) que tanto são as de uma mulher ou de um homem como do mundo deles. Como qualquer uso, aprender a falar e a pensar, ou a fazer tal coisa pensando-a em sua receita, significa que a língua e a cultura da respectiva tribo, comum a todos os indígenas, vem de fora estruturar o dentro de cada um como ser no mundo. Quem ensina, falando ou fazendo fazer, repete o que a tribo diz e faz de maneira a que o aprendiz receba (passividade) essa repetição e a repita (actividade) à sua maneira: aprender é passividade tornar-se actividade espontânea e habilidosa. Voltamos ao enigma da différance que é o da aprendizagem, desta impressão ou inscrição (cerebral, grafos), escrita de fora que se torna actividade de dentro, que fará com maior ou menor habilidade, que dirá ‘eu, por mim, acho que...’. Foi esta noção de aprendizagem que, sendo o segredo do ser no mundo, me parece que Heidegger não chegou a explicitar, nomeadamente no que diz respeito ao pensamento. Mas posso ser eu quem se engana, só que o próprio Derrida que, quer na De la Grammatologie quando aplica a redução de Husserl à diferença saussuriana entre os significantes e os sons, quer quando lê o Esboço de psicologia clínica (1895) de Freud em L’écriture et la différence (1967), é da aprendizagem que se ocupa, o próprio Derrida não o assinala, como se fosse um caso particular, antropológico, da sua filosofia mais geral, ou como se não desse por ela. Nunca dei por nenhum grande pensador ter dado importância desconstrutiva do ‘sujeito’ ocidental à questão da aprendizagem, faz-me confusão.

P. S. - Barthes foi um dos meus grandes mestres de leitura, juntamente com Freud, Althusser e Derrida. Donde que me tenha escandalizado tremendamente quando, na sua lição inaugural ao Colégio de França, para sublinhar a literatura como 'batota', tenha dito e escrito que "a língua é fascista", obriga-nos a dizer. Já Nietzsche escrevera algures que o escritor ou o pensador vive preso nas redes da linguagem, tem que se haver com a sintaxe, sujeito e verbo por exemplo, o que se entende, mas tem também como pressuposto que o pensamento é prévio à língua, ultra individualismo europeu: contestar por anarquismo 'idiota' (idion, o próprio) que sejam os usos sociais e a língua que nos estruturam enquanto sujeitos. Ora, o que tenho mostrado vezes sem conta é que as regras da língua jogam em circunstâncias aleatórias, como uma conversa ou equivalente, onde se tem que reagir ao que nos dizem e não se sabe de antemão. O contrário do 'fascismo': as regras da língua dão-nos o dizer mas deixando dizer, digamos heideggerianamente.



[1] Que haja pensamento musical ou de cinema implica uma concepção metafórica de linguagem; sobre o que se pode ver http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm, “palavras, números, músicas e imagens”.
[2] Trato desta questão no meu texto Da natureza à técnica, da modernidade antiga à moderna (construção, desconstrução, reconstrução. (e.book, 7€). O grego ousia, primária (no ente, fora dos ‘acidentes’) e secundária (género e espécie), com o mesmo nome nas Categorias, será traduzido pelos dois termos latinos ‘substância’ e ‘essência’ respectivamente, e é contra a sua coincidência aristotélica, defendida pelos realistas, que os nominalistas se rebelam (a novidade vinha do cristianismo, a teologia então dominando a filosofia).
[3] Acheminements vers la parole, é o livro heideggeriano ‘sobre’ a linguagem.
[4] São as duas línguas que privilegia como ‘filosóficas’, o que só tem sentido justamente por dar uma importância inédita às palavras em filosofia.
[5] O livro Heidegger e as palavras da origem da filósofa francesa Marlene Zarader dá uma lindíssima panorâmica do pensamento heideggeriano da segunda época.
[6] “La pharmacie de Platon”, in La dissemination, 1972.
[7] Criação de sinapsis no cérebro nas aprendizagens, a crer o neurólogo americano Eric Kandel.
[8] Também o francês ‘différend’, o diferendo entre diferentes, se presta ao mesmo jogo, a ser ‘différand’.
[9] Marges. De la philosophie (tradução portuguesa).

O QUE É QUE HÁ FORA DO TEXTO? NADA. TUDO.





1. É uma dívida, daquelas que não se pagam, não se apagam. Um projecto de tese sobre a epistemologia da semântica saussu­riana à luz da gramatologia de Derrida. O P. Manuel Antunes, que pouco depois a doença levou, dava-me apoio do lado da Filosofia, o de­partamento onde ensinava Filosofia da Linguagem, mas preci­sava de alguém do lado da Linguística. O Professor Lindley Cintra prestou-se, e emprestou mesmo o departamento para as provas, é a dívida maior. Mas precisava de alguém do lado da teoria saus­suriana, e foi a Maria Alzira quem me leu o que escrevi, atenta, crítica, alegre. Há cerca de15 anos que se cumpriu, bem haja!
2. Uns anos antes conhecera o António Guerreiro, que aca­bava de se licenciar em Literatura e fôra aluno da Maria Alzira. Estreara-se no J. L. com um artigo sobre um romance do José Gil, em que defendia uma concepção do feminino que nos mereceu uma resposta, à Teresa Joaquim e a mim e depois, por mediação do J. Gil, um encontro no Jardim da Estrela. Tímido, ainda hoje o parece embora tenha mostrado sobejas vezes que faz jus ao ape­lido. No final da conversa, tomou-me de lado para uma questão que obviamente era para ele então motivo de grande inquietação: acreditava eu na imanência estruturalista do texto que a Maria Alzira defendia? Respondi-lhe que sim, na altura ainda não me dera conta de que tinha uma concep­ção estruturalista duma afir­mação célebre de Derrida “não há fora de texto”. A inquietação fi­cou-lhe nos olhos. Claro que, passados uns 20 anos sobre esta cena, o crítico de poesia, e também leitor de filosofia, que é hoje reconhecido na nossa praça com a assinatura de António Guerrei­ro não precisa já do meu esclarecimento tão atrasado. Maria Alzi­ra nunca terá precisado. Sou eu que nunca esqueci o epi­sódio, que porventura preciso de tentar saldar esta dívida, já que a outra não posso.

Uma guerra contra a ‘bêtise’
3. Trata-se mesmo duma guerra contra esta ‘bêtise’ me­do­nha que enche os jornais, mesmo e sobretudo os meios uni­versi­tários, quando lhes calha falar da linguagem: como ‘meio de co­municação’ ou, a melhor que já li, como ‘meio de acesso à infor­ma­ção’. Toda esta minha gente parece acreditar que existem coi­sas cha­madas in­formações e actividades chamadas comunicação antes de haver linguagem, como acreditam - tudo isto é beatice ignorante - que têm ideias e pensamentos que depois ‘exprimem’ em lingua­gem, que esta não é senão um instrumento (como um martelo, sem dúvida, tanto nos martelam assim), um ‘meio de’[1]. Ou então a linguagem gestual, como se funcionasse sozinha, oposta à verbal, isto é como se pudesse haver aquela sem esta. Há uma outra mais requintada, que não se pode colocar na rubrica destas ‘bêtises’, mas que não deixa de ser parente epistemológica delas: certas realidades para as quais não haveria palavras que as pu­dessem dizer. Se não se trata de dizer uma música ou um quadro - e mesmo as­sim, sei lá! eles sabem falar dessas coisas, sem que eu entenda -, na maioria dos casos trata-se de desculpas de mau pa­gador, significa apenas que ‘eu não sou capaz de dizer’. Nós te­mos as palavras to­das para dizer o que quer que seja, foi com as pala­vras que há que os poetas, os pensadores, os místicos[2] disse­ram coisas impos­síveis de dizer à sua época (e por vezes ainda impos­síveis de re­petir por outros, depois de eles o terem dito). Di­zer que ‘não há palavras que possam pensar, descrever, contar, evo­car...isto ou aquilo’ é ignorar que ‘só as palavras podem pen­sar, descrever, contar, evocar...o que quer que seja’, é subordi­nar a linguagem, ignorar o que ela nos dá: ‘tudo’ o que sabemos e po­demos. É isso a literatura, e é por isso que a prezamos: diz o que nós não sabemos dizer.
4. Mas não posso ir à questão sem antes retirar os insultos do parágrafo ante­rior: que haja ‘bêtise’ não quer dizer que as pes­soas sejam neces­sariamente estúpidas quando a cometem, já que a her­da­ram da grande filosofia europeia, a partir pelo menos de Des­car­tes, da in­venção das ‘ideias’ e outras representações men­tais de objectos em sujeitos, invenção essa tanto seguida por ra­ciona­listas como por empiristas e por idealistas, como se diz na história clás­sica da filosofia. Uma boa parte do pensamento mo­derno, a partir de Marx, Nietzsche e Freud, tendo-se explicitado em Saussure e nos estruturalismos dele se reclamando, por um lado, em Heideg­ger e em Derrida por outro, fez fincapé na contes­tação destas re­presen­tações, por uma espécie de retorno à lingua­gem que Hei­degger tematizou como retorno ao dito de Parméni­des: “Pois que o pensar e o ser é o mesmo [...] têm que ser o dizer, o pensar e o ente”. Quando Derrida escreveu que “não há fora de texto” não fez senão estender este dito às escritas, a tudo o que se escreve e escreveu[3], incluindo oralmente. Esta ‘bêtise’ é pois uma (má) herança filo­sófi­ca que se ig­nora.

A imanência das inscrições
5. Chamarei aqui inscrições ao que muitas vezes se generali­za indevida­mente como ‘linguagens’: quer a linguagem oral e a es­crita alfabética (ou outras formas de escrita, como os hieroglifos e os caracteres chineses e japoneses), quer a escrita dos números ou matemática, quer a música, quer as imagens (desenhadas, pinta­das, fotografadas, do cinema), têm todas em comum: a) serem ‘feitas’ numa matéria outra (sonora ou superfície visual, consoan­te), repetindo-se (os mesmos textos, imagens, peças de música) em matérias empíricas não-idênticas (vozes, instrumentos musi­cais, superfícies várias), tendo chegado, a partir da invenção do telefone, ao ponto de hoje em dia serem susceptíveis de serem transformadas em corrente eléctrica (e depois esta em ondas electromagnéticas) e de regressarem em seguida às matérias que lhes são tradicionais (proeza tecnológica que pode servir para descriminar essas inscrições de todas as outras produções mate­riais, as que não se podem mandar por via ‘tele-’), e b) o de se basta­rem a si mesmas enquanto inscrições, ou seja, não serem ‘meios’ de outra coisa, não serem instrumentos em função de qualquer outra coisa relativa à habitação dos humanos.
6. Ora, é a estas duas ca­racterísticas - que creio definitórias das inscrições - que corres­ponde a imanência do respectivo jogo de diferenças, aquilo que se inscreve em tal ou tal inscrição: em tal ou tal fala, texto, música, problema ou plano de imagem. Se elas são todas susceptíveis de serem transportadas para outro lado, se, em todo o rigor, é para que haja essa deslocação que qualquer inscrição se faz, que para isso foram elas inventadas (para começar de tal boca ou piano para outros ouvidos, de tal pena ou pincel para ou­tros olhos), isso significa que a ruptura com o contexto da sua fa­bricação faz parte da sua estrutura essencial, significa que esse contexto não é necessário para que quem ouve ou vê ‘entenda’ o que ouve ou vê. É óbvio quando se lê um soneto de Camões ou se escuta uma composição de Mozart, quando se analisa uma de­mons­tração de Newton ou se vê um filme de Go­dard: o fabrico deles pelos seus autores, escrita ou filmagem, não vem com eles, se viesse seria um estorvo monumental à leitura, escuta, análise ou contemplação. É na não ne­cessi­dade estrutural desse contex­to, na autosuficiência da inscri­ção, que consiste a imanência do seu jogo. A dificuldade é saber como é que ela é suscep­tível de ‘reenviar’ a ‘outra coi­sa’ do que ela, de referir ao que os linguistas chamam referente: conheci­mento duma receita, duma lei físi­ca ou de uma cena numa paisa­gem. E como estes exemplos são suficientes para sabermos que esse ‘reenvio’ é ine­rente às inscrições, a dificuldade consistirá em sa­ber se se trata de um reenvio para ‘fora’ do texto ou filme, para um referente ‘extra-linguístico’, de que ‘outra coisa’ se trata, se é ‘coisa’, se é ‘outra’ e em que sentido.
7. Num texto a que se pode ter acesso na Web[4], procu­ro mostrar como estas inscrições são compostas de unidades sus­cep­tíveis de três níveis: a) um nível de unidades elementares (não divisíveis) imoti­vadas em relação a qualquer outra coisa do que o jogo imanente (os fonemas orais e as letras dos alfabetos, as notas musicais), b) um nível de unidades de significação ou referência (as palavras, os algarismos e os outros caractreres matemáticos, as imagens de ‘coisas’) e c) um nível de composição das unidades ante­riores (frases e discursos ou textos, equações, frases musicais e peças de música). Tendo-se em conta a propriedade estrutural destas inscrições serem analisáveis enquanto composi­ções linea­res segmentáveis em unidades discretas que comutam entre si, verificaremos: que as imagens não têm essa propriedade (planos superficiais, isto é não lineares nem compostas de unidades co­mu­táveis), são unidades do nível da referência (só b), o dum re­trato de alguém, por exemplo (as imagens são, por isso, eminen­temente singulares, concretas: não é um defeito, é o que motiva os artistas e a publi­cidade); que a música, frases musicais de notas imotiva­das, não contém unidades referenciais (só a e c), é a mais imanente (ou abstracta) de todas estas inscrições, a única em que o problema duma refe­rência nem sequer se põe (não é um defei­to, é por isso que se gosta de música); que a matemática não con­tém unidades de nível imotivado (só b e c): embora elementares, as suas unidades são convencio­nadas por definição que lhes é prévia (também não é defeito, é por isso que ela é exacta, ignora a polissemia); que as unidades de significação da lin­guagem oral e da escrita alfabética, as pala­vras, são as únicas que são duplamen­te articuladas (a, b e c): com­postas de fo­nemas ou letras sem mo­tivação (por isso as línguas separam os que as falam entre in­díge­nas e estrangeiros, como as outras ins­crições não fazem delas mesmas), compondo-se em fra­ses que se sucedem em discursos ou textos mais ou menos longos. É nesta dupla articula­ção, escla­reci­da pelo linguista francês A. Martinet, que está uma boa parte dos segredos, da pujança da lin­guagem. Como tentarei sugerir.


ling. oral [escr. alfab.]
escrita matemática
música
imagens
composição
discurso
       ø
 melodia
       ø


unidades de sentido
 frases
equações
frases mu­sicais
       ø
unidades de refe­rência

palavras
números e outros caract.
[medidas]
      
      ø

imagens
unidades
imotivadas
fonemas
 [letras]
      ø
 ‘notas’
       ø


Comutação linguística e conotação semiótica
8. Tentei mostrar na tese a que aludi[5], jogando entre Saus­sure e Derrida, este permitindo esclarecer algumas das aporias daquele, como o aforismo saussuriano célebre “na língua não há senão diferenças, sem termos positivos” - o qual diz a imanência de que aqui é questão - resulta da operação essencial da linguísti­ca estrutural saussuriana, a comutação (Hjelmslev). Para se saber se tal troço de linguagem (desde o fonema ou letra até à frase) é uma unidade linguística, há que o segmentar duma frase (com sentido na língua) onde se manifeste e substitui-lo por outra (com sentido também, mas alterado): a comutação (segmentação + substituição) faz-se sem ter em conta quais são os sentidos em questão, apenas exige que haja sentido. Ela implica assim uma re­dução fenomenológica, uma ‘epoché’ husserliana, dos sentidos: e portanto dos eventuais referentes como das eventuais intenções do falante ou escrevente, o que é consentâneo com a propriedade estrutural das inscrições de romperem com o contexto da sua fa­bri­ca­ção (§ 6): quem ouve (ao telefone, por exemplo) ou lê (um autor antigo) não tem acesso nem a esses referentes nem a essas inten­ções, só ao discurso que ouve, ao texto que lê. Saussure tinha de facto retirado a coisa referida da definição clássica do signo (de origem nos Estoicos) assim como o sujeito falante da língua. Con­dição da autonomia da linguística como ciência, quer em relação à Acústica e à Fisiologia da fonação e da audição, quer em relação às psicologias e filosofias da percepção ou outras. Autonomia no­meadamente da Fonologia, da Sintaxe-Morfologia (Hjelmslev) e, a caminho, da Sintaxe-Semântica (M. Gross).
9. Mais complicada parece ser a questão das semióticas textuais, quer de corpus, quer de tal texto (à maneira do admirá­vel S/Z de R. Barthes)[6], já que aí a comutação não é mais possível. Trata-se de ler um texto na maneira como as suas frases sucessi­vas se articulam em códigos (alguns paramétricos, outros se­quen­ciais), estes sendo detectados pelo relevar paciente das cono­ta­ções, dos reenvios que tal troço de texto faz a outro, dessas cor­re­lações como diferenças imanentes ao texto. Mas para detectar es­sas conotações, há que fazer intervir a sua com­petência semân­tica de leitor (a distinguir firmemente das “associa­ções de ideias” do leitor analista), e portanto o seu conhecimento dos usos sociais da sociedade ‘contada’ no texto (no caso dum romance, por exem­plo, ou dum documento histórico), já que é para esses usos que os có­digos remetem. É aonde parece que a imanência textual deixa de ser possível.
10. Parece. Mas o que a formação dessa competência se­mântica exige (fiquemos no caso duma narrativa histórica) é o co­nhecimento de outros documentos dessa época, não do referente desaparecido para sempre: ainda que se trate de imagens de refe­rentes, de testemunhos orais de idosos, tratar-se-á sempre de ‘textos’ (descrevendo a imagem, registando as vozes) que se acrescen­tam ao corpus do texto que está a ser lido, que serão in­corporados eventualmente na análise como citações. Não se sai nunca para ‘fora’ dos textos. Acrescentarei aliás que a minha ex­periência de leitura me ensinou a, garantida a competência de leitura daquele tipo de textos, é sempre muito mais fecundo não recorrer a esses acrescentos de tipo testemunhal, mas tentar ler o texto até ao detalhe das suas inúmeras conotações, até se encon­trarem as contradições dos seus códigos (porventura singulares) e por via delas se encontrar o que levou à sua escrita. Permita-se-me um exemplo (não é imodéstia, mas elucidação do que Barthes fez). Em 1981, dirigi um curso de mestrado sobre semiótica e ideologia no Departamento de Sociologia da Universidade de La­val, no Québec, onde fui ajudando a ler vários textos, tendo o úl­timo sido o mais complexo, um relatório de Jesuitas do século XVII sobre um ritual indígena duma etnia local. Depois de ter apresentado a leitu­ra ‘imanente’ (sem saber nada, aliás, do con­texto etnológico preci­so) que preparara na véspera em casa, o historiador que tinha fornecido o texto comentou que me ouvira dizer em duas horas coisas que levara vários anos de investigação para descobrir. Que­rem melhor ilustração do aforismo “não há fora de texto”?

Uma redução muito fecunda
11. Mas isto não é redutor? Claro que é, a redução (em sen­tido fenomenológico) é inerente a qualquer ciência ou filosofia, a qualquer experimentação (comutativa ou conotativa) ou à neces­sidade de definição gnosiológica. Mas a maneira como a gramato­logia de Derrida recorreu à redução fenomenológica de Husserl para dar conta da autonomia da linguística saussuriana, destacan­do o ‘ser-ouvido do som’ do ‘som ouvido’, isto é, da voz concreta, empírica, de quem fala, mostrando como aquele é fenomenal, es­trutural, consistindo em diferenças entre sons empíricos que se repetem como as mesmas em todas as vozes dos falantes dessa língua (o ‘significante’ de Saussure define-se assim), essa maneira gramatológica mostra que é a própria linguagem quem opera no seu próprio jogar essas reduções, dos referentes como das inten­ções dos falantes. Com vantagens óbvias. A de poder haver nar­rativas: podem-se contar coisas a quem não as viu, pode-se con­versar de coisas passadas noutro lado ou noutro tempo (com refe­rente inatingível ‘directamente’ por quem conversa). A de poder fazer-se ficção, contar-se o que não se passou como tendo passa­do. Portanto, poder-se também mentir, guardar segredo, dissimu­lar as suas intenções, ser-se livre de o interlocutor não ter acesso ao que se pensa. Poder aprender-se a falar, aprender coi­sas que os outros sabem e nós não, só com sons ou com rabiscos em papel. A redução que a linguagem opera é duma fecundidade imensa. Como os discos em relação à música, reduzindo a orquesta que a tocou em tal momento e lugar, como a fotografia e o cinema. Só imanências, sem ‘fora’ das inscrições.
12. O que é então essa coisa a que os linguistas chamam re­ferente extra-linguístico? O nome não é bom, porque ‘essa coisa’ só existe ‘dentro’ do discurso ou texto, se é que este tem ‘dentro’. Vamos por partes. O que é um retrato da Maria Alzira? É a Maria Alzira. Senão, é um papel com riscos. Não é ela em carne e osso, claro, mas em referência a ela em tal lugar e momento da sua vida. O referente dum retrato é o retratado, não nele mesmo mas no re­trato. O que é um mapa? É o território no mapa. Da mesma manei­ra, o referente duma história é o que é contado nessa his­tória, autêntica, ficção ou mentira. O que se passou de facto é ex­trema­mente complexo, com milhões de detalhes (todas as expres­sões faciais e movimentos de membros de cada persona­gem nas diver­sas acções, as nuances dos cenários em móveis, cor­relações, luzes e perspectivas, sei lá eu) impossíveis de serem contados. Se hou­ver um referente, só pode ser na própria história tal como é con­tada, trazendo alguns elementos mais ou menos es­senciais do que se passou nas suas frases e sequências. A esma­gadora maio­ria das coisas que acontecem não é contada, não é referida. Ora, o que se conta tem como finalidade referir o que aconteceu, isto é, chamar a atenção para ele, torná-lo referente. Contar histórias é assim aumentar a nossa experiência vivida por referentes que não vi­vemos, aumentar em consequência o que sabemos. A maior parte das coisas que sabemos, mormente quem foi à escola, foi aprendi­da por linguagem, não por experiência. Sem a redução da lingua­gem, estaríamos ‘reduzidos’ à nossa ex­periência, no nosso habitat.
13. A dupla articulação da linguagem é uma dupla econo­mia: com algumas dezenas de sons de que as nossas gargantas são capazes fazem-se muitos milhares de palavras, com os 4 ou 5 milhares de palavras que usamos habitualmente, que a nossa memória cerebral consegue reter, dizemos frases e textos indefi­nidamente, multiplicando os seus sentidos. Mas para isso, as pala­vras mais correntes variam de sentido consoante os contextos em que ocorrem, de maneira linguisticamente muito regrada: é o que se chama polissemia. Sendo resultante da dupla articulação, a es­crita matemática não a conhece (por isso é exacta e exaustiva), nem creio que tenha sentido dizer - a não ser metaforicamente - das no­tas musicais e das imagens que são polissémicas, julgando eu também que há algo nelas que se aproxima da exaustividade: se subentendem o que lá não esteja, será por reenvio (intertextual, digamos) a outras músicas ou imagens. Na lingua­gem, pelo con­trário, a não exaustividade, o carácter elíptico do seu referente, é estrutural. Nunca se conta tudo, escolhe-se sempre o que parece mais pertinente, o resto é deixado ao bom entendedor, aquele a quem meia palavra basta. Ora, o bom entendedor tam­bém é obra da redução fecunda da linguagem - sem que saibamos como, feliz enigma -, já que se aprendemos sobretudo do que ou­vimos e le­mos, a nossa experiência e talento joga na maneira como isso que aprendemos se liga em nós ao que sabemos já. A fecundidade re­vela-se na maneira como, ao aprender-se a falar, as palavras que nos vêem dos outros vão gerando no que aprende, na sua voz que repete essas palavras e sendo eventual­mente corrigido, os senti­dos do Mundo que os outros dizem, pen­sam, repetem, de certa maneira, os referentes dos outros, e assim ensinam, com o falar e o pensar, a olhar e a manejar, a usar os usos sociais[7].

Retorno a Parménides: fora há ‘nada’ e há ‘tudo’
14. “Não há fora de texto” significa assim que são os textos ou discursos, articulados à aprendizagem dos usos, que dão voz aos falantes, trazendo-lhes o Mundo como referente a falar, a compreender. Assim no seu meio social se vão fazendo sujeitos. Um lindo livro de Marlene Zarader, Heidegger e as palavras da origem (ed. Inst. Piaget), conta como este analisa o termo grego para ‘dizer’ (legein), próximo aliás do latim legere, ‘ler’, que tem ligações etimológicas a vários verbos em ‘-lher’ (colher, acolher, recolher, escolher). O primeiro sentido de legein (e de legere) é justamente ‘colher’, como flores num jardim que se acolhem e re­colhem para fazer um ramo, e depois o de estender diante[8], em posição: também falar é acolher e recolher, nas palavras escolhi­das, as coisas a dizer, colocadas depois, reunidas, em proposições para outrem. Ora, Heidegger sublinha que também o que fala faz parte do que assim se acolhe e recolhe: isto é, o dizer acolhe, reco­lhe e propõe quer o (ente) que é dito quer o (pensar) que diz. As­sim leio o que dizia Par­ménides: “Pois que o pensar e o ser é o mesmo [...] têm que ser o dizer, o pensar e o ente”. Também o es­crever, acrescentou Derrida. E portanto, por minha conta e risco, o musicar, o pintar ou fotografar, o mate­matizar.
15. Portanto, não há ‘nada’ fora do texto, que ele recolhe tal fora. Mas o que é este jogo de diferenças fónicas ou gráficas, este mesmo que se repete em vozes ou grafias não-idênticas? O que é uma diferença? Nada de substancial, não é ente nem gente. As inscrições inscrevem-se em matérias que elas não são, em subs­tâncias que se podem estragar, por exemplo, de que elas são in­dissociá­veis (dos sons, das superfícies) mas de que a redução fe­nomeno­lógica as distingue, para as poder analisar fenoménica ou estruturalmente, as enviar algures. As diferenças que se inscre­vem em substâncias existentes, não têm ‘existência’, nem ‘essência’, não são da ordem dos ‘entes’, como o são essas subs­tâncias ou matérias: neste sentido estas são ‘exteriores’ ao texto, de diferenças feito, o tal que é ‘nada’. En­tão, qual é a condição de tudo o que es­crevi, de que “não haja fora de texto”? Tudo o que existe substancialmente neste mundo, tudo existe fora dos tex­tos[9], é desse tudo que existe ‘substancialmente’ que os textos fa­lam ‘não-substancialmente’, incluindo da nossa subjectividade cor­poral: que nos permite falar porque textos nos ensinaram, deles e doutros usos e costumes fomos feitos gente.

Admirável Maurice Gross
16. Este retorno a Parménides manifesta-se, embora com maneiras de ler diferentes, no facto de a actividade destes dois filósofos ser pre­dominantemente de esclarecimento de sentidos de palavras, de expressões, de pedaços de textos, etc.: aí encon­tram o pensa­mento que fez / faz o Ocidente, nos textos e nas lín­guas (Heideg­ger sendo aliás conhecido por ter privilegiado a grega e a alemã como eleitas para a filosofia). E deconstruir é ainda uma activida­de textual da própria civilização.
17. Porque é que houve então a perturbação do jovem Guer­reiro perante a imanência? Julgo que resultou de a ter recebido na evidência filosófica da separação entre o sujeito e o objecto[10] que todos recebemos no liceu, ‘transcen­den­tes’ (o Ego transcen­dental e o númeno kantiano, por exemplo) e deixa a linguagem num qualquer entre ambos: ‘meio’, ‘instrumento’, ‘expressão’ de repre­sentações, sei lá. Ora, foi contra essa separação (contra essa ‘bêtise’) que se levantaram as filosofias estruturais dos anos 60 e 70, na sua inédita aliança com as ciências sociais e humanas (bem como de outra maneira a fenomenologia de Husserl e Heidegger), pro­pondo a imanência da linguagem como o lugar aonde filosofias e ciências se elaboram, aonde encontram as suas problemáticas. Daí que a linguística de Saussure, recebida como a primeira grande disciplina social e humana a ter encontrado uma metodo­logia ri­gorosa que lhe ga­rantia um estatuto científico inédito, te­nha tido um papel pioneiro de que se inspiravam, melhor ou pior, as ten­tativas das outras disciplinas. Maria Alzira, como muitos outros entre nós, ainda vi­via dessa euforia. Mas foi chão que deu uvas. E o mais triste sin­toma da decadência posterior do pensa­mento es­trutural foi o re­cobrimento dessa magnífica linguística por uma técnica de tradu­ção de línguas a partir do in­glês[11] que, por exemplo, ignora a dupla articulação da linguagem e toma como modelo implícito, à manei­ra da lógica formalizada, a escrita matemática! Tentarei para terminar, e mostrar que não se trata aqui de nostalgias, algumas sugestões da fecundidade possível da linguística saussuriana.
18. Para isso será necessário evocar o mais espantoso de to­dos os textos linguísticos publicados no século XX depois do Curso de Linguística Geral de Saussure que abriu o paradigma: Métho­des en syntaxe: régime des constructions complétives, Hermann, 1975[12], de Maurice Gross, prematuramente falecido há pouco tempo. Espantoso por duas ra­zões principais que coroam a grande proposta saussuriana. 1) Pela primeira vez, desde os Alexandri­nos, se escreveu um texto de gramática ou linguística sobre os verbos duma língua humana em que eles são tratados, não a par­tir de al­guns exemplos, mas de forma tendencialmente exaustiva: ele analisa nada mais nada menos do que 3000 verbos[13], através das suas propriedades de aceitar argumentos (sujeito e comple­mentos preposicionais), clas­sificando-os em 19 tabelas, com al­guns verbos, por ex. ‘aller’, ‘donner’, ‘faire’, ‘avoir’, entrando em mais do que uma (ou seja definindo-se as respecti­vas grandes polis­semias). 2) Ora, algumas destas tabelas são de ver­bos se­mantica­mente aparentados (verbos de “passagem dum lu­gar a outro”, de “causativo de movimento”, de “juízo de valores”, etc.). Ora, se fôr possível prosseguir a afinação das análises em or­dem a conse­guir chegar a tabelas semânticamente homogé­neas[14], ter-se-á en­contrado uma maneira rigorosa de arti­cular a Sintaxe e a Se­mân­tica dos verbos numa só região, como Hjelmslev já fizera para a Morfologia e a Sintaxe[15]: foi a isso que Gross chamou Léxico-Gra­mática.

Comparação de antropologias através das línguas
19. Estas análises têm-se revelado extremamente interes­santes em pro­cessamento de textos - mormente para tradução automática entre línguas, que, ao contrário do que julgam os pu­ristas, é fortemente desejável para se conseguir que as línguas humanas resistam à sua creolização pelo inglês -.  Mas poderão vir a revelar outras possibilidades, se fôr verdade que a imanên­cia das línguas[16] lhes dá a pujança de lhes permitir: a) inscreve­rem-se em criancinhas e torná-las sujeitos de fala e saber, b) que podem por isso entender e formular em discursos inúmeros as­pectos da paisagem do Mundo da sua tribo (hoje globalizando-se, donde a importância da tradução). Para além das trivialidades habituais sobre os ‘russos’, os ‘franceses’, os ‘americanos’ (se ne­gati­vas, são sintomas de racismos, se positivas, de servilismos) poderia ter-se acesso a comparações entre formas diferentes que elas permitem de verem / serem o Mundo (a célebre tese de Sa­pir-Whorf). Do ponto de vista da separação clássica entre pensa­mento e mundo, esta tese é aberrante: do ponto de vista que aqui se defende, há que precisar justamente o seu não-determinismo, já que uma língua ao inscrever-se num humano, inscreve este como falante, isto é, inscreve os mecanismos de autonomia falante de que as regras sociais da língua fazem parte, apagando os ou­tros que lhes ensinam; ou seja, inscreve-o, com maior ou menor talen­to, como livre, capaz de segredo, de estratégia, de pensamen­to[17].
20. Ora, mesmo em línguas muito próximas pode haver dife­renças intrigantes. Seja, com a liberdade que é permitida aos ‘curiosos’, uma lista de verbos portugueses com a mesmo sufixo em ‘-ecer’, que me ocorreu há algumas semanas, que eu situaria em torno de ‘acontecer’: ‘aparecer’, ‘es­quecer’, ‘esclarecer’, ‘mere­cer’, ‘ador­me­cer’, ‘adoecer’, ‘estremecer’, ‘enrouquecer’, ‘enlouque­cer’, ‘fortalecer’, ‘enfraquecer’, ‘emagrecer’, ‘enrijecer’, amolecer’, ‘enfurecer’, ‘aborrecer’, ‘en­tris­tecer’, ‘estabelecer’, ‘abastecer’, ‘pre­valecer’, ‘encarecer’, ‘enri­que­cer’, ‘empobrecer’, ‘embranque­cer’, ‘aquecer’, ‘arrefecer’, ‘fenecer’, ‘falecer’, ‘perecer’, ‘apodre­cer’, ‘amanhecer’, ‘entardecer’, ‘anoitecer’, last but not the least, ‘obe­de­cer’; todos me parecem envol­ver uma significação que me ar­riscaria a caracterizar como ‘mudança de estado que acontece a algo ou alguém’; ‘obedecer’ seria o estado de quem está sujeito à mudança de estado que lhe mandarem, o que permite abordar esta significação através do sentido etimológico de ‘sujeito’: en­quanto que é tradicional a concepção que faz do ‘sujeito’ da frase um ‘activo’, um ‘causador’ (já Nietz­sche se queixava disso)[18], estes verbos supõem, quando o têm[19], um ‘sujeito’ nem activo (acontece-lhe algo) nem passivo (nesse acontecer, ele muda de estado), como sugere a etimologia do seu correlativo clássico, o ‘objecto’ como ‘objecção’. Ora bem, julgo saber suficientemente fran­cês para poder consta­tar que nessa língua os verbos que tra­du­zem estes nossos, que nem sempre os há, não têm entre eles ne­nhum parentesco deste géne­ro, que os agrupe. Haverá na lite­ratu­ra linguística portuguesa alguma análise deste sufixo e das dis­tri­buições destes verbos[20], permitindo esclarecer melhor este sen­tido gramatical em torno do motivo filosófico do ‘acontecimento’, tão caro a Heidegger, Derrida, Deleuze? Questão de linguística comparada: os equivalentes fran­ceses terão também esta mesma ‘propriedade’ sintáctico-semânti­ca que postulei hipo­teticamente?
21. Mas sem dúvida que as relações sintácticas re­veladas pelas tabelas de Gross são bem mais interessantes e dignas de se­rem comparadas entre vá­rias línguas (mormente os tais verbos locucionários que referi em nota ao § 18), a detectar-lhes even­tuais coincidências para certo tipos de verbos e variações para outros, o que seria certamente significativo na medida em que se conseguisse formalizar tais compara­ções: entre línguas la­tinas, entre germânicas, entre germânicas e latinas, indo-euro­peias em geral, etc., até chegar às línguas das grandes civilizações asiáticas. Da mesma maneira, seria interes­sante encontrar regu­laridades e irregularidades nas maneiras de se conjugarem os tempos ver­bais, os conjuntivos, os imperativos. No que diz respei­to às manei­ras de se construir o ‘eu’ e o ‘tu’ (quando eles existem), talvez se possa en­contrar o peso da ‘alma’ que a filosofia grega e o cristia­nismo introduziram nas línguas ocidentais e também os constras­tes, quer com os cristãos ortodo­xos, quer com os muçul­manos, isto é, regu­laridades e irregularidades entre línguas que disseram du­rante séculos religiões monoteistas absolutas. Então os grandes constras­tes entre estas línguas e as línguas que igno­raram a alma e o Deus que as conhece no seu íntimo, que não têm a noção de ‘absoluto’, poderia ajudar a compreender as dificulda­des de rela­ção e compreensão entre Europeus e Asiáticos.
22. Análises austeras de muito abstractas, provavelmente, só possíveis depois de infindáveis análises (entretanto necessárias para as preciosas traduções automáticas), talvez alguns dos nos­sos netos, Maria Alzira, possm vir a saber delas e a compará-las com as literaturas comparadas em que você é Mestra, e que eu ignoro.


[1] Como os ‘meios de comunicação social’. A que os americanos chamam ‘mass-media’ (eles martelam as massas como ninguém, e toda esta minha gente quer aprender com eles a martelar-nos) e os pindéricos que não sa­bem que ‘media’ é latim mas (não) sabem que quem sabe diz que (em latim o neutro plural do nominativo ‘-um’ é ‘-a’) se deve dizer ‘-a’ e não ‘-as’, e quem sabe parece não saber que do latim o português fez o plural da termi­nação ‘-a’, em regra, por ‘-as’ (como poeta fantasma, jornalista, vigarista), em inglês é que não! E depois, e é o cúmulo, mas toda a gente faz isto (e pode ser que se eu mando um texto para um jornal ou uma tipografia também me corrijam!) a subordinação duma língua latina à maneira angló­fona de dizer palavras latinas leva a que se escreva ‘media’, com aspas, a di­zer que é um termo inglês (os brasileiros vão ao ponto de escrever mídia, sem aspas!). O que é que será preciso para explicar a esta gente sabiamente colonizada que devem escrever os médias, sem aspas nenhumas, como qualquer língua latina que se preze. Que irritação!
[2] Quando Teresa d’Ávila ou Hadjwich falam assim, estão encontrando uma linguagem para as contar, essas experiências. “[Teresa d’Ávila] só escreve porque as palavras lhe faltam” (M. Allendesalazar, Thérèse d’Avila, l’image au féminin, Seuil, 2002, p. 73).
[3] “[...] Pode-se chamar ‘contexto’ toda a ‘história-real-do-mundo’, na qual este valor de objectividade, e mais geralmente ainda o de verdade, adquiriram sentido e se impuseram. [...] Uma das definições do que se chama desconstrução seria a tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais viva  e mais larga possível ao contexto e portanto um momento incessante de recontextualização. A frase, que para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido, da desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula teria sem dúvida chocado menos” Limited Inc., Galilée, 1990, p. 252.
[4] “Discursos, números, músicas, imagens. Cérebro, livro, computador”, in www.educ.fc.ul.pt./hyper
[5] Epistemologia do sentido. Entre filosofia e poesia, a questão semântica, F. C. Gulbenkian, 1991
[6] Que tentei prosseguir nas minhas Leituras de Aristóteles e de Nietzsche, A Poética. Sobre a Verdade e a Mentira, F. C. Gulbenkian, 1994. Ver a teoriza­ção dessa abordagem in “Semiótica e Ciências Sociais”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 10, Coimbra, retomado em apêndica a A Conversa, Lin­guagem do Quotidiano. Ensaio de Filosofia e Pragmática, Presença, 1991.
[7] Há duas páginas verdadeiramente notáveis de Derrida em La voix et le phénomène, P. U. F., 1967, pp. 88-89, técnicas demais para as citar aqui, em que ele analisa como, no interior desta redução do empírico (no ser-ouvi­do), se continua a operação de ouvir-se falar - a auto-afecção pura da voz - com as idealidade dos sentidos das palavras, tornando possível a universa­li­dade: é a possibilidade do que se chama subjectividade.
[8] Recolher-se no ‘leito’, estendido, é da mesma família semântica (como ‘lit’, em francês, sugere melhor).
[9] “Não há senão texto, não há senão fora-de-texto, ao todo um “prefácio incessante’ que dá cabo [déjoue] da representação filosófica do texto, a oposição tradicional do texto ao seu excesso” (Derrida, La dissémination, Seuil, 1972, p. 50).
[10] Lembro-me de, nesses tempos, ter perguntado a um colega que ia dar um curso sobre o “problema fundamental da filosofia em Hegel”, o que era essa problema e dele ter-me respondido com ar de evidência: “o problema sujei­to / objecto”.
[11] Língua excepcional pela sua quase ausência de morfologia, o que faz dela uma útil língua de contactos internacionais.
[12] Ver texto citado na nota ao § 8, Q133ss.
[13] Que corresponderão a 3/4 dos verbos franceses presentes em dicionários de bolso. A leitura de E. Ranchhod (org.), Tratamento das Línguas por Com­putador. Uma introdução à Linguística Computacional e suas aplicações, Caminho, 2001, incluindo um capítulo de M. Gross, a cuja escola Ranchhod pertence, mostra de forma prática como é possível tratar textos de forma automática, isto é simplesmente formal: na sua imanência (embora com al­guns limites, mormente em literatura poética com as suas transgressões gramaticais). Esses métodos dependem essencialmente do grau de exaustivi­dade dos dicionários electrónicos que utilizam. Na p. 131, transcreve-se a primeira tabela do livro de 1975.
[14] Como tentei su­gerir na tese citada, a partir dos trabalhos dum linguista russo, J. Apresjan.
[15] À ma­neira tosca dum amador, es­bocei, no texto sobre a Con­versa citado (nota a § 4), um quadro de semânti­ca distribucional-pragmática para os verbos locucionários e performativos (que ‘fazem’ algo de social, a par do que ‘dizem’).
[16] O serem imotivadas, nas diferenças entre elas, em relação a factores fi­siológicos, ambientais, sociais.
[17] Contra uma maroteira do meu mestre Barthes, a língua não é fascista, dá, bem pelo contrário, mecanismos de resistência. Mas é certo que os fascis­mos generalizam-se pelas suas linguagens colectivizantes e estupidifican­tes.
[18] Para além do Bem e do Mal, § 17.
[19] ‘Amanhecer’ e congéneres são mais impessoais do que o exemplo gra­matical clássico ‘chover’, já que com a regularidade quotidiana da rotação da terra.
[20] Já agora, aqui entre nós que gostamos das palavras, haverá linguista que me explique esta espantosa conjunção, de tipo ‘lógico’ segundo parece, ‘já agora’, feita de dois advérbios temporais? Eis o que julgo compreender: que ‘já que’ (‘já que falas nisso’) e ‘agora’ (‘agora, se estás de acordo com o primeiro ponto, podemos dizer que...’) são conjunções desse tipo em que se entende a temporalidade: no primeiro caso, ‘já’ parece referir a fala ante­rior, no segundo a conjunção suporia o sentido do advérbio como índice de locução. Se ‘já’ em ‘já agora’, se refere possivelmente à fala anterior (no caso desta nota, a referência à literatura linguística como esclarecedora), continua enigmático para mim como é que o índice de locução ‘agora’ se liga ao ‘já’ para criar uma espécie de ‘acontecimento lógico’ numa associa­ção de ideias de que afastará o carácter arbitrário.