sexta-feira, 18 de abril de 2014

Consciência e memória




(retorno à questão de “Memória em fenomenologia neurológica” neste mesmo blogue)

Neurónios e mente: Damásio renova a questão
O que a psicanálise complica ao neurologista
A bifurcação da linguagem
Retorno à questão da memória


Neurónios e mente: Damásio renova a questão
1. O que especifica os neurónios enquanto células é eles afectarem-se uns aos outros por múltiplas sinapses, permitindo a auto-afectação do humano (como de qualquer animal) e a sua hetero-afectação. Não li isto em nenhum livro de divulgação neurológica, deduzi duma definição de ser vivo por Derrida – “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência [...] só um ser capaz [...] de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral; esta possibilidade, outro nome da vida [...]”[1] (a dizer verdade, isto só é válido dos animais, não das plantas) – que era essa a especificidade dos neurónios dos seres no mundo que são os animais. Eis o que pode dar o devido valor à solução extraordinariamente simples que o último livro de A. Damásio, O livro da Consciência, trouxe à velha e dificílima questão da diferença entre o cérebro e a mente e à oposição alma / corpo donde aquela é a herdeira, que foi a de dizer – sem argumentar, mas dizendo-o várias vezes como algo que é óbvio – que à rede dos neurónios de cada um[2] apenas o próprio tem acesso, ao que se poderia chamar a sua ‘internalidade’ (da rede de relações sinápticas), e não o neurologista com os seus instrumentos de laboratório: é a esse acesso exclusivo que, sem dualismos, Damásio chama mente. Esta será o saber de si e do seu mundo ecológico. Genial simplicidade duma questão que embaralha os neurologistas, desde o incrível livro de J. Eccles e K. Popper (o título é revelador, The Self and his Brain!) até às buscas de ‘mecanismos’ cerebrais em redor do ‘eu’ e da ‘consciência’ que evoca Kandel no final do seu livro (Edelman e Crick).
2. Mas a simplicidade desta resposta esplêndida repõe velhas questões, nomeadamente a da memória. O que é esta e porquê é ela necessária e como escapam os respectivos neurónios à consciência. Ou seja, porque é que não estão todos os neurónios sempre ‘acesos’ como mente? A primeira observação a fazer é que um cérebro demora tempo a desenvolver-se – o que é verdade para qualquer animal, mas no caso humano aprende-se até ao fim da vida –, isto é, a tornar-se o órgão biológico e social que ele é. A rede neuronal que se vai instalando em suas sinapses com a aprendizagem, como mostrou Kandel com a sua lesma do mar, é algo de material, bioquímico, isto é espaço e tempo, a sua manifestação enquanto ‘saber’ também implica tempo, como falar ou ouvir, ou ler um texto, o tempo das palavras se seguirem umas às outras, embora sendo o cérebro–mente bastante mais rápido e não se trate só de palavras, claro, também de gestos usuais em sentido largo. Com efeito, não é possível ter um texto instantaneamente na mente, um resumo é outra coisa, o que chamamos uma ‘ideia’ do texto é uma aproximação. Isto para dizer que parece ser impossível que tudo o que sabemos na nossa rede neuronal nos seja simultaneamente presente num momento mental mais ou menos curto. Temos, bem pelo contrário, frequentemente a experiência de nos ser difícil lembrarmo-nos de algo que nos está interessando, de que quanto muito nos vêm apenas fragmentos. Essa totalidade ‘acesa’ seria aliás esmagadora da própria noção de ‘eu’, que também é temporal, implica articular sequências, antes e depois. Sendo tão extensa a rede neuronal, parece que só pode haver consciência se esta se demarcar na rede, como uma sua zona (oscilante, por certo, deslocável).
3. Já que a sequencialidade do ‘eu’ é também de grandes oscilações entre estádios da consciência: atenta, descansada ou relaxada, a dormir, com graduações entre estes três estádios, é bem de ver, mas que poderemos considerar como suficientemente significativos para o que pretendemos compreender, entre consciência e memória. Chamamos memória ao estado normal duma boa parte da rede neuronal que corresponde à parte que pode estar presente à consciência vigilante mas não está por inibição devida à atenção ou mesmo em relaxação. Esteve aquando da aprendizagem que a grafou, mas de tão repetida deixa de ser útil: se em cada coisa que fazemos tivéssemos a atenção de quando a aprendemos, se todos os neurónios estivessem mentalmente dispersos, nunca passávamos da cepa torta. Não só não está presente, como não depende dessa consciência vigilante a sua manifestação: como diz a palavra francesa para ‘recordação’, ‘souvenir’, literalmente ‘sub-vir’, é a memória que vem quando algo a acorda do seu estado habitual, o de latência, de estar escondida, à espreita ou não. À espreita, porque a consciência vigilante não pode exercer-se na sua actividade corrente sem o recurso constante ao seu ‘saber’ latente, que lhe ‘sub-vem’ sempre que é preciso para essa tal actividade, duma forma que parece ser extremamente variável e que não tem necessariamente que se explicitar antes de desaparecer novamente. Quando falo dum assunto numa aula, por exemplo, as frases que vou dizendo saem, como dizer?, do muito mais que sei dele e que joga no que digo sem se manifestar, manifestando-se em parte logo que uma pergunta a provoca. Há uma espécie de jogo permanente entre a atenção e a memória, com partes automáticas (as que dizem respeito às regras da língua, por exemplo) e outras não, que são suscitadas (citadas a sub-vir) mas têm a sua autonomia na maneira de virem, com lapsos e esquecimentos, por exemplo, num jogo intenso do que se chama ‘associação de ideias’, e com a incerteza de se poder contar com a fidelidade dela, que é o que nos faz levar uns apontamentos para a aula. É certo que a latência maior ou menor da memória tem a ver com a repetição dos respectivos grafos: as palavras correntes da língua estão sempre disponíveis automaticamente, assim como os gestos que repetimos quotidianamente, desde lavar os dentes a guiar. Do mundo neuronal que diz respeito a esta memória, por assim dizer sempre atenta, sempre a manifestar-se e a esconder-se, pode-se porventura dizer que faz com a zona consciente em cada momento um só mapa de grafos, à diferença da memória dum livro, dum filme, dum acontecimento singular que se vai esbatendo com o tempo, com acentos diversos consoante a força que tiveram, algumas memórias com certa frescura, outras desaparecidas quase.
4. Or que é a atenção? Digamos que é a maneira como esta consciência vigilante é chamada por uma situação do mundo em que se é, ainda que por vezes respondendo a necessidades próprias, como fome ou sede, mas para responder a essas situações (ir a um restaurante ou fazer uma refeição em casa) é sempre segundo possibilidades, minhas do meu mundo, ecoando na memória do que se aprendeu. Como todos sabemos pela experiência da nossa inexperiência: diante duma situação bastante nova, normalmente ficamos sem saber o que fazer de imediato (temos que perguntar). Pelo contrário, em situações conhecidas, embora complicadas, somos capazes de responder porque aprendemos, quando éramos mais novos e nos ‘chamavam a atenção’ (‘isso não se faz!’, ‘cuidado, isto faz-se assim!’). Esta expressão explicita o que me parece aqui importante sublinhar: o estádio da atenção da consciência, que por um lado é suscitado pela situação no mundo que nos ‘capta a atenção’, por outro precisa da relação à memória que sub-venha. Pode ser um perigo, que nos ‘concentra’ na situação em que estamos, palavra que diz o apagar de outras considerações, a predominância que restringe o campo da consciência (posso esquecer uma dor ou outra preocupação qualquer numa situação anómala). Poderemos então dizer que o que distingue este estádio de atenção ou consciência vigilante do estádio da relaxação – consciência desconcentrada em que a memória se aviva mais de incertezas e dispersões –, implicando a própria noção de atenção como ‘tensão’, será a necessidade de regras de conduta em tal situação, de cuidados a ter como se aprendeu. É esta tensão da atenção captada que exclui provisoriamente muito saber da memória quotidiana. É o paradigma dos usos, estas regras como lei social no que diz respeito ao fazer de cada dia, que joga aí o seu jogo, na tensão suscitada por uma situação de perigo, mas também pode ser, por exemplo, a leitura concentrada dum livro, que expulsa dela mesma a dispersão da memória relaxada, posso nem sequer ouvir a campainha da porta de tal maneira o livro me absorve a atenção; mas se se ouviu, então é a memória latente que desperta e a do que se estva a ler que passa a latente. Ora bem, o que Kandel mostrou, foi que o que se aprendeu para obviar a um perigo ou a uma carência e que faz memória, a inscreve como sinapse de grafo – mapa neuronal de grafos da nossa espontaneidade –, saber e força em cada um, que tanto é o que age neste uso, nesta conversa, como o que se retira enquanto memória latente.
5. Sem nunca saber dizer nada de localizações destes grafos que funcionam sempre em oscilações de espaço como de tempo, de zonas como de sequências, creio que fica uma extensão de memória menos actuante e por isso mais susceptível de falhar por vezes, mas que será memória ainda, mais ao sabor das ‘associações de ideias’ (‘é verdade, nunca mais me tinha lembrado disso’). E há a sua alternativa, a actuação tão insistente que se torna memória apagada, os neurónios que sabem da roupa que se tem vestida, de gestos dos pés ao andar, das coisas que se vêem todos os dias em casa e por isso não se repara nelas: essa é mais claramente memória apagada para não esmagar a consciência vigilante, claramente empurrada pelo que se aprendeu e se soube e se repete como se não se soubesse, apagada por inútil, fazendo parte da memória implícita de Kandel, mas diferente da memória que age em gestos habituados. Um outro exemplo: quando muito cansados nos pomos em posição de relax, sem pensar em nada e prestando atenção ao passar do sangue, numa têmpora por exemplo, consegue-se com a experiência vir a estar consciente da circulação do sangue por uma boa parte do corpo. É fácil de perceber que o apagamento dessa memória mental do sangue circulante é uma economia energética da rede neuronal a favor de maior concentração energética da atenção no mapa de grafos quotidiano. Difícil é, pelo menos ao leigo, saber como é que estes jogos energéticos de compensação se fazem, entre hormonas e neuro-transmissores.

O que a psicanálise complica ao neurologista
6. E aquilo a que a psicanálise chama ‘inconsciente’? que não é apenas o ‘não consciente’ (que em rigor coincide com o sentido primeiro da palavra ‘memória’, a latência) mas algo que é impedido de ser consciente, que seria perigoso se o fosse, como sucede no que se chama habitualmente loucura, pior do que uma bebedeira, que triunfa todavia nos sonhos. Julgo que se pode fazer um paralelo com a memória do tempo de infância (in-fante é o que não fala), da aprendizagem da fala, de que normalmente ninguém se lembra, provavelmente porque justamente anterior à linguagem com que a memória funciona: não será memória impedida por outrem mas incapaz por si, podendo porventura ter algum papel nos sonhos. Ora, os sonhos são o terceiro estádio da consciência; quando se dorme, não se deixa apenas o ‘mundo’ exterior de usos a fazer mas também a consciência de si e as suas memórias, até as mais íntimas e secretas, e é aonde então, em vários períodos do sono, surgem cenas inesperadas e incompreensíveis a maior parte das vezes com outras gentes em jeitos diversos; aí, segundo Freud, prevalecem imagens e sensações, visuais sobretudo, da ordem do ‘concreto’, em que mesmo quando há palavras ditas ou escritas estas valem como imagens (de voz ou de grafia). Tratar-se-á então de um estádio em que prevalece a situação arcaica da memória, como seríamos se não houvesse nem linguagem nem as variadas regras dos outros usos quotidianos. Será a memória da não lei, da não regra, não testável por definição pelo neurologista, como aliás se rebela fortemente ao psicólogo e ao psicanalista. Será então o que justifica o lugar dado às regras dos usos na sua relação entre memória e consciência vigilante: é o que chamei mapa dos grafos que se apaga quando se adormece, a nossa lógica vigilante, a memória antropológica. Isto representa uma hipótese de compreensão da lógica da psicanálise, que justamente releva da consciência vigilante (não se faz psicanálise a dormir!), mas que também desconfia dela. O que constitui o laboratório da psicanálise percebe-se: é um divã que não sendo para dormir se aproxima da relaxação do sono, e uma regra contra as regras sociais, tendente a ‘desarmar’ a consciência vigilante das suas ‘armas’ quotidianas: ‘diga tudo o que lhe vier à cabeça, não me esconda nada, ainda que lhe pareça estúpido, sem interesse, obsceno, contra a lógica e a moral sociais’, isto é, contra os usos de cada dia. Com ênfase nos sonhos e na sua interpretação, a ‘análise’ vasculha as zonas da memória de relaxação entregue ao ‘delírio’ das associações de ideias. Ora, o que posso saber de um ano e meio de análise, é que este jogo de memórias estranhando-se é progressivo mas bastante lento em seu aproximar-se das zonas que resistem a vir à memória, que interrompem com silêncios ou choros ou denegações e outros actos falhados e assinalam bloqueios da memória, forças mais fortes que resistem. Se se retiver de Kandel que um pequeno acontecimento traumático leva a abrir uma sinapse (ou mais), dir-se-á que a força que agrediu o neuronal ao se gravar se transformou em força de reacção, de defesa ou de ataque: recebida passivamente de fora, virou actividade para fora, segundo a lógica de toda e qualquer aprendizagem. Então, no caso das resistências que não conseguem dizer-se explicitamente, haverá que dizer que o seu efeito terá sido diferido e deslocado, sublimado. E que isto se passou ao longo dos tempos, com repetições de forças nas mesmas zonas e repetição do diferir e deslocar, que terão sido os usos que se foram aprendendo e triunfaram na cena social do paradigma dos usos, reconhecido após ter sido incitado e corrigido. Com o longo tempo e o aleatório dos percursos, pode o que ficou bloqueado vir a doer de tanto  pisado, ao contrário de outros que poderão vingar em suas habilidades espontâneas. O que assim se sugere é que o tempo da passagem da pertença ao seio da mãe, parto, desmame pelo andar, mexer e falar ao ser no mundo do paradigma de todos é o das muito difíceis aprendizagens, dos primeiros grafos e sinapses que vão ser alicerces de muitos outros, e que estes prevalecerão sobre aqueles primeiros, ainda impotentes face ao que os posteriores conseguem. Seria essa impotência que ficaria marcada como in-consciência, incapacidade de chegar à consciência do que terá ganho um estatuto de alicerce dinamizador, se dizer se pode. Os prazeres passivos de se ser parte da mãe, do seu seio, ficam interditos pelo que se vai ganhando como possibilidades activas e seus novos e menores prazeres: são as regras destas possibilidades, deste ‘poder’ ser no mundo, que impossibilitam o retorno ao que fica marcado como incestuoso.
7. Mas é óbvio que disto tudo os neurologistas não poderão saber, resulta da paciente ‘análise’ de discursos no divã, do neuronal ‘mental’ a que só o próprio tem acesso. E quando se os vê a fazerem certas experiências de laboratório e concluírem que Freud estava errado, o mínimo que se pode achar é que provavelmente nunca leram o seu admirável Interpretação dos sonhos, que não fazem a mínima ideia da diferença entre o seu laboratório químico eléctrico de experiências relativamente curtas e o longo tempo das caminhadas psicanalíticas, um outro mundo. Basta ler o capítulo sobre os sonhos de M. Jouvet em O sono e o sonho, de como não consegue retirar da sua análise de dois mil e cinquenta sonhos mais do que duas considerações relativamente anódinas e comparar com o livro de Freud para se medir a diferença. Que também é de paradigmas incomensuráveis, como dizia Kuhn, muito mais do que a incomensurabilidade entre físicos de gerações diferentes.

A bifurcação da linguagem
8. Uma das possibilidades da linguagem dos humanos é a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’  um acontecimento de palavras trazendo consigo o seu contexto : dois bons exemplos são, quer o contar uma narrativa do passado ou uma ficção, quer o que se chama pensar, incluindo sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional, do ‘aqui e agora’. O ‘discursivo’ (que Benveniste distinguiu do ‘narrativo’) permite dois modos dos verbos : o indicativo presente que, com outros índices de locução (‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘agora’, e outros), reenvia ao seu contexto, ‘indica’ o que está ‘presente’ a esse discurso falado, e o conjuntivo, que reenvia a esta capacidade de pensar em outra coisa, guardando todavia o suporte do ‘eu’ da enunciação e a relação ao ‘tu’. Da mesma maneira, a narrativa evocada pode guardar este suporte (auto-narrativa, a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a esta possibilidade das nossas palavras de ‘suspenderem’ o nosso contexto situacional e de nos arrebatarem para algures, absorvidos por exemplo na leitura dum romance apaixonante ? Bifurcação ? Jogando com dois dos sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido : o que nos orienta no espaço, direita, esquerda, à frente, atrás, em cima, em baixo, norte, sul, este, oeste, por um lado, e por outro o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de se ser algures, num outro aí. Bifurcação : ao mesmo tempo aqui-presente e algures.
9. Esta bifurcação far-se-ia entre o nosso contexto situacional, o nosso ‘aqui e agora’, e o contexto contado pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[3]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para que haja esse ‘ir-se’ da bifurcação, algo, acontecimento mínimo, que faça interrupção, que faça ‘associação’ entre um elemento do contexto e o que está em jogo na palavra, dita ou silenciosa : um encontro com alguém, tal coisa que acene à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias.  Esta é tão frequente que temos que admitir que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido, digamos assim, entre a situação do contexto e a do discurso[4], a chamada consciência. Prevenção dum ‘acidente’, a expressão  ‘dá atenção !’ lembra com insistência que há que estar atento ao contexto quando se está algures, nas nuvens.

Retorno à questão da memória
10. O que esta questão da bifurcação implica é que ela vem-se estabelecer lentamente com a aprendizagem da fala e, com os outros usos, andar, mexer nas coisas, brincar, a atenção sendo constantemente ‘chamada’ por quem educa para o contexto presente, este é também coberto pelas palavras que o nomeiam, o que o povoa e nele se faz. Se dissermos que estamos, quando acordados, sempre numa ‘paisagem do nosso mundo’, em interior ou em exteriores, e que os nossos ‘sentidos’ acordados são esse mundo que lhes é dado e que muda sempre que nos movemos, e que é nessa paisagem que somos possibilidades de usos, o que a linguagem aprendida traz à bifurcação é que esse ser em paisagem e em possibilidades é coberto pelas palavras e pela sintaxe das frases que dizemos, de maneira tal que praticamente nada do que era in-fância antes dela lhes escapa (a não ser eventualmente certos gostos visuais e auditivos que venham a manifestar-se em talentos de desenho ou música, que em certas pessoas parecem inatos). Mas o que se chama língua materna será a língua da saída da mãe para o das falas e dos usos: ela orienta o que se vê, ouve, diz e faz: o que corresponde ao que Derrida escreveu: “na língua não há fora de texto”. E será o que ‘après coup’ torna impotentes os neurónios cujas principais sinapses se instalaram na in-fância, incapazes de virem jogar directamente qualquer jogo na consciência atenta mas porventura indirectamente (por deslocamentos e metaforizações, em termos freudianos) na consciência relaxada.
11. Conjecturo que é difícil nestas coisas saber se as sinapses dum dado neurónio são todas da mesma idade ou se podem ter anos de diferença, o que poderá invalidar algumas destas hipóteses. Mas esta in-fância seria por um lado o que a psicanálise busca atingir, os seus efeitos, e por outro, paradoxalmente, corresponderia à concepção dominante de todos os neurologistas que li (Eccles, Changeux, Vincent, Edelman, Berthoz, Jouvet, Damásio, Kandel…), o de não terem em conta a linguagem como aprendida e que lhes baralhará as contas todas.


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[1] De la grammatologie, p. 236, citado in Belo, 2007, 3. 12. Digo isto para ajudar a perceber que a fenomenologia pode ser interessante para os neurólogos.
[2] Dos mosquitos aos humanos, acrescente-se como prolongamento do óbvio
[3] É aonde residiria, parece-me, a ‘verdade’ do que se chama idealismo, cujo erro consise em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio et cogito, finalmente objecto et sujeito. Em Husserl : região natureza e região consciência.
[4] Limito-me aqui ao discurso, mas este ‘lá’ pode ser também música, jogo de imagens, cálculo matemático.

O Capital como ‘cabeça’ do Corpo social comum




“Quando a cabeça não tem juízo,
o corpo é que paga”
(A. Variações)

Capital vem do latim caput (cabeça)
1. O capital financeiro deu-se um ‘mercado’ de capitais donde vem provocando crises graves às economias nacionais, onde os Estados, asfixiados por dívidas demais que ele, capital, frequentemente publicitou (sem andar por distinções entre as dívidas dos Estados, da banca ou das empresas privadas): é o problema politico mais grave actualmente, na medida justamente em que as instancias politicas são também vítimas e as internacionais parecem impotentes. Queria aqui reflectir sobre esta questão ao nível fenomenológico, tanto quanto for capaz.
2. Será necessário circunscrever a sua dimensão de ‘propriedade privada’ quando o capital se encontra, especulativo, fora da sua aplicação empresarial e das relações de contrato com os cidadãos colaboradores na empresa, buscando predatoriamente aonde ir caçar lucros que o aumentem, sua única meta, dela mesma anti-social. Ora, o capital é exclusivamente social, não vale nada for dos valores das línguas de preços dos verdadeiros mercados, aonde se trocam produtos de produção empresarial. Na dupla relação entre empresas de produção e venda de mercadorias e famílias de reprodução de sujeitos e compra de mercadorias, há que incluir a escola e o mercado: aquela transforma os filhos das famílias para poderem vir a trabalhar nas empresas (e outras unidades sociais) e este, com os salários pagos, asseguram a vazão do produzido no que as famílias (e outras unidades sociais) necessitam. Escola e médias, por um lado, administração do Estado por outro, são com este mercado de coisas as três instâncias de regulação do comum da sociedade.
3. O capital (com a banca) é necessário para fomentar as empresas de produção, que não podem começar antes de chegarem ao tempo das vendas dos seus produtos sem recursos financeiros, próprios ou emprestados pela banca. Esse capital inicial busca ter lucros para poder prosseguir a sua produção e pagar o que lhe foi emprestado, lucros esses que só são apurados depois do pagamento da matéria prima importada, dos salários aos cidadãos que colaboram na produção, incluindo o ‘patrão’, da amortização dos empréstimos e do pagamento dos impostos; o destino desses lucros, o que sobra de todos os custos e retornos, é o de aumentar o capital, podendo obviamente ser investido noutras produções, buscando o seu aumento, novos lucros.
4. Esse investimento noutras produções pode fazer-se comprando ‘acções’ de empresas, ou outros ‘títulos’. O termo ‘acções’ parece dizer a relação desse investimento com a produção, agi-la, dizer pois a relação intrínseca da finança à economia, que o papel daquela é estruturalmente o de fazer ‘agir’ a economia, que sem capital à cabeça não se pode fazer (mesmo em economias colectivistas, tem que haver capital inicial). E o outro termo, ‘título’, que tem um campo mais alargado, que significa ele em finanças? Etimologicamente significa ‘cabecinha’, reenvia pois para ‘capital’ como ‘cabeça’ mas secundariamente, com diminutivo. Num livro, ‘título’ é uma expressão muito curta (donde porventura o diminutivo) o corpo do texto muito mais lato, que pode assim ser dito ou chamado por essa ‘cabecinha’ (nos livros antigos maiores do que hoje em geral). Parece óbvio concluir que ‘capital’, como ‘título’, joga na correlação da ‘cabeça’ com o ‘corpo’, dizendo para começar que não há um sem o outro, isto é insistindo no carácter intrínseco da relação da finança à economia, mas acrescentando que é à cabeça que compete mandar no corpo.
5. Sim, mas não só nem directamente, que o ‘corpo’ enquanto unidade de produção de coisas para vender os seus produtos são muito variáveis e têm pois lógicas técnicas de produção específicas a que a lógica do capital, a mesma em qualquer mercado, é alheia: digamos que é a lógica do engenheiro que liga o ‘corpo interno’ enquanto unidade de produção. A lógica do capital tem a ver com o mercado de venda e compra, com os preços enquanto língua do mercado, é a lógica do economista que liga a unidade de produção ao mercado em que ela se insere. Há pois uma dupla ligação, a do ‘corpo’ (forças produtivas, na teoria marxista) como ‘motor’ do mercado social e a da ‘cabeça’ (relações de produção marxistas) que distribui as mercadorias à maneira dum ‘aparelho’ que visa as melhores vendas, secundado pelo discurso publicitário que se dirige aos compradores possíveis, num campo de concorrência estruturalmente aleatório. Entre engenheiro que busca a melhor qualidade do produto e economista que busca o seu menor preço, há um conflito permanente, um procurando limitar ao máximo os custos dos materiais e tempo de produção de que o outro necessite. Igualmente conflito na repartição das mais valias conseguidas entre lucros do capital e salários dos cidadãos que trabalham na produção, sem que haja nenhum critério científico ou técnico que decida: a decisão é sempre politica, revela-se no contrato de trabalho e nas lutas ou concertações que visam o acerto de uns e outros, o capital comandando em épocas de desemprego grande como hoje, os cidadãos podendo impor lutas mais ou menos severas fora dos tempos de crise e em épocas de inflação.
6. O que é o dinheiro de que o capital é feito? É uma convenção do poder politico que constitui moedas cunhadas/assinadas (escudo, dólar, euro...) de unidades aritméticas (que se podem somar, diminuir, multiplicar e dividir) para regular as trocas de produtos, quer a sua venda consoante os tempos de produção e salários e os custos materiais e energéticos (e outros, administrativos, laboratórios, etc.), quer por via dos salários, o poder de compra dos cidadãos. Há que insistir sempre que se trata de ‘cidadãos’, que tanto o quadro dos contratos de trabalho como das condições de venda são regulamentados pela autoridade politica, que são votados os seus dirigentes em função, em grande parte, da maneira como esta regulação corresponde a um Estado de direito. Qual é a diferença entre o dinheiro e outras inscrições, como as palavras, as notas de música e os números usados em outras esferas, como medidas técnicas, cientificas e outras? Todas formam sistemas diferenciais que permitem que cada unidade sua jogue consoante o seu lugar em relação às outras. Mas enquanto que palavras, notas e números são de uso geral e gratuito para poderem formar obras (textos, sinfonias, canções) que poderão resultar em vendas e compras, as moedas e notas (e cheques, depósitos bancários) são imediatamente um poder de compra de quem sejam propriedade, anónimas as moedas e notas (e por isso susceptíveis de serem roubadas, por exemplo), como condição de poderem circular de mão e mão no mercado em que se compra e se vende.
7. A propriedade privada do dinheiro é pois parte da sua definição. E o que significa que ela seja ‘privada’? Significa que o dinheiro só vale como parte do conjunto da produção social, da economia concreta em seus altos e baixos, crises e prosperidades, que é desse conjunto e da sua língua de preços (que todos aprendemos a conhecer) que ela é ‘privada’ para ser ‘apropriada’ pelo seu ‘proprietário’ de ocasião. É-lhe intrínseca, ao dinheiro, esta relação ao que se pode chamar o ‘bem comum’ da sociedade: só vale por ser ‘privação’ dele. Isto é, da mesma maneira que se disse acima que o capital enquanto ‘cabeça’ é intrinsecamente parte do ‘corpo’ económico, também o dinheiro, qualquer moeda, nota ou cheque com cobertura, é inseparável do ‘bem comum’ do corpo social, é o que significa o nome da moeda que se acrescenta ao numeral, ‘mil escudos’ ou ‘quinhentos euros’ (se hoje, uma nota de ‘mil escudos’ não vale para comprar é porque a rede monetária dos escudos já não existe: essa não existência do todo desfaz a menção ‘mil escudos’ que continua lá escrita, apenas com valor de memória).
8. A apropriação do capital como dinheiro apaga esta relação à esfera económica que o constituiu, de que é privação: o termo propriedade privada tornou o adjectivo uma espécie de reforço do substantivo, como se o que de si é meio de troca, as notas sempre de mão em mão, se tornasse pela propriedade parte íntima do proprietário, como seu ‘poder’ de compra, potencial que ele conjuga: ‘eu posso comprar X’. X pode ser ‘pão para os meus filhos’, um carro utilitário, um carro de luxo, uma casa de fim de semana fora da cidade, e por aí fora: a partir dum limiar variável, da utilidade passa-se à exibição, do carro ou do iate ou das viagens que se faz, como antes os palácios, as roupas e as carruagens, o aparato que se dá a ver e a invejar em diversos níveis de concorrência social. Uma boa parte do jogo das bolsas releva desta cena mundana, a certos níveis internacionalizada e inclusive com ‘rankings’ das maiores fortunas (quando a burguesia se pauta(va) pelo secretismo das suas contas, que permite deixar jogar as aparências, as revistas de modas).
9. A outra parte do jogo das bolsas é a dos guerreiros que procuram o poder que hoje predomina, o financeiro, onde a concorrência é feroz e não dissimulada. O que então se dissimula é a relação dos capitais que se arriscam com o ‘bem comum’ que os tornou possíveis: num duelo, não tem a menor importância que as pistolas venham da mesma fábrica, os capitais são armas entre adversários, as crises económicas que provocarem serão danos colaterais (como bombas sobre civis) da ‘grande guerra’ em que vivemos mais manifestamente de há uns 30 anos para cá, desde que as tecnologias electrónicas se tornaram armas novas do capital contra os cidadãos que com ele colabora(va)m. E como as bolsas também se tornaram electrónicas e aceleraram as trocas entre ‘títulos’, cada vez menos sobra tempo para auscultar a relação dessas ‘cabecinhas tontas’ com os seus ‘corpos’ económicos. O dinheiro é porventura o laço social que mais força tem, de que todos dependem directa e quotidianamente, o que o torna – “equivalente geral” das mercadorias, dizia Marx – o feitiço dos desejos de cada um, que ainda por cima é aritmeticamente verificável, atrai uns para as bolsas, outros para as lotarias, muitos para todo o tipo de ladroagem, quer a literal, a das ruas, quer a elegantemente chamada corrupção.
10. Contra a idéia fácil de que vivemos numa civilização ‘materialista’, esta separação entre finanças e economias, entre capital e vidas diárias, entre ‘cabeça’ e ‘corpo’, é claramente um idealismo, as idéias que querem comandar às necessidades vitais. Não se trata, como se pretende por vezes, de uma oposição entre Deus e o Dinheiro, mas do Dinheiro ocupar o lugar de Deus, ‘equivalente geral’ ou feitiço a que todos sacrificam, uns por necessidade, outros por devoção. Quando a cabeça não tem juízo – se separa do corpo – este é que paga.
11. Donde vem esta separação? Chama-se ‘capital’ à cidade com ofícios especializados, cabeça dos campos em redor que a alimentavam, centro do poder político. Esta primeira separação foi reforçada pela industrialização que veio a destronar as grandes propriedades rurais como principal fonte de riqueza aristocrática: burguesia é a população dos burgos, das cidades, é ela que capitaliza quer a capital e o seu Estado moderno, quer os capitais da indústria. 1) O primeiro tempo (máquina a vapor, carvão e ferro, primeira química e primeiras máquinas), que dura até aos inícios do século XX, é o do patronato, o ‘patrão’ como ‘pai’ da fábrica e conhecedor dos fabricos como condição do laço técnico que garante a qualidade dos produtos, em tempos em que não há ainda engenheiros especializados cientificamente. Embora a relação com os trabalhadores fosse tudo menos relação com cidadãos, e houvesse pois imperativos drásticos sobre eles que tornaram essa primeira época dramática, a paisagem exibindo claramente a oposição entre a burguesia em seus bairros da cidade e o proletariado nas suas redondezas miseráveis sem higiene, há uma preponderância do laço técnico como que predominante: abriam-se fábricas de produtos que se sabia fazer e se buscava aperfeiçoar, empiricamente em geral e sem grandes dimensões. Havia pois cuidado do patrão-cabeça com o corpo da produção, onde ele passava o dia todo, como regra mais zeloso dos produtos do que dos produtores. 2) O segundo tempo (aço e betão armado, electricidade, iluminação e elevadores, grandes cidades e classe media de escriturários), o dos engenheiros que vão se especializando e dos gestores que rodeiam a administração capitalista, com muito maior dimensão e variedade de produção, uma hierarquia de competências do alto para a zona de produção, é já de aquisição de autonomia do capital em relação à produção, de acento nos lucros a maximizar, acento pois da separação mas com a lentidão das comunicações que tem que atravessar os vários níveis hierárquicos, para cima como para baixo, as responsabilidades intermédias relativamente cerceadas. 3) O terceiro tempo é o da dominação da electrónica que permitirá desmontar hierarquias e acentuar autonomias de gestão mais facilmente controladas com a comunicação quase instantânea, desmembrando produções através de pequenas empresas clientes com tarefas precisas, muitas vezes antigos operários especializados da empresa mãe. É quando o controle dos custos técnicos, dos engenheiros pelos economistas se acentua fortemente, as respectivas especializações reforçadas aumentando as ignorâncias das dos outros. Foi quando a teoria monetarista e neo-liberal se desenvolveu e cativou Thatcher e Reagan, incitando ao grande voo dos capitais-cabeças à procura de títulos, de capitaizinhos, quando os números do capital se impuseram às economias, as fizeram vergar.
12. É a grande separação idealista, a das cabeças sem corpo – o que se chama especulação – e dos correlativos desempregados, pedaços de corpo que este perde pelo slogan guerreiro da competitividade, em que os salários dos cidadãos viram custos anónimos a amortecer ao máximo, slogan esse que será virado também para tudo o que é administração pública e dá a esta um ar de que, em vez da respectiva ‘coisa pública’, se deve afirmar a mesma razão do que a dos que buscam lucros acima de tudo. A ideologia é a de que baixar os custos aumenta o rendimento, a racionalidade das coisas, mas quem vela pelos cuidados da qualidade é que se apercebe, como os economistas não, da degradação das vidas, da habitação que deveria ser o escopo da ciência que tem por nome a regra (nomos) da habitação (oikos, casa). Como rebatê-la, à separação, controlar os seus excessos guerreiros? Não será guerrear contra quem tem o poder da cabeça, mas haveria que revolucionar a economia como ciência, voltando-a justamente para a habitação dos cidadãos, colocando os seus ‘interesses’ económicos e financeiros, o seu equilíbrio democrático, como meta científica, pegar pelo corpo de maneira a esvaziar parte do poder do capital através das potencialidades económicas da habitação.
13. Não pode o fenomenólogo pretender essa tarefa sem estultícia e ridículo. Delineemos brevemente o motivo fenomenológico dos duplos laços sociais, a partir do que acima assinalámos para a empresa de produção (§ 5). Quem trabalha insere-se de duas maneiras no mercado, como produtor que recebe um salário e como familiar que compra os produtos de que há necessidade em casa. Se as empresas, com todas as outras unidades sociais que dão emprego, estão ligadas entre si pelo mercado, pelas suas vendas e pelas compras de produtos estranhos à sua produção, também esse laço enlaça de outra forma a rede das famílias que compram. Duplo motor das sociedades modernas, o da produção, de coisas e serviços por um lado, o da reprodução de sujeitos por outro. O mercado, obviamente que hoje fortemente internacionalizado, é assim um dos aparelhos de regulação desse grande duplo laço social. O Estado forma um outro aparelho de regulação da ordem do conjunto ‘nacional’, assim como a escola e os médias na língua da sociedade são o terceiro aparelho que enlaça igualmente o conjunto motor, através das suas diferenças que são aqui também claramente acentuadas segundo os percursos escolares, tal como as diferenças de posição e de salários na produção. Os duplos laços antropológicos são muito complexos nas sociedades modernas, mais óbvios nas primitivas e nas de agricultura predominante: estes três laços de regulação dos caminhares (aparelhos) são transversais ao duplo motor (que dá o movimento), as instituições de trabalho e as famílias, duas redes reproduzindo (toda a produção é reprodução) como se fossem um ‘corpo’, o motor da sociedade enquanto viva no quotidiano e de geração em geração. Do lado da rede das famílias, os laços privados de cada uma enxertam-se na aprendizagem dos seus usos de cada familiar, alarga-se de forma mais atenuada ao círculo de amigos ou de hobbies, à aldeia (cujo laço em que todos se conhecem se pode tornar intolerável e levar a uma emigração libertadora) ou ao bairro (as cidades mais anónimas), além de círculos administrativos que se alargam geograficamente, da junta de freguesia, da câmara, da região, do pais, da União Europeia
14. A escola e os médias, como instituições, são tornadas vivas por muita gente, professores, escritores, artistas, jornalistas, sem ‘monarcas’, apenas alguns mais conhecidos, cada um fala e escreve segundo sabe e pode. O Estado, com regimes diversos – rei de fachada ainda nalguns lados, presidentes da república de poder regulado noutros –  tem em todo o caso uma população variada de agentes ‘políticos’, juristas, deputados, ministros, etc., que contrabalançam o poder, que não o deixam nunca ser de um só (mesmo os ditadores precisam das sua ‘cortes’ de apoios firmes), mas o laço político da ordem social joga-se sobretudo pelas consciências cívicas dos cidadãos, mais do que pelo temor da repressão. A preponderância ganha nesta terceira fase da industrialização, electrónica, pelas instâncias especulativas de capitais em guerra sobre o Estado, enquanto regulador democrático que deve zelar pela habitação de todos e sobretudo dos mais fracos, e sobre a escola, isto é, sobre a ciência económica enquanto devendo orientar a regulação dos mercados como ‘governo da habitação’, essa preponderância é a ‘causa’ preponderante da crise crescente: os três laços transversais deverão equilibrarem-se, controlarem-se uns aos outros, à maneira, se comparar se pode, dos três poderes democráticos de Montesquieu, acrescentando-se a força crítica dos movimentos sociais.
15. Voltemos à crise. Sabemos que, no que diz respeito às dívidas e ao seu pagamento, só se encontrarão soluções, mais tarde ou mais cedo de preferência, a nível de soluções de instituições europeias que joguem efectivamente os tratados de solidariedade: em tempos, Rui Tavares chamava a atenção para que, entre os objectivos da União Europeia, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Mas no que estará mais ao nosso alcance, haverá que pegar pela questão mais óbvia dos efeitos da crise, os números impossíveis do desemprego que derrotam toda e qualquer pretensão à democracia, já que não se é claramente capaz de atribuir um subsídio razoável de desemprego a todos os cidadãos que estão privados de salário. Então, se olharmos para os salários que há numa dada zona – no laço duma junta de freguesia ou duma câmara municipal talvez – e os multiplicarmos pelas horas de trabalho anuais, por exemplo, que eles representam, poder-se-á dividir esse resultado pela soma dos que trabalham e dos que querem trabalhar sem poderem, com níveis diversos de qualificação certamente (o que não facilitará as coisas), e estabelecer os horários de trabalho que permitam que todos tenham emprego e salário: haverá diminuição deste para os que estão empregados, como se tem feito para o pessoal da função pública e para os pensionistas, mas com diminuição do tempo de trabalho como compensação, isto é, maiores fins de semana e férias, que implicarão a invenção de maneiras de viver sem grandes despesas (o que nem toda a gente  consegue, mostra a realidade dos recém reformados). Como preconizava André Gorz há mais de trinta anos, haverá que criar solidariedades nesse sentido, por exemplo, tipo bancos de horas. Inviável no imediato, dir-se-á, mas é certo que tem havido empresas que, com problemas de diminuição de encomendas a curto prazo, têm preferido diminuir o tempo e o salário de todos em vez de despedir, na esperança de recuperação posterior. Ou seja, é a própria crise que pode despoletar soluções destas, não à maneira de legislação geral atribuindo menos horas de trabalho para toda a gente, mas de forma empírica e por zonas geográficas que comportem alguma viabilidade: as juntas de freguesia são um laço social ténue, que joga por exemplo em dias de eleições; ganharia uma força maior se pudesse encarregar-se de questões desta ordem, sabendo-se que elas implicam que os interessados o sejam de facto.

Post-scriptum
16. Nós, povos da periferia europeia, estamos a sofrer uma guerra devastadora, efeitos colaterais da grande guerra dos capitais, tal como as houve, militares, na primeira metade do século XX. Concomitante com ela, já que se trata duma guerra com suporte electrónico falado em inglês, sofremos igualmente o domínio da língua inglesa nessas tecnologias, juntamente com a dívida colossal, como se houvesse uma ocupação e nos fosse muito difícil organizar a resistência. O novo império, o Gestell de Heidegger, é por ora americano, com o chinês no encalço. Ora o pensamento inglês (como aliás o chinês) é empirista, os americanos são facilmente engenheiros (como os Romanos o foram, sustentados pela cultura grega) e dependem da cultura europeia, do acabamento da metafísica (Heidegger ainda). O que significa este? Não é apenas a marginalização do pensamento francês e alemão (os intelectuais dessas línguas estão a render-se aos pensamentos únicos que não pensam?), é também o predomínio da metafísica empirista no além da tecnologia-capital, estrutura esta imune à metafísica especulativa. Ou não? Estrutura sem cabeça? Ou o capital cabeça de que o corpo é a tecnologia? Com ela, a velocidade da electricidade tornou-se pressão sobre o tempo, tudo à pressa no espaço urbano.
17. Ora, assim se abrem margens desempregadas, com menos tempo de emprego, susceptíveis de liberdades novas, para lazeres calmos, leituras e artes, desporto praticado sem espectadores, retorno a coisas esquecidas, culinárias, agriculturas, meditações, sei lá!